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1. SUPER-HUMANO

1.1. Do mito ao pop: a definição de super-herói

1.1.3. Identidade

O último aspecto que compõe a definição de super-herói proposta por Coogan (2006) diz respeito à identidade, representada pelo codinome e pelo uniforme que de algum modo carregam características relevantes do personagem, a fim de distingui-lo dos demais.

Nas revistas pulp e nos quadrinhos, a atribuição de um codinome de fácil identificação para os personagens tinha função comercial: essas publicações traziam frequentemente várias histórias compiladas em revistas com títulos genéricos. Por isso, o título das histórias geralmente continha o próprio nome do personagem e, em uma época em que inúmeros personagens com características muito semelhantes surgiam e desapareciam a cada edição das revistas, o seu nome precisava ser o mais facilmente reconhecível.

Superman populariza as alcunhas super-heroicas a partir do seu próprio nome, tão abrangente quanto as muitas características atribuídas ao personagem ao longo dos anos: um homem exageradamente superior. Antes dele, porém, os heróis de aventura e os vigilantes combatentes do crime dos pulps já apresentavam esse sistema de nomenclatura – até mesmo o termo superman já havia sido utilizado em algumas histórias anteriores a 1938, inclusive pelos mesmos criadores do super-herói nos quadrinhos, Jerry Siegel e Joe Shuster (COOGAN, 2006, p. 170). A partir de então, a necessidade de diferenciar um super-herói do outro na enxurrada de novos títulos rendeu nomes bastante objetivos a esses personagens. Capitão América é um militar nacionalista; Homem de Ferro é um homem com armadura; Thor carrega o mesmo nome do deus nórdico em que é baseado; a palavra Hulk remete a carapaça, “brutamontes”; Viúva Negra faz alusão à fatalidade da espécie de aranha de mesmo nome; Gavião Arqueiro alia a visão privilegiada da ave de rapina com a principal arma utilizada pelo personagem.13

Diegeticamente, os codinomes dos super-heróis são proteção às identidades secretas, herança direta das histórias de vigilantes. Sobretudo nos anos 1940 a 1960, metaforizando as transformações da adolescência para a vida adulta, os super-heróis tinham

13 O Gavião Arqueiro tem a referência à sua arma ressaltada em seu codinome na tradução brasileira. No original

muito clara a distinção entre suas identidades civil e super-heroica, muitas vezes opostas em comportamento. Umberto Eco (1993, p. 248) analisa como Clark Kent, o jornalista medroso, desajeitado, míope e extremamente inteligente é ao mesmo tempo o contraponto do superpoderoso e imponente Superman e ponte direta de identificação com o estereótipo do leitor de quadrinhos do século 20. A mesma dinâmica pode ser observada na transformação do franzino Steve Rogers no superpoderoso Capitão América. Com o passar do tempo, a Marvel Comics passou a perseguir essa identificação do alter ego dos super-heróis com o público, explorando fortemente a humanidade e os problemas cotidianos que eles enfrentam além das batalhas contra os vilões. Certamente o personagem que encarna tal identificação de modo mais marcante é o Homem-Aranha, o “primeiro super-herói adolescente” que lida com dilemas mundanos tão comuns quanto os de seus leitores da mesma faixa etária.

De acordo com o teórico brasileiro Moacy Cirne (1971), a dupla identidade dos super-heróis, no ponto de vista político, revela ainda os anseios de projeção do cidadão estadunidense, limitado em sua vida ordinária, por alcançar o ideal americano vendido nas ideologias nacionalistas do país:

O mito do super-herói, e mais particularmente o do Super-Homem, é o mito da classe média americana em busca da autoafirmação, identificando-se com a possibilidade de usufruir de uma dupla identidade. (CIRNE, 1971, p. 48).

Nos últimos anos, tornam-se mais recorrentes histórias de super-heróis cujas identidades não são secretas, ou ainda os que não chegam a possuir nenhum outro nome diferente da sua identidade civil. Desse modo, quando o Universo Marvel estreou nas telonas com Homem de Ferro, a identidade secreta por trás dos codinomes dos super-heróis já era tratada de modo menos dogmático. Em Os Vingadores, absolutamente nenhum dos super- heróis tem uma identidade secreta, o que torna seus codinomes diegeticamente meros acessórios aos seus nomes civis. O Capitão América é chamado por seus colegas muito mais de Steve Rogers; a forma humana de Thor existente nos quadrinhos, o médico Donald Blake, não existe nos filmes, seu nome é apenas brevemente referenciado no primeiro filme do herói; e somente a mídia chama Tony Stark de Homem de Ferro depois que ele mesmo torna público o fato de ser o homem por trás da armadura. A dupla identidade do Hulk, em particular, serve para diferenciar a sua dupla personalidade: Dr. Bruce Banner, o cientista, versus Hulk, o monstro. Por outro lado, apenas em breves cenas de apresentação é que o Gavião Arqueiro e a Viúva Negra têm alguma referência aos seus codinomes de super-heróis nos filmes, sendo nomeados assim principalmente nos paratextos, como os materiais de divulgação das produções. Nos

longas-metragens, eles são o tempo todo os agentes Clint Barton e Natasha Romanoff, o que acentua a diferença entre eles e os outros super-heróis, tornando-os os dois Vingadores “mais realistas”.

Além dos títulos, que quase invariavelmente reproduzem os nomes de seus protagonistas, a iconografia marcante das fantasias multicoloridas foi outra estratégia adotada pelo mercado de quadrinhos de super-heróis desde a década de 1940 para garantir a distinção das produções. Com o tempo, esse traço se tornou também uma das mais evidentes características das histórias de super-heróis. De acordo com Karin Kukkonen (2010):

A iconografia refere-se aos atributos visuais com os quais se podem identificar personagens e alegorias. (...) A iconografia foi definida pelo historiador de arte Erwin Panofsky (1955) como um dos níveis em que entendemos as imagens. Está intimamente ligada ao conhecimento cultural que faz parte do conhecimento geral do mundo dos leitores. (KUKKONEN, 2010, p. 49. Tradução Nossa).14

Assim, em histórias majoritariamente protagonizadas por homens brancos, altos e fortes, o uso dos uniformes compõe a iconografia dos super-heróis e é a mais proeminente distinção visual entre eles. Neles, as cores e os símbolos utilizados expressam visualmente a mesma função dos codinomes: ressaltar as principais características distintivas dos personagens, como o “S” no peito do Superman, a fantasia de morcego do Batman, a aranha e as teias no uniforme do Homem-Aranha.

Coogan (2006, p. 167-168) aponta a controvérsia ocasionada pelas versões cinematográficas dos uniformes dos super-heróis. De acordo com ele, os figurinos representavam, até os avanços tecnológicos dos anos 2000, uma grande dificuldade para os filmes de super-heróis por conta da sua aparência icônica que destoa de todo o resto da produção mais indicial dos filmes em live-action. Por outro lado, nas revistas em quadrinhos e nas animações, os trajes desenhados se integram ao mimetismo de todo o resto da história, desenhada com o mesmo nível de realismo visual. Mas não foi apenas a tecnologia do século 21 que tornou mais aceitável a representação dos super-heróis no cinema. Houve mudanças na concepção estética desses personagens tanto nas HQs quanto no cinema em movimentos de conciliação entre os dois meios a partir do sucesso comercial dos filmes, fator decisivo para a paulatina aceitação de elementos cada vez mais particulares dos quadrinhos nas telas.

Em Os Vingadores, os próprios heróis estranham a indumentária uns dos outros quando se encontram pela primeira vez. Entre os membros da equipe, Clint e Natasha

14 Iconography refers to the visual attributes with which one can identify characters and allegories. (...) Iconography has been defined by the art historian Erwin Panofsky (1955) as one of the levels on which we understand images. It is closely tied to the cultural knowledge that forms part of readers’ general world knowledge.

evidenciam visualmente suas diferenças em relação aos demais membros pelo fato de não utilizarem nenhum traje especial além dos genéricos uniformes táticos dos agentes da S.H.I.E.L.D. O Homem de Ferro, cuja armadura completa literalmente a sua identificação junto ao codinome, abraça as explicações tecnológicas para justificar sua existência: a armadura é o Homem de Ferro. Já a iconografia do Hulk diz respeito sobretudo à sua pele verde e seu porte físico consideravelmente exagerado, que também são inerentes à identidade do personagem. Thor não é um terráqueo, e apesar das semelhanças físicas com os humanos, seu comportamento e trajes rendem algumas cenas cômicas em interações com os demais heróis. Ainda assim, ele não está fantasiado: seu traje, que lembra um cavaleiro medieval com armadura e uma longa capa vermelha, são as roupas habituais do deus asgardiano. Assim, o maior estranhamento recai sobre o Capitão América, cuja manutenção do uniforme quase circense com as cores da bandeira dos Estados Unidos não tem absolutamente nenhuma justificativa na diegese de Os Vingadores e contrasta com os demais colegas.

Figura 6 – Capitão América contrasta entre Clint Barton e Natasha Romanoff.

Fonte: Os Vingadores (2012).