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A jornada (infinita) do (super-) herói, ou o super-herói como palimpsesto

1. SUPER-HUMANO

1.3. A jornada (infinita) do (super-) herói, ou o super-herói como palimpsesto

Mostre uma imagem do Homem-Aranha para uma criança em um dos muitos países onde os personagens Marvel chegaram: há grandes chances de ela o reconhecer. Se você encontrou a imagem para mostrar para ela, é porque você também o reconhece. E muito provavelmente os seus pais também o reconheceriam. Contudo, é bastante provável que cada um de vocês tenha conhecido esse e outros super-heróis por meio de produções e meios diferentes. Afinal, o que leva os super-heróis criados em meados do século passado a ainda sobreviverem no imaginário da cultura pop é a sua constante atualização. Dos gibis vendidos em farmácias e bancas de revistas ao topo do circuito comercial de cinema, passando por inúmeras inserções televisivas, jogos de videogame e nos mais variados produtos derivados, os super-heróis se tornaram marcas valiosas e longevas na indústria do entretenimento. Se Stan Lee esperava que o Universo Marvel fosse repassado às gerações futuras, realmente foi o que aconteceu. Talvez mais como franquias do que como lendas mitológicas, mas aconteceu.

Umberto Eco (1993, p. 244) defende que os quadrinhos de super-heróis são, então, representantes notáveis de uma mitificação dos produtos de comunicação de massa. Como tais, os super-heróis operam ao mesmo tempo como personagens míticos e personagens românticos, ou seja: querem ser persistência, como que leis universalmente reconhecíveis e, por isso, um tanto previsíveis; ao mesmo tempo em que são representações da vida cotidiana, essa imprevisível e sempre em mudança (ECO, 1993, p. 248). Nessa fronteira, os super-heróis assumiriam uma personalidade estética em coparticipabilidade entre a inflexibilidade e universalidade do arquétipo mitológico e a imprevisibilidade e abertura das práticas socioculturais. Essa posição resulta em maneiras particulares de o gênero de super-heróis lidar com continuidade, historicidade e temporalidade, as quais examinaremos no capítulo seguinte. Eco argumenta que os super-heróis se valem de sua posição fronteiriça para se beneficiar da contemporaneidade dos personagens românticos e da pregnância dos personagens míticos, mantendo-se vivos e atraentes ao público. Para tanto, esses personagens se desenvolvem de forma cíclica, retomando o status quo inicial depois de cada aventura, a fim de construir uma narrativa contínua sem grandes alterações na configuração que os tornou conhecidos.

Condenados à essa jornada infinita em que os traços definidores dos personagens tendem a ser preservados em detrimento de mudanças muito radicais, as histórias de origem são pontos de ancoragem do desenvolvimento dos super-heróis. São essas histórias que são recuperadas mesmo depois de grandes reviravoltas porque a história de origem geralmente

sintetiza o que é o super-herói, como vimos na página de estreia do Superman. Retornando às histórias de origem, os super-heróis revisitam consequentemente o estabelecimento de suas características principais – sua missão, seus poderes, sua identidade e o universo que se formou à sua volta – e, nelas, os vários subtextos e influências apropriadas na construção do personagem. O filme Thor, por exemplo, atualiza o personagem para o século 21 ao mesmo tempo em que acena para os quadrinhos da década de 1960; esses, por sua vez, evocam temas da mitologia nórdica e da literatura de aventura. Além disso, há outras muitas vozes interferindo nas reconstruções do personagem entre esses pontos. Todos esses textos pulsam no filme de Kenneth Branagh ao mesmo tempo em que ele avança na narrativa que se desdobra nas continuações da franquia. Presente e passado se conectam na criação de algo novo, que não se preocupa em esconder – e por vezes se dedica a evidenciar – esses fios invisíveis que ligam os super-heróis a um extenso conjunto de textos anteriores.

Figura 10 – Thor na Pedra de Altuna (século XI), nas HQs (1962) e no cinema (2011).

Fontes: The Skaldic Project (2018);21 Lee e Kirby (2016); Thor (2011).

Por isso, a personalidade estética dos super-heróis é uma notável representação da metáfora dos palimpsestos – pergaminho antigo cujos textos escritos eram raspados para dar lugar a um novo texto, mantendo, porém, marcas dos anteriores. O termo dá nome ao estudo de Gérard Genette (1989), Palimpsestos: La Literatura en Segundo Grado, que versa sobre as relações entre textos, as quais o autor denomina transtextualidade, transcendência textual: “tudo o que põe um texto em relação, manifesta ou secreta, com outros textos” (GENETTE,

1989, p. 8-9. Tradução nossa)22. Em seu estudo, Genette inclui como uma das formas de transtexualidade as relações intertextuais, cuja teoria foi proposta em 1966 por Julia Kristeva a fim de identificar como novos significados são produzidos em textos a partir da transformação criativa de outros, assumindo a inevitável multiplicidade de vozes em todos os textos poéticos. E, em última instância, tanto a intertextualidade quanto a mais abrangente transtextualidade, sobre as quais retornaremos posteriormente, são desdobramentos dos conceitos cunhados pelo filósofo russo Mikhail Bakhtin, heteroglossia e dialogismo. Essas duas concepções dizem respeito, respectivamente, a uma multiplicidade de heterogêneas vozes ou “línguas sociais” (BAKHTIN, 1981, p. 270) e a “uma descrição da linguagem que torna todos os enunciados, por definição, dialógicos” (MORSON; EMERSON, 2008, p. 506), uma vez que “a vida é dialógica por natureza” (BAKHTIN, 1987, p. 293). Ou seja: Bakhtin parte da consciência de que um texto carrega diferentes vozes (sejam efetivamente as vozes de seus personagens ou as vozes de textos anteriores) e que elas se entrelaçam na construção de sentido. Nessa perspectiva e nas que se desenvolvem a partir dela, considera-se que todos os textos estão, em algum grau, interagindo em diálogo com outros textos, como aponta Robert Stam:

(...) todo e qualquer texto constitui uma interseção de superfícies textuais. Os textos são todos tecidos de fórmulas anônimas inscritas na linguagem, variações dessas fórmulas, citações conscientes e inconscientes, combinações e inversões de outros textos. (STAM, 2000b, p. 226)

De acordo com as teorias que seguem a vertente bakhtiana, então, seria inerente à existência dos super-heróis o diálogo com outros textos, visto que eles compõem um discurso como qualquer outro. O que torna os super-heróis mais expressivos diante da metáfora dos palimpsestos é que eles não apenas se sobrepõem a textos anteriores, como também reforçam alguns de seus contornos. Florescendo como principais representantes das histórias em quadrinhos americanas e depois despontando na indústria cinematográfica, os super-heróis parecem repetir deliberadamente as intenções de legitimação presentes no discurso de Stan Lee ao vislumbrar o Universo Marvel como panteão mitológico: seja para popularizar um meio, seja para se provar dentro de outro, os super-heróis recorrem constantemente às correntes de tradições sobre as quais se construíram, evidenciando sua riqueza de intertextos e flutuando entre inovação e revisionismo.

Da criação do Superman à consagração do Universo Cinematográfico Marvel, os super-heróis se reinventaram várias vezes. Ainda assim, essas transformações não suplantaram

as influências e os aspectos definidores do arquétipo organizados há quase um século, pelo contrário: os ecos de seus predecessores são deliberadamente exaltados e postos em diálogo em contextos diferentes, renovando-os com ares de novidade e, ao mesmo tempo, de tradição e nostalgia. Dessa forma, as narrativas e os formatos populares nas HQs são internalizados como convenções do gênero de super-heróis mesmo quando eles são levados para o meio cinematográfico, como veremos no próximo capítulo.

Muitos são os casos em que tais ecos se evidenciam na criação de super-heróis, como as origens mitológicas dos poderes de Thor ou as referências a O Médico e o Monstro na identidade do Hulk que discutimos anteriormente. Revela-se, então, certa autoconsciência dos super-heróis enquanto construções dialógicas abertamente dedicadas a se apropriar de uma ampla gama de elementos externos ou anteriores. Ao analisar a definição de super-herói sob os aspectos de missão, poderes, identidade e universo relacionando cada um com suas respectivas raízes mitológicas e/ou literárias, nos propomos a observar como a construção de sentido no conceito de super-herói passa, de algum modo, pela exaltação de suas relações mais ou menos diretas com outros textos. Podemos dizer que os super-heróis são, portanto, palimpsestos autoconscientes e autodeclarados.

A conclusão desse percurso inicial é o primeiro passo em direção à análise do universo compartilhado dos super-heróis no cinema como exploração em grande escala do dialogismo evidente desde a criação desses personagens. Caminhamos para a hipótese de que suas narrativas se apropriam de textos externos a ponto de construírem suas próprias mitologias amalgamáticas, das quais se retroalimentam de modo sistêmico atualmente. Por ora, compreender a construção arquetípica dos super-heróis como palimpsesto nos levará a pensar o gênero que originam como igualmente pautado na transtextualidade e na apropriação de convenções de outros gêneros narrativos. É sob a ótica dessas relações transtexuais e ajustando o enquadramento do estudo de personagens para o estudo de gêneros que analisaremos a seguir a trajetória dos super-heróis, especialmente os heróis Marvel, dos quadrinhos ao cinema.