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Continuidade, historicidade e temporalidade: o paradoxo dos super-heróis

2. SUPER-HERÓIS: UM GÊNERO TRANSTEXTUAL

2.2. Convenções de gênero

2.2.1. Continuidade, historicidade e temporalidade: o paradoxo dos super-heróis

Vimos que, antes de ganharem revistas próprias para cada título, as histórias de super-heróis eram publicadas em coletâneas e que, durante as décadas de 1930 e 1940, quando esses personagens começaram a se popularizar, muitos eram os títulos iniciados e descontinuados todos os meses. Nesse contexto, quando o público poderia se interessar ou não por determinado personagem a ponto de ele se provar um bom investimento para a nascente indústria dos quadrinhos, suas aventuras eram publicadas em formato episódico, ou seja, histórias com uma resolução satisfatória, sem grandes ganchos para continuações, que poderiam nunca existir. Porém, se a história de determinado personagem alcançasse relativo sucesso, era certo que ele voltaria em edições seguintes da coletânea ou até mesmo ganharia uma revista própria. Foi o que aconteceu com o Superman, o Homem-Aranha e muitos outros.

Se estabelece assim a continuidade episódica nas histórias de super-heróis, como nas séries de televisão (KLOCK, 2002, p. 25). Firmadas em séries de longa duração, as histórias passam a avançar de aventura em aventura, possíveis de serem entendidas minimamente pelo leitor de primeira viagem que já tenha em mente, pelo menos, a origem do super-herói – o que era relembrado com facilidade pelo codinome e uniforme dos personagens, além de recorrentes textos introdutórios que revisavam essas informações.

Com o passar do tempo, porém, a continuidade das histórias se tornou mais complexa. A fidelidade de leitores de longa data os transformou em colecionadores dos inúmeros capítulos de histórias sem fim e propiciou que as editoras de quadrinhos os brindassem com episódios cada vez mais extensos, convertidos em séries que perduram por várias edições, compondo as sagas – foi colocado, então, um prêmio aos limites da consistência contínua das histórias (BURKE, 2015, p. 137). De acordo com Bjørkan (2013, p. 32), um elemento recorrente na constituição da continuidade dos quadrinhos é o uso de cliffhangers, pontas soltas deixadas ao final das histórias que sugerem que, ainda que a aventura daquela edição tenha seu desfecho, ela também acena para uma nova aventura que está por vir. Essa

mesma lógica presente nos quadrinhos e na TV se apresenta também no cinema, sobretudo a partir das séries de filmes em franquias cinematográficas.

Estendendo-se nessas longas sagas, os quadrinhos de super-heróis frequentemente dialogam com o contexto histórico em que são produzidos. Tais diálogos estão relacionados com o caráter ideológico e metafórico dos super-heróis (COOGAN, 2006, p. 231-233): como produtos da indústria do entretenimento estadunidense, esses personagens encarnam, a princípio, o ideal salvífico que o patriotismo dos EUA reclama para si em relação ao mundo, como vimos no monomito americano de Jewett e Lawrence (2002). Os comentários históricos nas narrativas de super-heróis revelam relações de metatextualidade, intertextualidade e, de certo modo, hipertextualidade com o próprio contexto sociocultural em que são produzidas. A maior ou menor proeminência dessas relações se dá por meio das referências mais ou menos diretas aos eventos reais.

Possivelmente o super-herói cujas histórias mais exploram esse aspecto é o Capitão América. Seu codinome e seu uniforme não deixam dúvidas sobre como a identidade super- heroica de Steve Rogers é um símbolo dos Estados Unidos. As histórias do Capitão América revelam muito sobre a política dos EUA e como a sociedade responde a ela em diferentes épocas, como analisa o pesquisador brasileiro Rodrigo Pedroso (2016). Se, na década de 1940, o Capitão enfrentou nazistas e se tornou estímulo nacionalista aos jovens soldados nos campos de batalha da Segunda Guerra, em outros tempos essa alegoria serviu para comentar outros períodos históricos, nos quais o Capitão nem sempre serviu às autoridades estadunidenses, mas sim aos valores morais da nação, manifestando a temática recorrente da “justiça acima da lei” identificada por Reynolds (1994).

Figura 12 – Capitão América questiona seu papel antes de abandonar o traje em 1970.

Fonte: Lee e Coolan (1970, p. 3).

Como exemplos, destacamos: a Saga do Nômade (1974), quando a exposição midiática do horror da Guerra do Vietnã gerou questionamentos sobre a ação dos EUA no conflito e Steve Rogers também repensou seu papel como soldado, abandonando a identidade de Capitão América após se perguntar se “deveria ter lutado menos e questionado mais” (Figura 12); o período pós-atentados de 11 de setembro de 2001, em que o nacionalismo do personagem foi restaurado em uma nova versão ainda baseada no American Way, dessa vez, porém, permeado de críticas sobre seu papel como símbolo de uma nação violenta; a saga Guerra Civil (2006), na qual o Capitão América se volta contra a Lei de Registro de Super-Heróis, se opondo às autoridades; o título Sam Wilson, Capitão América (2014), quando a crítica ao racismo e a polaridade política se manifesta na substituição de Steve Rogers por Sam Wilson, o Falcão, um super-herói negro que assume a identidade do Capitão América; e finalmente, a saga Império

Secreto (2016), que transforma o Capitão América/Steve Rogers em vilão no mesmo ano em

que Donald Trump escala a presidência dos Estados Unidos.

Contudo, independentemente do nível de evidência desses comentários, a historicidade e as temáticas políticas presentes nos quadrinhos e nos filmes de super-heróis não

suplantam a sua faceta mais conhecida de aventura um tanto escapista. Por maior que seja o aprofundamento social que alguns filmes de super-heróis procurem abordar, sobretudo a partir da segunda década do século 21, o gênero ainda não se furta da estrutura de três atos na qual o clímax invariavelmente se dá em torno de um combate físico contra os vilões, deixando os discursos filosóficos geralmente em segundo plano. Mark Millar, responsável pelo roteiro da série Guerra Civil nas HQs, comenta que, apesar das tensões e possíveis interpretações políticas do conflito interno dos heróis Marvel, “as crianças vão ler e só vão ver uma grande luta de super-heróis” (MILLAR apud BURKE, 2015, p. 38).

Esse receio de se comprometer demais com temas extradiegéticos se relaciona com um dos principais paradoxos das histórias de super-heróis nos quadrinhos. Enquanto tecem comentários sobre acontecimentos contemporâneos à sua produção e publicação e reclamam uma continuidade seriada em suas histórias, um anacronismo se manifesta nessas histórias. Os super-heróis passaram pela Segunda Guerra, pela Guerra Fria, pela Guerra ao Terror e vários outros eventos históricos sem, contudo, envelhecerem significativamente (KLOCK, 2002, p. 27). São personagens publicados por mais de meio século que, na perspectiva da indústria do entretenimento, se converteram em marcas extremamente vendáveis e por isso não devem ser consumidas pelo tempo. De acordo com Bjørkan (2013, p. 32), daí se origina uma estrutura narrativa peculiar nos quadrinhos de super-heróis, marcada pela contradição entre o desenvolvimento seriado, a partir das convenções de continuidade e historicidade; e o desenvolvimento episódico, onde persiste a manutenção do status quo das narrativas.

É sobre essa noção particular da temporalidade nas histórias de super-heróis que repousa parte da análise de Umberto Eco (1993) sobre as HQs do gênero, como vimos no capítulo anterior. Eco aponta o invariável retorno das histórias de super-heróis ao seu estado inicial após cada aventura: um inimigo surge e é derrotado pelo super-herói, restaurando a paz até que, na próxima edição, surja um novo inimigo que também será derrotado no final e assim por diante. Apesar disso, as histórias são tidas como capítulos na continuidade do título, sendo cada aventura considerada como um dia na vida dos personagens, por mais parecido com os anteriores que ele seja. É por isso que Eco (1993, p. 250) defende que os super-heróis estão na fronteira entre os personagens míticos e os personagens românticos. Ou seja: por um lado, reafirmam a mesma narrativa mítica do que já aconteceu a fim de se cristalizarem como arquétipos; por outro lado, sugerem uma continuidade narrativa baseada no que está

Assim, se na Saga do Nômade acompanhamos o abandono da identidade do Capitão América e em Império Secreto descobrimos que ele é um perverso vilão, certamente nas sagas posteriores Steve Rogers volta a vestir o traje e a agir como super-herói moral, impedindo que grandes mudanças se fixem e sobreponham a mitologia original do personagem. Dessa forma, o avanço das sagas é convertido em uma narrativa episódica e cíclica em nível macro: mesmo que perdurem por meses nas publicações apresentando novas situações e reviravoltas nas histórias dos personagens, as sagas dos super-heróis acabam retornando mais ou menos ao cenário inicial após sua conclusão. E isso vale para trocas de identidade, formações de equipes e até mortes de personagens. De acordo com Charles Hatfield (2011):

Uma saga, como Eco disse em outro lugar, implica a passagem do tempo; é capaz de permitir que os personagens cresçam, mudem e talvez até morram; é propensa a ser como uma árvore se ramificando em várias linhas narrativas. Certamente, uma saga comercial aberta ainda é, como Eco observa, essencialmente "uma série disfarçada", repetindo, embora em um quadro pseudo-histórico, a mesma velha história, as mesmas ideias; há uma contradição entre o esforço da saga para o desenvolvimento novelístico e o esforço da série para evitar que a trama se consuma, de modo a manter a infinita explorabilidade dos personagens. No entanto, uma saga, pelo menos, permite o potencial de desenvolvimento de uma rede ficcional imensa e contínua, que os estudiosos Pat Harrigan e Noah Wardrip-Fruin chamaram de narrativa vasta. (HATFIELD, 2011, p. 128. Tradução nossa)32

Essa relação paradoxal entre o avanço da continuidade e a manutenção dos super- heróis como arquétipos praticamente estáticos é atribuída por William James Allred (2011, p. 14) à nostalgia associada ao pós-modernismo – além das motivações comerciais que já discutimos. De acordo com o pesquisador, os leitores de quadrinhos de super-heróis geralmente começam a lê-los na juventude, e a manutenção dos personagens mais ou menos do mesmo jeito que eram no primeiro contato com os leitores ajuda a mantê-los fiéis aos títulos durante anos, seguros do reencontro nostálgico com o passado por meio das representações de simulacros da sua juventude. E a fidelidade dos leitores aos títulos é o elemento central que possibilita as próximas convenções do gênero de super-heróis. Somente com um público que esteja minimamente familiarizado com os personagens, títulos e sagas, as editoras puderam explorar os conceitos de universos e multiversos, se valendo de recursos autorreferenciais ou metatextuais.

32 A saga, as Eco has said elsewhere, entails the passage of time; it is able to let characters grow, change, and

perhaps even die; it is prone to a treelike branching into various narrative lines. Admittedly, an open-ended, commercial saga is still, as Eco observes, essentially “a series in disguise,” repeating, albeit in a pseudo-historical framework, the same old story, the same ideas; there is a contradiction between the saga’s effort toward novelistic development and the series’ effort to avoid consumption, so as to maintain the infinite exploitability of the characters (Limits 87). Yet a saga at least allows the potential to develop an immense, ongoing fictive network, what scholars Pat Harrigan and Noah Wardrip-Fruin have called a vast narrative (2–3).