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3. UCM, UM GIBI NA TELA DO CINEMA

3.5. Uma nova linha no multiverso

Antes de partirmos para a análise diegética do UCM, vejamos as conclusões parciais a que chegamos com esse capítulo, que também pavimentam a abordagem que faremos no percurso final da pesquisa. A principal delas é que o Universo Marvel no cinema constitui uma unidade autônoma, cada vez mais autorreferente e independente de sua versão quadrinística. Se a evoca em suas convenções e em seu estilo, o faz de modo consciente e geralmente pelos motivos estéticos e comerciais que expomos aqui.

Por esse motivo, como Jeffries propõe, também não traçaremos uma análise comparada dos acontecimentos narrados nos quadrinhos e no cinema. Já está posta a independência de ambos, cada um regido por regras particulares do respectivo meio, por mais dialógicos que sejam. Acreditamos que as relações entre as linguagens e as mídias que analisamos até aqui são suficientes para entendermos a dinâmica em que o UCM se insere e assim podermos finalmente nos dedicar a ele como fenômeno próprio. A proposta de Jeffries

dá conta de uma parte dessa análise, a que trata dos aspectos mais ligados à materialidade. É nesse aspecto que se encontram as relações estétticas que os filmes estabelecem com as HQs e onde se produzem experimentações estilísticas e visuais a partir dos cruzamentos entre as linguagens.

Como vimos, esses encontros são propiciados tanto pela afinidade entre os meios, quanto pelo contexto sociocultural que encaminha as mídias para a convergência (JENKINS, 2009). “O filme, portanto, encontra-se competindo em um mercado muito grande, que não mais coincide com a instituição cinematográfica, realocando-se completamente dentro da indústria do entretenimento”, apontam Innocenti e Pescatore (2012, p. 128. Tradução nossa).70

O contexto da cultura da convergência nos apresenta novas formas de lidar com textos espalhados em diferentes mídias. Partimos das franquias crossmidiáticas ou derivadas – nível no qual ainda seria possível se limitar a análises comparadas de adaptações – para a popularização das franquias transmidiáticas, em que a horizontalidade e simultaneidade das narrativas em vários meios reclama novos enquadramentos metodológicos.

Na forma ideal de narrativa transmídia, cada meio faz o que faz de melhor – a fim de que uma história possa ser introduzida num filme, expandida pela televisão, romances e quadrinhos; seu universo possa ser explorado em games ou experimentado como atração de um parque de diversões. Cada acesso à franquia deve ser autônomo, para que não seja necessário ver o filme para gostar do game, e vice-versa. Cada produto determinado é um ponto de acesso à franquia como um todo. (JENKINS, 2009. p. 138)

Por isso, ao adotarmos a terminologia da transcriação para tratar da construção do UCM, não pretendemos abandonar sua origem crossmidiática, mas priorizar a análise da construção de um novo fenômeno independente. Esse novo fenômeno, por sua vez, se mostra transmidiático, visto que o UCM integra, além dos filmes: curtas-metragem lançados como extras em seus blu-rays, os chamados Marvel One-Shots; edições de quadrinhos que adaptam os filmes e introduzem eventos dos próximos títulos, no selo de HQs MCU Official Tie-Ins; e séries de TV e plataformas de streaming (Tabela 1).

Mas o projeto da Marvel Studios também não se limita a uma franquia transmidiática. Na verdade, ele consiste no conjunto delas, na união de diferentes franquias para compor o universo que se expande para além do cinematográfico. Trata-se de uma versão multimidiática do conceito de universo compartilhado, que já integrava diferentes títulos nas HQs. Agora são diferentes títulos, de diferentes franquias, em diferentes mídias, todos integrados a um mesmo universo, maior que a soma deles (JENKINS, 2009, p. 161).

70 Il film si trova pertanto a competere in un mercato molto ampio, che non coincide più con l’istituzione

Por isso, a perspectiva das narrativas transmidiáticas abarcaria apenas parte do que UCM realmente opera. Innocenti e Pescatore (2012) se dão conta da inevitável expansão dos produtos de entretenimento em direção a outros níveis de convergência midiática e apontam para a abordagem dos ecossistemas narrativos. Desenvolvido a partir de desdobramentos de alguns pontos da teoria de Jenkins e de modelos de arquietetura da informação e design de conteúdo, o paradigma se propõe a descrever universos narrativos considerando tanto os aspectos diegéticos quanto as influências extra-diegéticas em sua produção.71 Concebe-se, assim, um nascente modelo teórico para analisar esses fenômenos indo além da comparação entre mídias, mas considerando a cooperação entre elas e entre seus elementos narrativos.

No próximo capítulo, abordaremos esse paradigma analisando a primeira fase do UCM. As conclusões prévias que encontramos até aqui nos levam a considerar que a independência e complexidade do UCM por si só já constitui um vasto ecossistema, construído na acomodação dos super-heróis na dinâmica das franquias cinematográficas. Mais uma vez esses personagens manifestam o poder de colonizar os meios e contextos em que são inseridos, os forçando a se concatenar como ambientes que se avizinham, oceanos que se misturam.

Dessa forma, as versões em audiovisual dos super-heróis Marvel constroem universo coeso que nada deve aos já existentes nas HQs. O Universo Cinematográfico Marvel já é reconhecido como mais uma das muitas realidades alternativas dos super-heróis, sendo catalogado como o Universo-199999.72 Essa sistematização proposta pelos próprios produtores e fãs é uma forma indireta, mas eficaz, de explicar como se refutam os velhos argumentos que tentam reduzir os filmes a uma versão mais pobre dos quadrinhos; bem como as infrutíferas discussões sobre comparação, valoração e fidelidade do UCM às HQs. A Marvel Studios criou uma nova forma de sobrevivência e renovação dos super-heróis em outra realidade diegética, como foi o Ultimate e tantos outros com os quais os leitores já estão acostumados e sobre os quais não cabem obsessivas comparações. A diferença é que esse novo universo se expande em várias mídias e se mantém autossuficiente, sem interferir diretamente nos demais (ainda). Fora isso, o UCM nada mais é do que uma expressão bilionária e multimidiática daquilo que os super-heróis e seu público conhecem tão bem: só mais uma nova linha no multiverso.

71 Grupos de pesquisa da Universidade de Bolonha desenvolveram um site sobre paradigma, no qual expõem

conceitos, metodologias e resultados: <http://www.narrativecosystems.org> Acesso em 05 ago. 2018.

72 As realidades alternativas do Multiverso dos super-heróis ganham indicações numéricas. A realidade em que

se inserem as primeiras HQs, por exemplo, é o chamado Universo-616.