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Universo compartilhado: os heróis mais poderosos do universo são vizinhos

2. SUPER-HERÓIS: UM GÊNERO TRANSTEXTUAL

2.2. Convenções de gênero

2.2.2. Universo compartilhado: os heróis mais poderosos do universo são vizinhos

No capítulo anterior, vimos que o egocêntrico universo de um super-herói se ressignifica quando fica estabelecido que ele coabita uma mesma realidade narrativa que outros super-heróis. Ao se encontrarem periodicamente nos crossovers, as relações entre os títulos de cada personagem se intensificam e se entrelaçam de vez quando se firma a construção de um universo compartilhado multinuclear (NEVINS, 2011b).

A Marvel Comics abraçou os cruzamentos de histórias de seus personagens como a sua principal característica a partir da década de 1960, mas os indícios para o universo compartilhado dos super-heróis já estavam presentes nas HQs desde pelo menos os anos 1940. Na época, a editora ainda se chamava Timely Comics e publicava, entre outros títulos, as histórias dos super-heróis Tocha Humana e Namor – criações de Carl Burgos e Bill Everett, respectivamente. O primeiro é um homem sintético que foge do laboratório onde é criado, ganhando as ruas com o corpo coberto de chamas e gerando fascínio e medo; o segundo é o Príncipe Submarino, um vilão em busca de vingança contra a humanidade depois que uma expedição no ártico dizimou sua raça subaquática.

As histórias dos dois personagens eram publicadas em uma coletânea chamada

Marvel Mystery Comics desde 1939. Na sétima edição da revista, o primeiro encontro de

personagens de títulos distintos da editora foi sugerido. Diferente dos heróis da concorrente DC Comics, cujas histórias se passam em versões fictícias das grandes cidades estadunidenses, tais como Gotham City e Metropolis (BUKATMAN, 2003, p. 184), as aventuras dos principais personagens da Timely/Marvel eram ambientadas em réplicas explícitas da própria Nova York, com direito a representações de pontos turísticos da cidade desenhados como cenários. Sendo assim, com os super-heróis vivendo nas mesmas ruas que os leitores viviam, a noção de realidade nas histórias parecia mais clara, bem como a iminência de que, mais cedo ou mais tarde, esses personagens acabariam se esbarrando por aí. Assim, as histórias até então isoladas começaram a se relacionar em um simples quadro no meio da sétima história de Namor, na qual seu interesse amoroso, a policial Betty Dean, lhe confidencia que a polícia conta com um novo reforço para capturar o Príncipe Submarino, e esse reforço é ninguém menos que o Tocha Humana. Betty estava certa e o encontro entre Namor e Tocha Humana realmente aconteceu alguns números depois. Em uma edição especial, os dois personagens se digladiavam em plena luz do dia em Nova York, no primeiro crossover do Universo Marvel, inaugurando também uma tendência incorporada às convenções dos futuros outros encontros entre super-heróis: seu

primeiro contato se dá, geralmente, por meio de algum confronto entre os personagens – ainda que em seguida eles se tornem aliados.

De acordo com Sean Howe:

Foi a semente de uma revolução: o universo fictício, em que dois personagens concebidos por imaginações distintas, era o mesmo. Mas será que era um universo fictício? Ali, logo atrás do Tocha, não estava a silhueta de Manhattan? O Príncipe Submarino não mergulhava no Rio Hudson? (HOWE, 2013, p. 24).

Figura 13 – Betty Dean fala a Namor sobre o Tocha Humana.

Fonte: Everett (1940).33

O principal desdobramento dos crossovers e dos universos compartilhados nos quadrinhos de super-heróis é a formação das superequipes. Ora, se há tantos super-heróis coexistindo em um mesmo universo e as convenções de gênero indicam que suas intenções são, ainda que com margem para variações, geralmente pró-sociais a favor da humanidade, por que não unir as forças?

Nos quadrinhos estadunidenses, a primeira superequipe foi formada na DC Comics ainda em 1940, a Sociedade da Justiça.34 Mas foi na década de 1960 que os crossovers e os grupos de super-heróis se tornaram forte tendência editorial nos quadrinhos. Entre os mais proeminentes títulos dessa época está Liga da Justiça (1960), nova versão da Sociedade da

33 Disponível em: <https://readcomiconline.to/Comic/Marvel-Mystery-Comics/Issue-7?id=50949>. Acesso em

12 dez. 2017.

34 Publicada pela DC Comics pela primeira vez na revista All-Star Comics #03 (1940), a Sociedade da Justiça era

um título que tinha por objetivo inicialmente reunir personagens que não tinham revistas próprias nos quadrinhos, a princípio: Sr. Destino, Lanterna Verde, Flash, Homem-Hora, Sandaman, Gavião Negro, Átomo e Espectro.

Justiça, incluindo Batman, Superman e Mulher-Maravilha na formação permanente do grupo.

Na Marvel, a fórmula foi reproduzida em Quarteto Fantástico (1962) e, finalmente, em Os

Vingadores (1963).

A ideia da equipe surgiu em setembro de 1963, quando a Marvel Comics vivia um dos seus momentos de mais intensa produção de novos títulos. Os quadrinistas Stan Lee e Jack Kirby, responsáveis pela maioria deles, planejaram o lançamento de Demolidor para aquele mês, mas a produção estava atrasada. De acordo com o editor Tom Brevoort:

A revista Demolidor 1 estava muito atrasada. Naqueles tempos, era preciso reservar a data da impressão com bastante antecedência – se a revista não estivesse pronta, você pagaria pelo tempo da impressora, quer estivesse impresso algo ou não! Por isso, foi vital conseguir algo para lançar a tempo... Na tentativa de resolver o problema, Stan teve a grande sacada de fazer um roteiro reunindo todos os heróis já publicados. A revista não exigiria muito tempo de preparo, pois os personagens (e até o vilão) já existiam. Assim, os dois bolaram a história, Kirby desenhou às pressas, Dick Ayers cuidou da arte-final, tudo de última hora, e a revista saiu no mesmo mês que X-Men nº 1. (BREVOORT, 2015, p. 142).35

Figura 14 – Uma das primeiras formações dos Vingadores nos quadrinhos, 1964.

Fonte: Kirby (1963).36

Os Vingadores é um título inerente à dinâmica dos universos compartilhados, que

não seria possível sem a integração de diferentes histórias. A equipe, que antecedeu muitas outras reuniões de super-heróis Marvel nos quadrinhos, como Os Defensores e Os Illuminati,

35 Relato presente nos anexos da primeira edição da coleção Os Heróis Mais Poderosos da Marvel: Os Vingadores

(2015).

teve várias formações durante as décadas e vem sendo o epicentro do Universo Marvel como narrativa coesa nos quadrinhos e no cinema. Trata-se de um título que depende necessariamente do cruzamento de outras pré-existentes e que, em troca, reverbera suas consequências em todos os títulos solo.

Tal fenômeno é o ponto alto da transcendência textual dos quadrinhos e filmes de super-heróis, representando o momento em que o dialogismo do gênero se volta a textos de si próprio, convertendo as relações de intertextualidade e metatextualidade em regras para o funcionamento do universo compartilhado. Esse, por sua vez, se retroalimenta de modo sistêmico, tornando-se um hipertexto de todos os títulos integrados ao mesmo tempo em que esses títulos se comportam como espécies de paratextos do ponto de vista da narrativa macro do universo compartilhado.

Em outras palavras, Os Vingadores – nas HQs ou nos filmes – se pauta essencialmente no fato de que os títulos dos heróis Marvel precisam citar e comentar uns aos outros para expressar a sua coexistência no mesmo universo. Sem esses títulos solo (hipotextos), não haveria o título compartilhado da superequipe (hipertexto). E ao analisar toda a estrutura narrativa do Universo Marvel, ainda é possível identificar os filmes que antecedem

Os Vingadores ou os quadrinhos paralelos aos da equipe como prequels ou prólogos das

aventuras maiores envolvendo todo o grupo de super-heróis.

2.2.3. Multiverso: brincando com as realidades

Com a formação das primeiras superequipes, o conceito de universo compartilhado nas HQs se difundiu e as sagas aos poucos se transformaram em megassagas ou megaeventos – grandes séries de publicações reunindo vários super-heróis e superequipes de títulos diferentes em uma só aventura e explorando ainda mais as relações transtextuais entre os títulos. Mercadologicamente, a oportunidade era a mesma dos primeiros crossovers: o grande apelo comercial que o encontro de super-heróis tinha junto ao público foi elevado ao máximo com a introdução das megassagas, edições planejadas sob medida para estourar nas vendas. Em 1984, a Marvel lançou a série Guerras Secretas, conhecida como o primeiro megaevento dos quadrinhos de super-heróis. A série, dos quadrinistas Jim Shooter, Mike Zeck e Bob Layton, narra a inesperada reunião de dezenas de heróis e vilões da editora em um planeta desconhecido durante 12 edições. Sean Howe (2013, p. 280), revela que por trás da trama megalomaníaca havia uma motivação abertamente comercial: a série tinha por objetivo divulgar uma extensa coleção de bonecos dos personagens Marvel produzidos pela empresa de brinquedos Mattel.

Além de impulsionar as vendas de várias edições abarcadas pelas séries, as megassagas de super-heróis também podem modificar as narrativas da complexa continuidade dos títulos, como aconteceu pela primeira vez com a saga Crise nas Infinitas Terras (1985- 1986), série que tinha por objetivo reorganizar o universo do super-heróis da DC Comics. A narrativa compartilhada estava repleta de reviravoltas e trocas de personagens após anos de publicação e as histórias sofriam com a incompatibilidade temporal entre as narrativas e os acontecimentos reais que elas referenciavam, além da necessidade de atualização dos personagens confrontando a manutenção das versões clássicas. Esse cenário levara à ampliação do universo narrativo dos super-heróis em linhas alternativas, compondo um multiverso.

Um dos primeiros indícios do estabelecimento de universos alternativos nas HQs de super-heróis aconteceu com o personagem Flash, da DC Comics (KUKKONEN, 2010, p. 49). Em 1956, a publicação Showcase #04, apresentava Barry Allen, um novo Flash. A primeira versão do personagem, Jay Garrick (no Brasil, Joel Ciclone), publicado desde 1940, foi então sobreposta pelo novo velocista. Mas, em 1961, as duas versões se encontram na história Flash

de Dois Mundos, na qual Barry Allen corre tão rápido que chega a romper a barreira do tempo

e cai no universo do Flash original. Ficou estabelecido, então, que existe mais de uma realidade, mais de um universo nas histórias de super-heróis. O multiverso é composto por várias linhas temporais alternativas, “realidades mutuamente incompatíveis” (KUKKONEN, 2010, p. 40) em que os personagens podem ter identidades diferentes, ações e conflitos mais radicais e consequências mais profundas que a sua versão mais conhecida.

O multiverso é um conjunto de mundos narrativos mutuamente incompatíveis. Em princípio, esses universos podem ser vistos como contrafactuais: mudando elementos particulares das situações dos personagens, eles se relacionam um ao outro como versões de "o que aconteceria se" (KUKONNEN, 2010, p. 55. Tradução nossa)37 Assim, não só é possível que haja diferentes versões de um mesmo super-herói, como essas versões podem eventualmente se encontrar, expandindo a lógica dos crossovers para o cruzamento de universos inteiros dentro do multiverso. Depois do Flash, muitos outros super-heróis, superequipes e universos ganharam versões alternativas, várias delas.

37 The multiverse is a set of mutually incompatible storyworlds. In principle these storyworlds can be viewed as

counterfactuals; changing particular elements of the characters’ situations, they relate to one other as “what if”- versions.

Figura 15 – Página de abertura da história Flash de Dois Mundos, 1961.

Como pontuou anteriormente Allred (2011), essa expansão dos multiversos só foi possível pela fidelidade dos leitores, que conseguiam acompanhar a grande carga de informações adicionadas aos títulos com as novas linhas temporais e seus inúmeros cruzamentos – o que, de acordo com Bjørkan (2013), contribuiu também para a construção do estereótipo do fã de quadrinhos como nerd. Karin Kukonnen (2010) defende que, de fato, o leitor de quadrinhos de super-heróis se adequa a um modelo mental diferente da cosmologia clássica, baseada na realidade como algo singular, para lidar com a dinâmica plural do multiverso. A compreensão dos multiversos, aponta a autora, é suportada por certas adequações nos aspectos definidores dos super-heróis, sobretudo a iconografia – e então versões diferentes de um mesmo personagem tendem a ser desenhadas com pequenas variações em suas características visuais que permitam sua distinção – e a jornada do herói como “substituto do leitor”, quando o personagem que atravessa as linhas temporais alterantivas vai descobrindo suas particularidades enquanto serve de olhos do público, como aconteceu com Barry Allen no encontro entre os Flash em 1961.

Com os multiversos, as possibilidades de exploração das histórias de super-heróis se tornam praticamente ilimitadas. A aplicação do conceito resolveu, em um primeiro olhar, o problema das narrativas previsíveis e estáticas sem prejudicar a versão canônica dos personagens. Contudo, a expansão dos universos também gerou um dos maiores problemas das histórias em quadrinhos de super-heróis: a complexidade crescente na continuidade cruzada de histórias e universos diferentes, por vezes marcada por muitas incongruências. Isso porque, enquanto outros universos iam sendo criados, a continuidade dos títulos ainda era perseguida por leitores e editores. E, do ponto de vista da produção, manter uma continuidade sólida se tornava cada vez mais difícil com a substituição de quadrinistas responsáveis por cada título com o passar dos anos.

Crise nas Infinitas Terras representa, então, a primeira vez que os editores tentaram

solucionar o problema causado pela superexploração do conceito de multiverso nas histórias de super-heróis. A série, dos quadrinistas Marv Wolfman e George Pérez, proporcionou um grande

crossover entre as versões dos super-heróis da DC advindas dos vários universos que haviam

sido criados desde a década de 1960. Ao final das 12 edições, a crise resultaria em apenas um universo que seria levado adiante pela editora, eliminando as realidades alternativas – pelo menos por algum tempo. Para reorganizar as publicações e assim garantir que novos leitores conseguissem acompanhar as histórias dos personagens, a megassaga parte de um cenário complexo onde coexistem vários universos que nem mesmo os fãs mais dedicados

conseguiriam acompanhar se o descontrole na continuidade provocado pelas trocas de artistas não fosse freado. Assim, a série se valeu de recursos autorreferenciais presentes em muitas produções da indústria do entretenimento e que se tornaram recorrentes nos quadrinhos de super-heróis a partir de então, como os retcons e reboots.

As duas estratégias consistem em revisar fatos presentes na cronologia das histórias, seja recontando certos episódios de forma diferente (retcon) ou ignorando radicalmente os fatos ocorridos e começando a narrativa de novo (reboot). De acordo com Bjørkan:

Retcon, abreviação de "continuidade retroativa", é a prática, comum às franquias de super-heróis de longa duração, de reescrever eventos passados para atender às necessidades atuais da história. (...) Reboots. No caso, quando o universo fica muito complicado de acompanhar e isso evita que novos leitores sigam as histórias eternamente em andamento, toda a linha de publicação será descartada sem cerimônia e tudo será recomeçado de zero. (Bjørkan,2013, p. 32-33. Tradução nossa)38

Apesar dos problemas acarretados pela dificuldade de manter um universo coeso em tantos títulos produzidos por pessoas diferentes e por tanto tempo, a Marvel Comics se agarrou ao conceito de universo compartilhado e contínuo, negando-se por décadas a realizar

reboots radicais, a fim de manter a sua orgulhosa cronologia ininterrupta. O cenário só mudou

em 2015, com a publicação da megassaga Guerras Secretas II, que repetiu a mesma estratégia de Crise nas Infinitas Terras na Marvel ao reunir diversas realidades alternativas em um arco que resultaria em apenas um universo sobrevivente, em tese. Até então, a editora explorava somente as realidades alternativas para viabilizar as mudanças mais significativas em seus títulos.

No cinema, porém, o UCM foi construído primando pela continuidade de uma única realidade compartilhada pelas suas franquias. O alto grau de abstração dos multiversos e sua particular concepção cosmológica não ganhou representações cinematográficas ainda: analisando a trajetória dos super-heróis nas HQs e nos filmes, é possível esperar que em pouco tempo essa convenção também seja representada no cinema. Na próxima seção, vamos percorrer essa trajetória a partir da análise das principais fases do gênero de super-heróis.

38 Retconning, short for "retroactive continuity", is the practice, common to long-running superhero franchises, of

rewriting past events to suit current story needs. (…) Reboots. On occasion, when the universe gets too convoluted to follow, and prevents new readers from jumping into the eternally ongoing stories, the entire publishing line will be unceremoniously scrapped and begun over from scratch.