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3. UCM, UM GIBI NA TELA DO CINEMA

3.2. Nas fronteiras entre quadrinhos e cinema

3.2.1. Parentesco ilusório

Historicamente, essas pontes sempre existiram, amplamente exploradas pelos meios de comunicação de massa originados pelas duas linguagens. Se o UCM é o produto de anos de reformulações dos super-heróis, atravessadas por inúmeras questões socioculturais e comerciais, também é resultado de um século de aproximações entre HQs e filmes:

O século XX foi marcado por dois grandes meios de comunicação: o cinema e as histórias em quadrinhos. Ambos perpassaram esse século, deixando sua marca em todo o mundo e influenciando todas as outras formas de comunicação. Um exerceu, sobre o outro, influências significativas, que envolveram desde o aproveitamento de personagens e temáticas até a incorporação ou desenvolvimento de técnicas específicas de linguagem. (VERGUEIRO, 2017, p. 44)

É recorrente a observação de certos paralelos entre as mídias dos quadrinhos e do cinema, como a criação do Comics Code Authority diretamente baseada no Código Hays (HOWE, 2013) ou a própria ressurreição dos super-heróis nas telonas depois da intensa crise nos quadrinhos no final da década de 1990. Outros paralelos citam o ano de 1895, em que ocorreram fatos emblemáticos para o desenvolvimento das duas mídias: a primeira exibição do cinematógrafo dos Irmãos Lumiére e a estreia da tirinha Menino Amarelo (Yellow Kid), do quadrinista Richard Felton Outcault, no jornal New York World. Seria coincidência os quadrinhos e o cinema terem seus marcos comumente atribuídos como pontos iniciais exatamente no mesmo ano? Seria mais coincidência ainda esses dois marcos não representarem, de fato, a gênese de nenhuma das duas linguagens?

A ideia de uma predestinação ao encontro de duas mídias/linguagens/artes é encantadora, mas pode ser explicada sob um ponto de vista um pouco mais pragmático. Na verdade, quadrinhos e cinema são resultantes da exploração das narrativas visuais que se difundiu fortemente sobretudo entre o final do século 19 e o início do século 20. São, portanto, questões sociais e tecnológicas que justificam a sua popularização mais ou menos no mesmo período, o que leva à atribuição de um “parentesco ilusório” entre ambos, defende o francês Benoît Mouchard (2004).

De acordo com a pesquisadora Flávia Cesarino Costa (2006, p. 18), é impreciso dizer que o cinematógrafo dos Irmãos Lumiére representa o nascimento do cinema, uma vez que o próprio equipamento é desdobramento de várias outras versões anteriores. Além disso, ao mesmo tempo ou até antes de sua criação, o desenvolvimento da fotografia, a invenção do celuloide e a construção de aparelhos projetores levavam inventores ao redor do mundo a

desenvolverem equipamentos que experimentavam as imagens em movimento. O teórico brasileiro Arlindo Machado (1997, p. 11-13) ressalta, a partir de Comoli (1975), que a busca por delimitar um marco inicial para o cinema perseguiu vários estudos da área durante muito tempo, sempre se mostrando infrutífera e revelando defesas de pontos de vista muito mais calcados em certo nacionalismo.

O mesmo pode ser dito dos quadrinhos. O Menino Amarelo de Outcault, embora tão importante para as HQs quanto a invenção dos Irmãos Lumiére para o cinema no que diz respeito à popularização das respectivas linguagens, nem de longe pode reclamar pioneirismo histórico. Em seu livro Imageria: O Nascimento das Histórias em Quadrinhos, o pesquisador Rogério de Campos (2015) realiza um cuidadoso estudo arqueológico das histórias em quadrinhos bem antes de 1895, resgatando títulos como As aventuras de Nhô-Quin ou

impressões de uma viagem à corte, série em quadrinhos do ítalo-brasileiro Ângelo Agostini,

publicada no Brasil desde 30 de janeiro de 1869 (data que mais tarde se tornou o Dia do Quadrinho Nacional); e o trabalho do artista suíço Rudolf Töpffer, datado da década de 1830.

Reforçamos assim o que foi defendido anteriormente em relação aos gêneros e metagêneros, agora em relação às linguagens e aos hipergêneros: a delimitação de um marco inicial é sempre arbitrária e em pouco acrescenta à teoria sobre quaisquer fenômenos sociais; pelo contrário, sempre tira-lhes algo.

Assim, mais do que coincidências e datas, interessa-nos analisar como se dão os contatos entre quadrinhos e cinema enquanto mídias e linguagens. Esses contatos se materializam mais diretamente na origem de relações hipertextuais entre filmes e HQs, que se confundem com a própria trajetória das duas mídias.

Liam Burke (2015) e Rogério de Campos (2015) apontam a existência de versões cinematográficas de HQs desde os primeiros anos do cinema, como o filme O Regador Regado (L'Arroseur Arrosé, Irmãos Lumiére, 1895), baseado em uma página de quadrinhos cujas variadas versões datam de cerca de 10 anos antes (BURKE, 2015, p. 11).62 Não com o vão objetivo de responder qual veio primeiro, tal resgate histórico serve para observar como a adaptação de HQs para o cinema já era bastante frequente antes mesmo dos primeiros filmes de super-heróis e impulsionar o questionamento dos motivos que favorecem tais traduções.

62 A página em questão apresenta a mesma anedota narrada no filme: um homem é vítima de uma traquinagem de

seu parceiro que o molha bloqueando e depois liberando o fluxo de água de uma torneira. O levantamento das muitas versões dessa HQ encontra-se disponível em: <http://www.topfferiana.fr/2010/10/arroseurs-arroses/>. Acesso em 08 mai. 2018.

Figura 37 – Página de Arrosage Public (1885) e fotogramas de L'arroseur Arrosé (1895).

Fontes: Toppferiana (2010); Starico Movies (2018).63

Uma primeira resposta pode ser atribuída no sentido comercial: vimos anteriormente que as histórias em quadrinhos publicadas nos jornais e depois em álbuns próprios, bem como as obras da literatura popular, serviam como principal fonte para a criação de filmes, sobretudo quando o cinema se tornou uma atração de entretenimento nas primeiras décadas do século 20, por serem tramas conhecidas e queridas pelo público. Por isso, a produção das séries em live-action baseadas nos personagens Flash Gordon (1936), Dick Tracy (1937) e dos super-heróis da Era de Ouro na década de 1940 não representou mais do que uma consequência mais ou menos esperada do sucesso desses personagens nas páginas. O apelo popular dos títulos os levava a ganhar vida em outros meios, como acontece com as franquias crossmidiáticas. Michael Uslan (2015) cita a trajetória do personagem O Sombra como sintomática desse período: o vigilante surge nos programas de rádio em 1930, ganha uma versão cinematográfica em 1937 e se torna protagonista de uma série de tiras em quadrinhos nos jornais em 1940. Essa lógica desemboca na longa trajetória dos super-heróis dos quadrinhos ao cinema que mapeamos no capítulo 2.

63Imagens disponíveis respectivamente em <http://www.topfferiana.fr/2010/10/arroseurs-arroses/> e <https://stari.co/movies/arroseur-arrose>. Acessos em 02.06.2018.

Contudo, além das motivações comerciais sobre as quais já discutimos, quadrinhos e cinema também possuem outras relações mais íntimas que dizem respeito não somente às mídias e aos contextos externos às obras. Há relações que se observam entre as próprias linguagens, que se intensificam por esses catalisadores externos, mas existem independentes deles. São essas relações que mais interessam a Barbieri e à parte estilística da nossa análise; são os motivos que colocam os quadrinhos e o cinema em condição de proximidade imanente.