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A identificação da oferta de atendimento público à saúde como atividade de filantropia e caridade remonta às origens do serviço de saúde brasileiro e à relação direta com o trabalho desenvolvido pelas santas casas de misericórdia, ainda no Brasil colônia.

Em artigo publicado na Revista de Bem com a Vida, em 2013, a historiadora Ana Paula Marchesotti discorre sobre o aparecimento das santas casas de misericórdia no Brasil. Segundo ela, oprimeiro serviço público de saúde brasileiro foi a Santa Casa de Olinda, inaugurada em 1539. Outras 16 instituições semelhantes foram criadas no país até a Proclamação da Independência, em 1822. A autora explica que o modelo brasileiro – inspirado na Santa Casa de Lisboa, fundada em 1498 – tem como princípio basilar

a prática das obras da misericórdia compiladas por Tomás de Aquino no século XII: dar de comer a quem tem fome; dar de beber a quem tem sede; vestir os nus; visitar os doentes e presos; dar abrigo a todos os viajantes; resgatar os cativos; enterrar os mortos. (MARCHESOTTI, 2013, p.10)

Essas instituições, na avaliação de Marchesotti, sempre foram muito mais do que hospitais, não apenas cuidando dos enfermos, mas “alimentando os famintos, sepultando os mortos, educando os enjeitados em seus orfanatos e acolhendo os

recém-nascidos abandonados na Roda dos Expostos21” (MARCHESOTTI, 2013, p.10).

Os dados do Ministério da Saúde apontam que hoje existem 1.748 santas casas em atividade no país, conveniadas ao Sistema Único de Saúde.22 Ao longo dos anos, o porte e a capacidade de atendimento dessas instituições ampliaram-se consideravelmente, muito em decorrência do crescimento dos repasses públicos disponibilizados23 a elas. Isso permitiu expandir o espectro de atendimento para a população “mais favorecida economicamente”, muitas vezes até em detrimento dos menos favorecidos para os quais estão, teoricamente, vocacionadas.24

Recorrendo à história da saúde no Brasil, observamos que, antes da chegada da Família Real Portuguesa, não havia médicos formados no país. Segundo Polignano (2001, p. 3), a cura para os problemas de saúde até então era alcançada a partir do uso dos recursos próprios da terra, como plantas e ervas, agregado aos conhecimentos empíricos e habilidades dos chamados curandeiros.

Polignano (2001, p. 4) relata que, em 1808, Dom João VI fundou os primeiros centros de formação de profissionais médicos no Brasil: o Colégio Médico-

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A Roda dos Expostos – posteriormente abolida pelo Código de Menores de 1927 – era uma espécie de cilindro giratório fixado no muro do hospital da santa casa para acolhimento de recém- nascidos desamparados. A criança colocada na roda era conduzida para dentro das dependências da instituição “sem que a identidade de quem ali a colocasse fosse revelada. As crianças eram acolhidas e educadas pela instituição.” (MARCHESOTTI, 2013, p.10).

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Fonte: Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde, Coordenação Geral de Hospitais, Secretaria de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde. Atualização dos dados: maio 2015).

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De acordo com levantamento mais recente (2014) da Coordenação-Geral de Controle de Serviços e Sistemas/Departamento de Regulação, Controle e Avaliação de Sistemas/Secretaria de Atenção à Saúde, do Ministério da Saúde, as 450 santas casas que atendem pelo SUS tiveram um aporte considerável de recursos públicos a partir de 2013, com a implementação do modelo de contratualização dos serviços. Pela nova modalidade de contrato, essas instituições passaram a receber, mensalmente, um montante global de recursos e não apenas o pagamento por procedimento realizado, como acontecia até então. Somente em 2014, o Ministério da Saúde destinou R$ 14,3 bilhões para custeio de atendimentos ambulatoriais, média e alta complexidade realizados pelas santas casas. (Coordenação Geral de Controle de Serviços e Sistemas/Departamento de Regulação, Controle e Avaliação de Sistemas/Secretaria de Atenção à Saúde, Ministério da Saúde, 2014).

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Até 1990, as pessoas sem capacidade de pagamento ou não contribuintes da previdência social, dependiam exclusivamente da caridade para receber atenção médico-hospitalar.” (PATRÍCIO; TEIXEIRA, 2011, p. 57). Com a instituição do Sistema Único de Saúde (SUS) e a institucionalização do acesso universal e igualitário, “a exclusão formal desapareceu, mas não a iniquidade no acesso aos serviços de saúde no Brasil. Esta subsiste, seja em decorrência de fatores como a desinformação que está associada aos diferenciais de escolaridade, seja por deformação em determinadas políticas públicas.” (PATRÍCIO; TEIXEIRA, 2011, p. 57). Patrício e Teixeira abordam também outra distorção conhecida como “segunda porta” ou “fila dupla” de acesso ao sistema de saúde, em que hospitais privados e universitários atendem pacientes SUS e particulares. “Nesse contexto, o que se alega é a tendência a priorizar o atendimento privado em detrimento do paciente financiado pelo sistema público. E havendo duas filas é notório que uma anda mais rápido que a outra.” (PATRÍCIO; TEIXEIRA, 2011, p. 57).

Cirúrgico no Real Hospital Militar da Cidade de Salvador-BA e a Escola de Cirurgia do Rio de Janeiro, no Real Hospital Militar.

Conforme aponta Salles (1971 apud POLIGNANO, 2001), “a carência de profissionais médicos no Brasil Colônia e no Brasil Império era enorme, para se ter uma ideia, no Rio de Janeiro, em 1789, só existiam quatro médicos exercendo a profissão.” Outros estados brasileiros, segundo o autor, sequer podiam contar com tais profissionais.

Diante da ausência de um aprendizado acadêmico adequado, o processo de habilitação como médico

consistia tão somente em acompanhar um serviço de uma botica [farmácia] já estabelecida durante um certo período de tempo, ao fim do qual [esses profissionais] prestavam exame perante a fisicatura25 e se aprovado o candidato recebia a ‘carta de habilitação’, e estava apto a instalar sua própria botica. (SALLES, 1971 apud POLIGNANO, 2001, p.3).

Polignano (2013) ainda descreve que a falta de um modelo sanitário próprio, nos séculos XVIII e XIX, deixava a população à mercê das epidemias. E para debelar tais doenças, o modelo de intervenção adotado, conhecido como campanhista, seguia uma “visão militar em que os fins justificam os meios, e [...] o uso da força e da autoridade eram considerados os instrumentos preferenciais de ação” (p. 4).

Este contexto qualitativo-assistencial permanece no imaginário social até hoje, o que evidencia que a saúde ainda é médico-centrada.

No processo de construção da atenção à saúde no Brasil, o modelo hospitalocêntrico de atendimento se fortaleceu e hegemonizou a organização dos serviços de saúde, fazendo dos hospitais as únicas referências no modelo de atenção.26

25 “

A Fisicatura-mor exercia diversas atribuições, como fiscalizar as boticas e lojas de drogas; visitar, nas alfândegas, todas as boticas e drogas que viessem de fora, assim como as que estivessem nos navios que iriam partir; fazer devassa do exercício da medicina; examinar e licenciar boticários; e proceder ao exame de boticários e médicos estrangeiros.” (CABRAL, 2011).

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Como analisa Cecílio (2000), em artigo para a Revista Espaço e Saúde, o hospital tem funcionado como o centro do sistema de saúde brasileiro, atraindo uma demanda “distorcida”, que acaba por sobrecarregar os demais serviços. “Esta forma de atender contradiz todo o discurso racionalizador que pensa o ‘sistema’ como uma pirâmide de serviços hierarquizados, com fluxos racionais de pessoas por níveis crescentes decomplexidade conforme suas necessidades, na qual caberia um papel bem definido para o hospital (CECÍLIO, 1997c). Na prática, esta racionalidade não ocorre e resulta na sobrecarga de serviço para o hospital, resultando em uma grande irracionalidade da

A essa prática de atenção à saúde centrada na doença e no hospital – fortalecida pela concepção do benfazejo – foi adicionada a figura do médico como o único detentor do conhecimento e, por isso, concentrador de todo poder na equipe de saúde. Dessa forma, estabeleceu-se um novo modelo de organização dos serviços, subordinado à figura do médico, conhecido como modelo medicalocêntrico,27 que se somou ao hospitalocêntrico. Como analisam Schimith e Lima (2004),

[...] a demanda única para o médico, de atendimentos clínicos, contribui para a falta de acesso e para a vinculação dos usuários a um único membro da equipe. A pouca movimentação na unidade quando o médico está ausente confirma esse achado, o que caracteriza o modelo médico hegemônico, consequência da organização do processo de trabalho que direciona a demanda clínica para o médico. (SCHIMITH; LIMA, 2004, p.1.490).

Oliveira, Mattos e Souza (2009) desvelaram os motivos que levam os brasileiros, apesar da expansão da rede básica de saúde nos últimos anos, a sempre recorrer, num primeiro momento, aos prontos-socorros e hospitais, mesmo diante de situações que não são de urgência e emergência. Nas entrevistas para a pesquisa, coletaram-se vários relatos que demonstram a percepção de usuários do SUS a respeito do atendimento recebido nos postos de saúde, prontos-socorros e hospitais. Nos dois relatos copiados a seguir, por exemplo, a imagem de contingência e insegurança tem predominância em relação aos serviços básicos de saúde do SUS.

Apareceu a dor, aí ia no médico, aqui no postinho, eles falavam assim: “Isso é comum”. Realmente, parecia dor de coluna. Não parecia dor de rim. Eu sentia uma dor terrível aqui. Aí ia aqui no postinho, ele tacava, é, Voltaren, tomava Voltaren e nada de passar a dor. E, assim, foi uns quinze, vinte dias direto. Aí depois eu comecei a ir lá no pronto-socorro, porque eu já não estava aguentando mais de dor. Lá eles fizeram o exame e de lá já mandaram pro hospital. Pra ser internada.

[...]

organização da atenção. Embora esta sobrecarga de demanda seja mais evidente e tensionadora nos serviços de urgência/emergência, ela também é sentida nos ambulatórios e mesmo nas enfermarias.” (CECÍLIO, 2000).

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A população ainda solicita que o atendimento seja realizado pelo profissional/médico (clínico, pediatra e ginecologista), sendo os outros tipos e formas de atenção à saúde entendidos como secundários. O modelo é ‘medicalocêntrico’” (PINHO, 2006).

Eu acho que no SUS a gente tem que ter é sorte! Não, é sério! A gente tem que ter é sorte! Você vê; cheguei lá, não demorou muito pra me atender. Acho que aquele dia eu tava naqueles dias de sorte. Eles foram, sabe, muito atenciosos com ela. Ela tava chorando, tudo. E eles com muita paciência com ela. (OLIVEIRA; MATTOS; SOUZA, 2009, p.9-10).

Os autores verificaram, nas entrevistas, uma clara presença do discurso da assistência à saúde como um “favor à população mais pobre do país, bem longe de ser um exercício de direito de cidadania” (OLIVEIRA; MATTOS; SOUZA, 2009, p. 9- 10). Contam que esse sentimento apareceu de diversas formas nos relatos, demonstrando “ausência de uma atenção mínima, desinteresse do profissional pelo usuário, falta de sensibilidade à experiência de sofrimento, falta de cordialidade” (p.10).

Esse médico, eu vou falar uma coisa pro senhor, misericórdia! Eu falei: “Doutor, eu tô assim, assim”. Eu estava conversando com o doutor e as minhas lágrimas descendo e eu chorando, entendeu? E ele só falou: “Toma isso aí!” Toma isso aí, é. Diazepam! Enquanto eu tava colocando os meus documentos dentro da bolsa, ele levantou e falou: “Levanta, levanta, que eu tenho muitos pacientes pra atender! Levanta que tem muita gente pra eu atender aqui”. Desse jeito! Ele não olhou no meu rosto. Não olhou. (OLIVEIRA; MATTOS; SOUZA, 2009, p. 11).

A prática médico-centrada atravessa a história do Brasil e da saúde e a passagem para a política de atenção básica é um desafio constante.