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Como, então, entender a atenção à saúde enquanto um direito, se o cuidado dos doentes, no Brasil, sempre foi tratado como um favor? Para responder a essa pergunta, é essencial elucidar os conceitos de saúde e de direito à saúde.

Na história da humanidade, muitos pensadores já se dedicaram a conceituar o termo “saúde”.

Hipócrates, filósofo grego que viveu no século V a.C., refere a influência da cidade e do tipo de vida de seus habitantes sobre a saúde e afirma que o médico não cometerá erros ao tratar as doenças de determinada localidade quando tiver compreendido adequadamente tais influências”. (DALLARI, 1988, p. 58)

Dallari (1988) indica também outra corrente de pensamento que entende saúde apenas como sendo a ausência de doenças. Essa corrente, segundo a autora, tem origem nos trabalhos do filósofo francês Descartes, no início do século XVII, que comparava o corpo humano a uma máquina. “Nessa linha de evolução, o século XIX enfatizou o caráter mecanicista da doença. Sob o predomínio da máquina, a sociedade industrial procurou explicar a doença como sendo o defeito na linha de montagem que exigia reparo especializado” (p. 58).

Para entender o significado da expressão “direito à saúde”, esta autora aponta a necessidade de analisar semanticamente o termo “direito”, em toda a sua complexidade.

De fato, a palavra direito refere-se a um ramo do conhecimento humano — a ciência do direito —, ao mesmo tempo em que esclarece seu objeto de estudo: o direito, um sistema de normas que regulam o comportamento dos homens em sociedade. [...] O termo é empregado com seu sentido de direito subjetivo na reivindicação do “direito à saúde”. (DALLARI, 1988, p.59)

Para Dallari (1988), o direito à saúde é “observado como direito individual, o direito à saúde privilegia a liberdade em sua mais ampla acepção” (p. 59).

As pessoas devem ser livres para escolher o tipo de relação que terão com o meio ambiente, em que cidade e que tipo de vida pretendem viver, suas condições de trabalho e, quando doentes, o recurso médico-sanitário que procurarão, o tipo de tratamento a que se submeterão entre outros. Note-se, porém, que ainda sob a ótica individual o direito à saúde implica a liberdade do profissional de saúde para determinar o tratamento. Ele deve, portanto, poder escolher entre todas as alternativas existentes aquela que, em seu entender, é a mais adequada. (DALLARI, 1988, p. 59).

Assim, para a autora, apenas o Estado que tiver o direito à saúde reconhecido em sua política de desenvolvimento poderá garantir as mesmas medidas de proteção e iguais cuidados para a recuperação da saúde para todo o povo. Considerando o direito à saúde como direito individual, que deve determinar o direito de escolha e ainda “apropriar-se da liberdade e da igualdade”, caracterizando-se “pelo equilíbrio instável desses valores”, verificamos que a garantia e a efetivação desse direito pelo Estado contrastam com os estados autoritários e com os modelos de saúde hospitalocêntrico e medicalocêntrico.

No Relatório Final da 8ª Conferencia Nacional de Saúde, realizada em 1986, a saúde é conceituada da seguinte forma:

Em seu sentido mais abrangente, a saúde é a resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso a serviços de saúde. É, assim, antes de tudo, o resultado das forças de organização social da produção, as quais podem gerar grande desigualdade nos níveis da vida. (BRASIL, 1986, p.4).

O direito à saúde subscrito na Declaração Universal de Direitos Humanos, de 10 de dezembro de 1948, aprovada após as atrocidades causadas ao mundo pela 2ª Guerra Mundial, defende no art. 25 que:

Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade. A maternidade e a infância têm direito a ajuda e a assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimónio, gozam da mesma proteção social. (ONU, 1948).

Para Comparato (2001), a Declaração Universal de 1948 representa o apogeu de um processo ético, iniciado com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, da Revolução Francesa, que

levou ao reconhecimento da igualdade essencial de todo ser humano em sua dignidade de pessoa, isto é, como fonte de todos os valores, independentemente das diferenças de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição”. (COMPARATO, 2001, p. 228).

Esse reconhecimento universal da igualdade humana, como explica Comparato, só foi possível “ao término da mais desumanizadora guerra de toda a História”, quando se percebeu que a ideia “de superioridade de uma raça, de uma classe social, de uma cultura ou de uma religião [...] põe em risco a própria sobrevivência da humanidade” (COMPARATO, 2001, p. 228)

Assim como o conjunto da Declaração Universal de Direitos Humanos, que conta com a adesão majoritária dos Estados-Nação, o texto sobre a saúde é abrangente e não estipula o papel preponderante do Estado em assegurá-la como direito. Conforme aponta Comparato (2001, p. 225), novos pactos aprovados em 1966 – um deles sobre direitos civis e políticos e outro sobre direitos econômicos, sociais e culturais –, bem como o fortalecimento de organismos internacionais, como a Organização Mundial de Saúde (OMS), foram fundamentais para construir o entendimento sobre o direito à saúde universal.

No cômputo dessas importantes ações, está a I Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde, realizada na cidade de Alma-Ata, Cazaquistão, em 1978. Na ocasião, os 134 países participantes propuseram uma meta de, por meio da atenção primária à saúde, “atingir o maior nível de saúde possível até o ano 2000. Essa política internacional ficou conhecida como ‘Saúde para Todos no Ano 2000’” (MATTA; MOROSINI, 2009, p.1)

No Brasil, para alcançar a garantia e a efetivação do direito à saúde, outras importantes ações foram desenvolvidas na sociedade. Nos anos de 1960, por exemplo, durante o Governo João Goulart, a defesa das chamadas “reformas de base” reunia sob essa ampla denominação um conjunto de iniciativas: as reformas bancária, fiscal, urbana, administrativa, agrária e universitária.

Sustentava-se ainda a necessidade de estender o direito de voto aos analfabetos e às patentes subalternas das forças armadas, como marinheiros e sargentos, e defendia-se (sic) medidas nacionalistas prevendo uma intervenção mais ampla do Estado na vida econômica e um maior controle dos investimentos estrangeiros no país, mediante a regulamentação das remessas de lucros para o exterior. O carro-chefe das reformas era, sem dúvida, a reforma agrária que visava eliminar os conflitos pela posse da terra e garantir o acesso à propriedade de milhões de trabalhadores rurais. (FERREIRA, 2004, p.325)

Em 1963, o presidente da República João Goulart e o então ministro da Saúde, Wilson Fadul, convocaram a 3ª Conferência Nacional de Saúde, 13 anos após a segunda conferência. De acordo com Decreto nº 52.301, de 24 de julho de 1963, a 3ª Conferência Nacional de Saúde deveria discutir os seguintes temas: a situação sanitária da população brasileira; a distribuição e coordenação das atividades médicos-sanitárias dos níveis federal estadual e municipal; a municipalização dos serviços de saúde; e a fixação de um plano nacional de saúde.

A maioria das proposições foram aprovadas no Relatório Final da 3ª Conferência Nacional de Saúde (BRASIL, 1963),28 que ocorreu de 9 a 15 de dezembro de 1963, no Rio de Janeiro. No capítulo referente à municipalização dos serviços, o compromisso das três esferas de gestão é pontuado como fundamental para fortalecer as ações de saúde no município. Foram propostos e aprovados cinco indicativos para organização dos serviços de saúde municipais: as medidas primárias de saneamento do meio; fiscalização dos gêneros alimentícios, das habitações e dos estabelecimentos que lidam com a produção e o comércio de alimentos; imunização contra as doenças transmissíveis; prestação dos primeiros socorros de assistência a doentes; e levantamento dos dados de estatística vital.

A 3ª Conferência Nacional de Saúde teve como principais pontos a temática do enfrentamento de doenças transmissíveis e a redução da mortalidade infantil e da mortalidade materna, contudo as propostas de aumento de recursos foram direcionadas mais para a redução da mortalidade infantil.

O processo de adoção das reformas de base e sanitária, defendidas pela 3ª Conferência Nacional de Saúde, foi interrompido pelo Golpe Militar de 1964, mas a defesa de um sistema de saúde público germinou.