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A articulação dos movimentos feministas nos fóruns promovidos pela ONU, como a Conferências de População e Desenvolvimento e a Conferência Mundial da Mulher, desencadeadas a partir da Década da Mulher, em 1975, permitiram uma ação articulada em favor dos direitos das mulheres, sobretudo na área de saúde, dado que nos primeiros eventos a demografia populacional pressionava as políticas de controle da natalidade. Podemos considerar que essa ação dos movimentos se constituiu em uma rede transnacional que mobilizava as mulheres para participação nesses eventos e para acompanhamento de seus resultados.

Scherer-Warren (2006) indica que as

redes transnacionais de organizações têm sido espaços privilegiados para a articulação das lutas por direitos humanos em suas várias dimensões sociais. Assim, através dessas articulações em rede de movimento observa-se o debate de temas transversais, relacionados a várias faces da exclusão social, e a demanda de novos direitos. […] essa transversalidade na demanda por direitos implica o alargamento da concepção de direitos humanos e a ampliação da base das mobilizações." (SCHERER-WARREN, 2006, p. 117-118)

Marcelo Andreás Faria de Britto, em sua dissertação de mestrado intitulada A influência de Movimentos de Mulheres nas Políticas Públicas para a Saúde da

Mulher no Brasil – 1984, de 2014, traça a linha histórica das Conferências de População em Desenvolvimento, instituídas a partir da Comissão de População, criada pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1945. A primeira Conferência de População e Desenvolvimento (CIPD), aconteceu em Roma, em 1954, tendo como tema central a influência demográfica no desenvolvimento dos países do primeiro mundo.

A Conferência de População em Desenvolvimento de Bucareste, em 1974, detaca-se porque abordou o “controle da natalidade como uma condição para o desenvolvimento dos países de Terceiro Mundo superarem o estado de pobreza e se desenvolverem. (Alves & Correa, 2003)”. (BRITTO, 2014, p. 13-14), e desencadeou a “Década da ONU para o Avanço da Mulher”, de 1975 a 1985, que teve um papel emblemático na trajetória das lutas de mulheres, principalmente porque serviu de espaço político para feministas nas Conferências Mundiais da Mulher, que passaram a acontecer a cada 10 anos (BRITTO, 2014, p. 39).

Na Conferência de População no México, em 1984, o “governo brasileiro assumiu verdadeiramente uma postura diante da saúde reprodutiva e aprovou o PAISM”.70 Britto, indica que “houve um alinhamento de fato em relação ao reconhecimento de que o controle da natalidade não era a orientação governamental no tocante à saúde da mulher.” (BRITTO, 2014, p. 106).

Na Conferência Internacional de População e Desenvolvimento (CIPD) do Cairo em 1994, os conceitos foram disputados em relação à saúde reprodutiva, como parte dos direitos humanos.

As pessoas podem ter decisões reprodutivas sem sofrer discriminação, coação ou violência. Apenas a título de informação o debate sobre essa questão reprodutiva estava tão avançado que essa definição de saúde reprodutiva coincide com a forma como foi referendada na Constituição Federal, de 1988, no Brasil. (BRITTO, 2014, 46-47).

Passados vinte anos da Conferência do Cairo,

as metas estabelecidas estão sendo revisadas para estabelecimento das ações denominadas “Cairo Pós-2014”. Verificando os dados e as

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Waldyr Mendes Arcoverde, ministro da Saúde do Brasil, discursou sobre o PAISM, na Cidade do México, em 6 de agosto de 1984, durante a abertura da Conferência Internacional sobre População (BRITTO, 2014, p. 65).

metas estabelecidas em Cairo, as mortes maternas caíram quase pela metade nos últimos 20 anos, mas cerca de 800 mulheres ainda morrem, todos os dias, por problemas decorrentes do parto e de complicações na gravidez, e mais de 220 milhões de mulheres ainda têm necessidades não satisfeitas de contracepção moderna. Como resultado, o quinto Objetivo de Desenvolvimento do Milênio (ODM 5), especificamente no tocante à saúde materna, é atualmente um dos mais distante de realização, e é improvável que seja atingido. (BRITTO, 2014, p. 60)

Em entrevista realizada durante este estudo, a avaliação de nossa 1ª entrevistada sobre a Conferência de População do Cairo, é de que

a posição do movimento feminista ficou muita claro na Conferência do Cairo, em 1994, que foi 20 anos depois da de Bucareste, em 1974. Na de Bucareste ainda se discutiam questões de controle de natalidade, controle populacional, enfim, tinha este que, em princípio, era ter metas populacionais. Em 94, o movimento feminista foi com tudo e conseguiu reverter essa história de meta populacional, e em 94, na Conferência do Cairo, também é que teve a grande polêmica entre direitos reprodutivos e saúde reprodutiva na briga com a igreja. Se você pegar o relatório do Cairo, você pode pegar, é a 4ª Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento – CIPD. (1ª entrevistada)

Ela explicou que

em uma Conferência da ONU, nessas Conferências Mundiais tem que valer o consenso, porque, quando vai para votação, é sinônimo de derrota diplomática, porque se vai para a votação, o país que perdeu pode ou não adotar, porque aí entra em jogo a questão da Soberania Nacional.

Avalia, ainda que

teve vitórias importantes, primeiro porque entrou para o cenário mundial e o cenário de discussões a questão do direito reprodutivo e outra coisa é que foi retirado como proposta dessa Conferência, a questão das metas demográficas, então cai muito a história do controle de natalidade.

E sobre as disputas, resultados e seguimento da Conferência do Cairo nas últimas duas décadas, avalia que

na Conferência do Cairo, deu essa enorme discussão, mas teve avanços, entre eles a retirada desse conceito de ter metas populacionais e, aí foi interessante porque deu muita tensão entre as feministas e os demógrafos, porque eles se consideravam os donos desse tipo de Conferência, era coisa de demógrafo, aí chegaram as chatas, querendo reivindicar que ninguém tem que estar traçando meta sobre o nosso corpo. E aí deu tensão. E agora está tendo retrocesso de novo, porque aí teve o Consenso de Montevidéu, que

avançou horrores, que foi o Cairo + 15 ou 20, que teve a reunião da Conferência Regional de População e Desenvolvimento, que foi em Montevidéu, eu fui. E aí nesse consenso de Montevidéu se avançou um monte, foi considerado o mais avançado, e agora teve o Cairo +20 NY, e recuou tudo por causa dos países africanos que sempre foram nossos aliados em muitas coisas, principalmente com o Brasil, eles eram super ligados com a posição da delegação brasileira e das nossas entidades diplomáticas por causa do avanço do islamismo na África, islamismo e evangélico também. (1ª entrevistada).

Para Coelho (2015), o tratamento da saúde da mulher neste espaços é tenso porque “a saúde é talvez, o mais importante foco desses controles opressivos, pois traz consigo o domínio do corpo e a vivência da sexualidade”. Para ela,

os direitos reprodutivos são uma construção teórico-conceitual elaborada pelo movimento de mulheres e referendado em Amsterdã, em 1984, no "Tribunal Internacional do Encontro sobre Direitos Reprodutivos que ocorreu no 8º Encontro Internacional Mulher e saúde.”,71 e a ONU reconheceu, na Conferência Mundial da Mulher, deNairóbi, em 1985, que a promoção dos direitos da produção é uma aquisição fundamental das mulheres para uma justaposição na sociedade. (COELHO, 2015, p. 26).

Portanto, podemos verificar que os movimentos feministas em diversas partes do mundo têm a pauta de saúde da mulher como uma prioridade de ação e mobilização. A participação dos movimentos feministas nos fóruns institucionais internacionais, segundo relatos de entrevistadas, tem promovido importantes alterações na concepção de direito à saúde e de direitos das mulheres, mas considerando as diferenças culturais e políticas dos diversos povos que particpam desses espaços, avanços e retrocessos permeiam os eventos, então é preciso mobilizar para participar, manter a participação a cada edição dessas conferências, e acompanhar as decisões, sempre alertas, para que sejam favoráveis aos direitos das mulheres.

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Em texto publicado no Almanaque D'Elas, da Rede Feminista, de 2015, Coelho afirma que os “Direitos reprodutivos são os direitos das mulheres de regularem sua própria capacidade reprodutiva, bem como de exigir que os homens assumam responsabilidade pelas consequências do exercício de sua própria sexualidade. A abrangência desse conceito envolve a contracepção, esterilização, aborto, concepção e assistência a saúde. Além do mais é visto na perspectiva de direitos humanos, ampliando o seu sentido e retirando a função da reprodução da esfera privada, avançando para além do planejamento familiar, ou seja, saindo do âmbito meramente familiar e passando a se localizar no espaço da sociedade como um todo." (COELHO, 2015, p.26).

Considerações

Esta pesquisa realizada e consolidada neste capítulo, sobre o movimento feminista no Brasil e no mundo, contribuiu sobremaneira no momento da coleta de dados, feita por meio de entrevistas. Pudemos identificar discursos e processos históricos relatados na bibliografia como ilustração das informações sobre a atuação do movimento feminista no Brasil, favorecendo a compreensão das pautas e estratégias de mobilização das mulheres. A partir dessa pesquisa sobre movimentos de mulheres e movimentos feministas, sobre os processos de disputas e consensos na construção de políticas de saúde da mulher, enquadramos essa luta no campo dos direitos humanos, pois se trata do direito à vida.

Verificamos que os conceitos e princípios que norteiam o movimento feminista estão alinhados aos direitos sexuais e reprodutivos como um caminho de liberdade da mulher sobre a condução de sua vida, tendo a maternidade como opção, e não como desígnio.

Ademais, verificamos que a estratégia de ocupação de espaços institucionais, como os Conselhos da Condição Feminina e Conselhos de Mulher, nos anos de 1980, projetaria as pautas feministas e as feministas no cenário da redemocratização do país, propiciando conquistas na Constituição Federal de 1988.

A organização de movimentos feministas foi essencial para a defesa dos interesses das mulheres, como a Rede Feminista e o CFEMEA, e, por fim, as ações do movimento feminista, em articulação transnacional, nas Conferências de População em Desenvolvimento e Conferências Mundial das Mulheres, fóruns institucionais da Organização das Nações Unidas (ONU), onde o movimento feminista tratou importantes dilemas do século XX, em relação ao controle da natalidade e direitos sexuais e reprodutivos.

Todas essas informações qualificaram a pesquisa de dados para a construção do capítulo seguinte, que tratará do processo histórico e político de aprovação da PNAISM.

CAPÍTULO III

DO PROGRAMA NACIONAL DE ATENÇÃO INTEGRAL À SAÚDE DA MULHER (PAISM) À POLÍTICA NACIONAL DE ATENÇÃO INTEGRAL A SAÚDE DA MULHER (PNAISM)

Introdução

Verificaremos neste capítulo que a participação massiva das mulheres como usuárias ou profissionais de saúde não se espelha nos instrumentos de participação como o Conselho Nacional e a última Conferência Nacional de Saúde, em 2011. Portanto, as mulheres continuam como minoria nos espaços da democracia representativa, como no Congresso Nacional, e nos espaços de participação social.

Examinaremos a estruturação do atendimento a saúde da mulher a partir da evolução da ginecologia e obstetrícia tendo como parâmetro o esquadrinhamento e apropriação das informações sobre o corpo feminino na relação profissional de saúde-objeto, e não sujeito-sujeito, como almejamos.

Da mesma forma, observaremos a ocupação de espaços na burocracia estatal, conforme a teoria dos repertórios de interação de Abers, Serafim e Tatagiba (2014), desencadeando a construção do PAISM, em 1983, a participação social e a realização da 1ª Conferência de Saúde da Mulher, em 1986, e a participação ativa do movimento feminista na construção e aprovação da PNAISM, em 2004.

3.1 Expressão das Mulheres nos Serviços de Saúde e Instituições de