• Nenhum resultado encontrado

Políticas públicas para adolescentes e jovens em situação de rua

1. INTRODUÇÃO

1.6. Políticas públicas para adolescentes e jovens em situação de rua

Do período colonial até meados do século XIX, as políticas públicas para crianças e adolescentes em situação de rua baseavam-se no assistencialismo, sem a pretensão de realizar mudanças sociais. As Câmaras Municipais eram oficialmente responsáveis por prover assistência às crianças e adolescentes abandonadas(os). No entanto, elas delegavam tal função às Santas Casas de Misericórdia, através de convênios e concessões firmados. (18)

Em 1854, o decreto n◦ 1331-A determinava o recolhimento das crianças que vagavam pelas ruas:

“ Art. 62. Se em qualquer dos districtos vagarem menores de 12 annos em tal estado de pobreza que, alêm da falta de roupa decente para frequentarem as escolas, vivão em mendicidade, o Governo os fará recolher a huma das casas de asylo que devem ser creadas para este fim com hum Regulamento especial”. (72)

A promulgação da Lei 2040 de 28 de Setembro de 1871, mais conhecida como “Lei do Ventre Livre” ou “Lei Rio Branco”, contribuiu para o aumento de crianças e adolescentes em situação de rua no Brasil. Esta lei declarava livre as filhas e os filhos de mulheres escravas nascidas(os) após a data de sua promulgação e foi um avanço importante para a abolição da escravidão no Brasil. No entanto, as crianças poderiam ficar com suas mães apenas até a idade de oito anos. Após esta idade, cabia aos senhores de escravos decidir se entregariam essas crianças ao Governo (recebendo uma indenização) ou ficariam com elas para que trabalhassem gratuitamente até completarem 21 anos de idade. Na prática, muitas crianças não tinham para onde ir e iam para as ruas. (73–75)

Em 13 de Maio de 1888, a promulgação da Lei Áurea que finalmente aboliu a escravidão no Brasil, também acabou contribuindo para o aumento do número de crianças abandonadas nas ruas (73) pois, tal lei, aboliu a escravidão sem garantir nenhuma reforma social para a integração da população negra que foi abandonada à própria sorte, exacerbando o racismo e a discriminação.(76)

Ainda no século XIX, o código penal de 1890 incluía em seus artigos a premência da criação de instituições preventivo-correcionais e instituía a idade de nove anos como limite mínimo para a responsabilidade penal. (18)

Em 1891, o governo republicano de Marechal Deodoro da Fonseca promulga a primeira lei que regulamenta o trabalho infantil, proibindo o trabalho de menores de 12 anos (77). Todavia, esta lei jamais foi cumprida, as crianças começavam a trabalhar nas fábricas ou mesmo nas ruas antes dos 10 anos de idade (73), ou eram recolhidas em instituições preventivo-correcionais ou colônias agrícolas, que visavam o “tratamento educativo do menino desvalido”. (18)

Na cidade do Rio de Janeiro, em 1902 foi criada a Colônia Correcional de Dois Rios para “reabilitação pelo trabalho e educação, dos meninos, do sexo

masculino, vagabundos ou vadios, capoeiras, ébrios habituais, jogadores, ladrões, dos que praticarem lenocínio e dos menores viciosos...”(18). Havia uma política

higienista e coercitiva por parte do Estado, na qual crianças e adolescentes pertencentes às famílias em situação de pobreza eram recolhidas pelo Estado que considerava que estes pais incapazes de criar seus filhos e filhas. (18,73,78)

Em 1923, sob influência da Primeira “Declaração dos Direitos da Criança”, foi criado o Juízo de Menores do Rio de Janeiro, responsável pela organização dos serviços de assistência às crianças/adolescentes recolhidas(os). (18,79)

Em 1927 é promulgado o Código de Menores, que regulamentou o trabalho das crianças e adolescentes maiores de 12 anos e aumentou a maioridade penal para 18 anos de idade. Este código era de caráter assistencialista, higienista e paternalista. (18,79)

A Constituição de 1937 dedicou dois artigos (125 e 127) às crianças e adolescentes como responsabilidade do Estado (18,80):

“Art. 125. A educação integral da prole é o primeiro dever e o direito natural dos paes. O Estado não será estranho a esse dever, collaborando, de maneira principal ou subsidiaria, para facilitar a sua execução ou supprir as deficiencias e lacunas da educação particular”. (80)

“Art. 127. A infancia e a juventude devem ser objecto de cuidados e garantias especiaes por parte do Estado, que tomará todas as medidas destinadas a assegurar-lhes condições physicas e moraes de vida sã e de harmonioso desenvolvimento das suas faculdades. O abandono moral, intellectual ou physico da infancia e da juventude importará falta grave dos responsaveis por sua guarda e educação, e cria ao Estado o dever de prove-las do conforto e dos cuidados indispensaveis á preservação physica e moral. Aos paes miseraveis assiste o direito de invocar o auxilio e protecção do Estado para a subsistencia e educação da sua prole”. (80)

No ano de 1941, através do Decreto-Lei n◦ 3799 (81), o Estado cria o Serviço de Assistência ao Menor (SAM) que ficou conhecido como uma “prisão para menores transviados”(78) e foi o predecessor direto da Fundação Nacional do Bem- Estar do Menor (Funabem), representando mais uma ameaça às crianças de baixa renda (“pobres”) do que uma proteção. (18,82)

“Art. 2º O S. A. M. terá por fim:

a) sistematizar e orientar os serviços de assistência a menores desvalidos e delinquentes, internados em estabelecimentos oficiais e particulares ;

b) proceder à investigação social e ao exame médico- psicopedagógico dos menores desvalidos e delinqüentes;

c) abrigar os menores, à disposição do Juízo de Menores do Distrito Federal;

d) recolher os menores em estabelecimentos adequados, afim de ministrar-lhes educação, instrução e tratamento sômato-psíquico, até o seu desligamento;

e) estudar as causas do abandono e da delinquência infantil para a orientação dos poderes públicos;

f) promover a publicação periódica dos resultados de pesquisas, estudos e estatísticas.”(81)

Ao passo que no Brasil, as crianças e adolescentes em situação de rua ou pertencentes a classes sociais baixas eram encarceradas ou exploradas no “trabalho profissionalizante”; no contexto mundial, em 1959, a ONU, proclama a Declaração Universal dos Direitos da Criança pela Resolução da Assembleia Geral 1.386(XIV) que fundamenta a criança como detentora de direitos (liberdade, saúde, educação, bem-estar). (82,83)

Em 1964, o Estado brasileiro, sob o comando do Governo Militar, cria a Funabem em substituição ao SAM, cujo objetivo era elaborar e instaurar uma política nacional de bem-estar para crianças e adolescentes. A Funabem criou as Fundações Estaduais do Bem-Estar do Menor (Febem) e, contrariamente ao nome da instituição e seu objetivo, na prática havia o exercício do autoritarismo e do abuso de autoridade principalmente em relação às crianças e adolescentes em situação de rua. (18,73,82)

Em 1975, em meio ao movimento pela redemocratização do Brasil, foi instaurada uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), conhecida como CPI do Menor Abandonado que levou cerca de um ano para analisar as condições das crianças e adolescentes provenientes de famílias de baixa renda ou em situação de rua. Seu relatório final diagnosticava tal população como vítima de um sistema excludente e asseverava a urgência de políticas públicas para crianças e adolescentes.(73,84)

A exposição à sociedade das condições de vida das crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade e a pressão internacional após a Declaração Universal dos Direitos da Criança de 1959 culminaram na elaboração do Estatuto do Menor em 1979. Tal Estatuto determinava que as instituições de assistência e proteção de menores, seriam responsabilidade do Estado e instituiu a condição do “Menor em Situação Irregular” que eram as crianças e adolescentes filhas e filhos de famílias de baixa renda e marginalizadas. Na prática, o Estatuto do Menor não alterou em nada as condições de vida desta população destituída de direitos, mantendo-se a prática da institucionalização ao invés da elaboração de políticas que visassem melhorar suas oportunidades e condições de vida. (18,73,78,82)

Com o fim da ditadura militar, houve uma intensa mobilização pública em prol dos direitos pelas crianças e adolescentes, principalmente aquelas e aqueles em

situação de rua. Em 1988, é promulgada a Constituição Federal Brasileira que reconhece pela primeira vez a criança como sujeito de direito e, também pela primeira vez, a palavra “menor” foi substituída por criança e adolescente.

“Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.(85)

Em julho de 1990, a Lei n◦ 8.069 aprova o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que substituiu legalmente o coercivo Estatuto do Menor, considerando a criança como sujeito de direito em desenvolvimento (cidadão) sob responsabilidade da família, do Estado e da sociedade. O ECA preconiza a descentralização das ações e a participação popular na fiscalização da execução das políticas públicas. São instaurados o Conselho Tutelar (CT), o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA), o Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente (Condeca) e o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda).

Em 2006, o Governo Federal promulga a Resolução conjunta CNAS/Conanda n° 01/2006: Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de crianças e adolescentes à convivência familiar e comunitária (PNCFC). Tal plano prevê a preservação e fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários, rompendo com a cultura da institucionalização de crianças e adolescentes. (86)

A alteração mais recente do ECA, também conhecida como Marco Legal da Primeira Infância, foi sancionada em 8 de março de 2016 e preconiza a implementação de políticas públicas específicas para os primeiros 6 anos de vida, dentre elas a alteração do artigo 19:

“Art. 25. O art. 19 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, passa a vigorar com a seguinte redação: “Art. 19. É direito da criança e do adolescente ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente que garanta seu desenvolvimento integral”. (87)

O ECA foi um marco importante na mudança do paradigma do “menor- objeto” para a criança e adolescente como sujeitos detentores de direitos, garantiu os direitos previstos na Convenção Internacional dos Direitos da Criança e previu a

participação popular através de conselhos de fiscalização. No entanto, mesmo após 28 anos da promulgação do ECA e suas diversas alterações visando seu aprimoramento, ainda não há menção sobre as crianças e adolescentes em situação de rua.

Em defesa dos direitos humanos de crianças e adolescentes em situação de rua, vimos, nesta última década, uma grande mobilização popular resultando em fóruns de debate sobre o tema. (17)

Em 2009, o Decreto Presidencial nº 7.053 (88), instituiu a Política Nacional para a População em Situação de Rua (PSR), incluindo princípios do SUS como a equidade e integralidade, além de preconizar:

“... o respeito à dignidade da pessoa humana, o direito à convivência familiar e comunitária, a valorização e respeito à vida e à cidadania, o atendimento humanizado e universalizado, o respeito às condições sociais e diferenças de origem, raça, idade, nacionalidade, gênero, orientação sexual e religiosa, com atenção especial às pessoas com deficiência”.pag 14(89)

A fim de viabilizar a Política Nacional para a População em Situação de Rua, foram criados, em 2012, os Consultórios na Rua (CnaR). Este equipamento enquadra-se na Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), constituindo o componente Atenção Básica da Rede de Atenção Psicosocial e atua frente aos diferentes problemas e necessidades de saúde da população em situação de rua, inclusive na busca ativa e cuidado aos usuários de álcool, crack e outras drogas. (89)

Finalmente, em 2015, crianças e adolescentes em situação de rua são citadas(os) na Portaria GM/MS 1.130 como prioridade concernente à atenção à saúde (90). Tal portaria também instituiu um Grupo de Trabalho no âmbito do Ministério da Saúde para discutir e implementar ações de saúde, resultando na publicação das Diretrizes Nacionais para o Atendimento à Crianças e Adolescentes em Situação de Rua em 2017. (17)

As Diretrizes Nacionais para o Atendimento a Crianças e Adolescentes em Situação de Rua basearam-se, entre outros documentos, na Política Nacional para a População em Situação de Rua e estas, além de definirem de forma ampliada quem são as crianças e adolescentes em situação de rua, apresentam orientações técnicas para as(os) profissionais que atuarão frente a esta população: equipes de educadores sociais de rua, assistentes sociais e equipes de saúde, reforçando a importância do

vínculo familiar e do trabalho em equipe multiprofissional, interdisciplinar e intersetorial. (17)

É inegável o avanço dentro das políticas públicas para as crianças e adolescentes no Brasil, incluindo-as(os), recentemente. Todavia, como será discutido ao longo desta dissertação, na prática cotidiana, essa população continua ora invisível, ora como ameaça para a maioria das cidadãs e cidadãos brasileiros, inclusive para as equipes de saúde e assistência social.