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2.12 AS LIMITAÇÕES DA “LICENÇA REGULATÓRIA”: A LICENÇA SOCIAL E O PAPEL

2.12.1 A existência de outras licenças no meio ambiente das empresas

410 Idem, ibidem, p. 123 411 Idem, ibidem, p. 124. 412 Idem, ibidem, p. 128.

A fim de refinar o design regulatório, deve-se ter em mente que as empresas reguladas trabalham não somente com dados regulatórios em sentido estrito, mas também considerando a economia em geral, a de seu setor específico, os anseios e demandas sociais etc. Ou seja, o cumprimento das regras regulatórias não pode ser visto de maneira puramente compartimentalizada, mas deve levar em consideração o conjunto completo do meio ambiente no qual está inserida a empresa regulada.

Em um interessante estudo empírico acerca do cumprimento de normas regulatórias, Gunningham e outros resolveram se colocar a seguinte questão: O que leva alguns atores a trabalhar duro no cumprimento de disposições regulatórias, até chegar ao nível de overcompliance, enquanto outras firmas, no mesmo setor, continuam patinando no cumprimento das diretivas regulatórias?

Eles resolveram estudar um setor específico para encontrar a resposta: o setor automotivo e mais especificamente o de poluição por caminhões de transporte de carga. O que eles procuravam desvendar era por que, nesse setor, pouquíssimos agentes cumpriam as normas regulatórias, atingindo índices de não poluição até melhores que o designado na regulamentação, ao passo que a maior parte das empresas apresentava desempenho pouco satisfatório.

Eles utilizaram um modelo conceitual inovador para explicar esses comportamentos. Trata-se do que chamam de “modelo de licença” (license model), pelo qual a performance de uma empresa, em relação a um dado indicador regulatório, é fruto da interação de três variáveis: 1) a licença econômica, ou seja, os imperativos econômicos do mercado em geral e da empresa em particular; 2) a licença regulatória, isto é, os deveres e ameaças regulatórios; e 3) a licença social, qual seja, as expectativas dos empregados, grupos de pressão, vizinhos, políticos etc.

Essa última, menos explorada nos tratados tradicionais de regulação setorial, representa um importante aspecto da regulação responsiva, como já visto quando detalhado o papel dos PIGs no Tripartismo. Segundo Gunningham, atores sociais podem fiscalizar as expectativas sobre a licença social diretamente  via protestos, boicotes, e esforços para levar as suas queixas para o noticiário  e também pedindo por uma ação reguladora mais dura, ameaçando processos e planos de expansão de fábricas ou posicionando-se contrariamente à renovação de licenças. Além disso, pesquisa anterior dele e o trabalho de outros estudiosos fornecem evidências claras de que essas pressões externas da licença social

são interpretadas, filtradas e negociadas pelos gestores das empresas, por meio de atitudes que tomam e compromissos a que aderem, que variam de indiferença às preocupações ambientais para níveis mais elevados de consciência ambiental e engajamento.413

O mercado de caminhões de transporte de carga é marcado por alta competitividade e elevado número de pequenas empresas. Em uma situação assim, Gunningham afirma que a regulação estatal impacta o nível de emissão de poluentes, mas o faz menos profundamente do que a licença econômica de cada firma. E ela será afetada, a seu turno, por três fatores: o mercado em geral (ou seja, quão bem está a economia, o preço do combustível e da força de trabalho), o nicho particular de atuação da firma (ou seja, quais bens ela transporta, a que distâncias, por exemplo) e a condição financeira da firma tomada individualmente (seu nível de lucratividade, endividamento etc.)414.

Assim, eles chegam à conclusão de que, em mercado no qual pululam firmas pequenas, e em que há muita competição, não se deve esperar que a licença social substitua uma efetiva regulação estatal. Faltam, claramente, elementos para que esta seja de fato efetiva: o pequeno faturamento das firmas, sua baixa representatividade nas comunidades, sua importância diluída diante da quantidade de competidores, todos atuando de forma mais ou menos semelhante, o que impede maior efetividade da licença social.

Ou seja, na ausência de requisitos regulamentares, as pequenas empresas de baixa visibilidade tendem a tomar medidas econômicas sem levar em conta o seu impacto ambiental. Dito de outra forma, as preocupações ambientais não são susceptíveis de entrar no cálculo econômico, social ou normativo das pequenas empresas, a menos que elas estejam sujeitas a regimes regulamentares que induzam medo significativo de punição para o não cumprimento  e, assim, assegurarem as empresas que não só elas, mas seus concorrentes também, serão obrigados a investir em conformidade.415

Em um estudo acerca do cumprimento das normas regulatórias, Gunningham, Kagan e Thornton afirmam que, tradicionalmente, as empresas cumpriam os ditames da regulação aplicável apenas quando eles viam algum autointeresse em fazê-lo, como o aumento do lucro, geralmente a curto prazo. Hoje, no entanto, pelo menos nas democracias economicamente

413 THORNTON, Dorothy, KAGAN, Robert A., & GUNNINGHAM, Neil. (2009). When Social Norms and Pressures Are Not Enough: Environmental Performance in the Trucking Industry. Law & Society Review, p. 413-414.

414 Idem, ibidem, p. 422. 415 Idem, ibidem, p. 431.

avançadas, muitas empresas não percebem as suas obrigações sociais como necessariamente sinônimo de suas obrigações legais416.

Duas décadas de aperto, normas regulamentares e ameaças legais têm levado muitos empresários a assumir que quaisquer perigos e prejuízos que seus negócios engendram, mesmo que não sejam claramente ilegais hoje, mais cedo ou mais tarde, poderão ser objeto de censura pública ou ação do governo ou responsabilização legal. Os grupos comunitários e organizações não governamentais (ONGs) também têm desempenhado um papel importante em pressionar as empresas a reduzir seus impactos sociais adversos417.

Como consequência, executivos de corporações cada vez mais falam sobre a importância de operar em conformidade com a sua “licença social”, o que significa que eles são obrigados a cumprir as expectativas da sociedade e evitar atividades que as sociedades (ou elementos influentes dentro delas) considerem inaceitável. Além disso, em alguns casos, as condições exigidas pela “licença social” podem ser mais duras que as impostas pela regulamentação, resultando em conformidade além do exigido, mesmo nos casos em que as medidas adotadas não são rentáveis em curto prazo418.

A constatação da existência da licença social evoca uma consideração de Carmen Lúcia, para quem a luta pelo Direito não é mais uma liça meramente individual, mas sim uma “uma pretensão da coletividade organizada, em órgãos representativos dotados de intensidade no exercício de pressão”, o que implica mudança estrutural no direito administrativo, que, segundo ela, deve abandonar a posição de servo do Estado e de seus dirigentes para ser veículo que carrega a vontade e as manifestações do povo.419

De toda forma, a licença social opera em três níveis. O primeiro é o da reputação, que é um “capital” necessário para o crescimento e manutenção de qualquer empresa. Esse capital reputacional vai significar uma espécie de ponte que predispõe a empresa a entrar em discussões francas com ONGs, comunidades e outros grupos, substituindo a oposição hostil420. Aqueles com boa reputação tendem a, mais rapidamente, obter acesso aos meios pelos quais podem lucrar no futuro: aprovações de projetos, o acesso preferencial a serviços,

416 GUNNINGHAM, N.; KAGAN, R.; THORNTON, D. Social license and environmental protection: why businesses go beyond compliance. Law and Social Inquiry, v. 29, n. 2, p. 308, 2004.

417 Idem, ibidem, p. 308. 418 Idem, ibidem, p. 308.

419 ROCHA, Cármen Lúcia Antunes at al. Perspectivas do direito público – Estudos em homenagem a Miguel Seabra Fagundes. Belo Horizonte: Del Rey, 1995, p.94.

420 GUNNINGHAM, N.; KAGAN, R.; THORNTON, D. Social license and environmental protection: why businesses go beyond compliance. Law and Social Inquiry, v. 29, n. 2, 2004, p. 320

os ouvidos do governo, a confiança dos reguladores, a tolerância das comunidades locais e menos risco de serem alvo de organizações de consumidores421.

O segundo é o do aumento da fiscalização pelo regulador por meio de pressão de terceiros interessados. A “licença social” age cobrando maior atuação do regulador sobre as disposições normativas já existentes. Assim, os atores sociais emprestam maior peso e energia à regulamentação já existente, levando os reguladores a buscarem uma full compliance ou mesmo beyond compliance para criar ruma margem de segurança em sua atuação422. De fato, argumentam os autores, assim como um motorista dirige abaixo do limite máximo de velocidade em uma estrada muito patrulhada, assim também os regulados deixam uma margem de segurança quando se veem fortemente fiscalizados, especialmente se há um clamor popular por trás423.

Por fim, a licença social age no nível de pressão para criar novas leis e regulamentos, caso não se esteja satisfeito com o resultado anterior424.

Obviamente, licença social e estatal se interpenetram. Assim, ONGs usam informações advindas de fiscalização pelo regulador para avaliar seu nível de pressão nas empresas reguladas. E daí advém a força da licença social conjugada com a regulação estatal: muitas empresas terminam temendo a fiscalização estatal não somente pelas punições que podem receber do órgão regulador, mas principalmente por causa das pressões sociais e punições que virão de sua licença social ao violar as normas estatais425.

Patente está que não se deve reduzir a licença social a uma atuação secundária, meramente seguidora dos resultados da licença estatal. Esse reducionismo não é verdadeiro. O fato é que o cumprimento de normas regulatórias não irá, em si, satisfazer as maiores preocupações da comunidade, que frequentemente vão além do que está escrito nos regulamentos426. Entretanto, é fato que a regulação estatal e a fiscalização de seu

421 Idem, ibidem, p. 319-320. 422 Idem ibidem, p. 319.

423“Margin-of-safety measures are those that overcomply with current regulations, much as a motorist might drive five miles per hour below the speed limit on a well-policed highway. Thus, many firms construct effluent treatment systems that limit pollutants more stringently than required by regulations or their permits, or that have a larger-than-required capacity, in order to ensure that irregularities or breakdowns in the normal production and treatment operations do not result in a serious violation. Bandyopadhyay and Horowitz (forthcoming) find that randomness leads firms to reduce their average discharges levels below-sometimes far below-their permitted levels, to reduce the chance of an unexpectedly large violation”. Idem, ibidem, p. 319.

424 Idem, ibidem, p. 320. 425 Idem, ibidem, p. 330. 426 Idem, ibidem, p. 330-331.

cumprimento enviarão ao menos alguns sinais para os atores da licença social acerca da falha de determinada empresa no desempenho de suas funções regulatórias e sociais427.

Além disso, deve-se verificar que a interação entre ambas é via de mão dupla. Acima, foi visto como um problema na licença estatal pode acarretar sanções na licença social. Mas o inverso também é verdadeiro. Ou seja, percebendo o regulador que a comunidade, os usuários estão insatisfeitos com o desempenho da empresa, uma possível saída, inclusive para se legitimar, seria o de aumentar a fiscalização de suas normas ou mesmo fazer outras ainda mais duras428.

Da mesma maneira que a regulação pode ser endurecida em casos como este, as próprias empresas podem usar de bandeira favorável de sua licença social para conseguir algum alívio junto ao órgão regulador. A estratégia, aqui, seria afirmar que os usuários estão satisfeitos e qualquer escalada na pirâmide de estratégias regulatória seria desnecessária, dado esse panorama429.

Finalizando esse tópico, é necessário comentar, ainda que brevemente, sobre as limitações da licença social. Como visto, os autores argumentam que muitas empresas não percebem as suas obrigações sociais como necessariamente sinônimo de suas obrigações legais, e que as condições exigidas pelos atores sociais podem ser mais exigentes que as requeridas por lei, o que pode resultar em um desempenho melhor que o exigido pela licença estatal430.

Mas há, contudo, limites quanto à influência da licença social e à possibilidade comportamentos beyond compliance. Essas limitações da licença social surgem de cada um desses três fatores: sociais, legais e econômicos.

Quanto ao primeiro, a fim de articular corretamente as suas demandas, os atores sociais devem conseguir determinar que um prejuízo ocorreu ou deve ocorrer. Eles, também, devem ter a competência organizacional para desenvolver e efetivamente demandar, articuladamente, contra o mal percebido. As dificuldades, aqui, perpassam vários pontos. Em alguns casos, o prejuízo pode não ser percebido diretamente, ou rapidamente, ou somente

427 Idem, ibidem, p. 331. 428 Idem, ibidem, p. 331. 429 Idem, ibidem, p. 331. 430 Idem, ibidem, p. 332.

após muito estudo técnico. Mesmo após percebido, é preciso chegar a um consenso, ou a uma articulação tal que lhe dê sustento, como forma de pressão431.

Em segundo lugar, os atores legais e políticos devem ser razoavelmente sensíveis às demandas dos atores sociais, ou seja, eles devem ver as demandas dos atores sociais como importantes e legítimas. Em regimes não democráticos ou no caso de um regulador capturado pelas empresas, por exemplo, a licença social seria bastante enfraquecida432. Também é possível que os atores legais e políticos estejam mais preocupados com consequências econômicas. Pode ser preciso um longo e tortuoso processo de convencimento433.

Finalmente, foi visto que a vertente econômica da licença social muitas vezes impõe penalidades sensíveis às empresas reguladas, como o caso de boicote de produtos manufaturados por empresas que não seguem determinado padrão ambiental, por exemplo. Mas nem sempre o boicote será possível; imagine-se o caso de um monopolista prestador de um serviço essencial, como de energia elétrica. É possível que a comunidade esteja ressentida com as constantes quedas de energia, oscilações nas redes etc., mas será impossível um boicote, ao menos em larga escala, dos serviços prestados.

De toda forma, fica patente como a categoria da “Licença social” mencionada por Gunningham ajuda a esclarecer como o processo regulatório é complexo e dependente de uma visão bem mais abrangente do que se poderia supor sobre as relações sociais.

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