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É de sabença comum que o direito administrativo, pela ausência de codificação, ressente-se de maior uniformização de seus institutos. Cada doutrinador, por exemplo, quando trata dos elementos ou atributos do ato administrativo, elenca alguns de sua preferência em detrimento de outros, utilizados por outros doutrinadores. Dessarte, não era de se esperar completa uniformidade na conceituação dos bens reversíveis. Apenas para exemplificar, para Cretella Júnior, reversão é “o instituto de direito público mediante o qual, finda a concessão, volta automaticamente para o domínio do Estado todo o material de instalação, bem como os bens públicos temporariamente cedidos ao concessionário”528

Tal conceituação levaria a um alargamento enorme dos bens reversíveis. Por isso, é mais comum, e consentâneo com a realidade, afirmar-se que os bens reversíveis são aqueles que, vinculados à prestação do serviço, impedem sua desorganização, tendo como objetivo permitir que o concedente possa continuar a explorar o serviço, finda a concessão529.

Floriano Azevedo Marques aponta três situações nas quais a reversão pode estar envolvida: (i) a reversão como instituto de devolução de bens; (ii) a reversão como vetor de auferição de bens; e (iii) a reversão como instituto para garantia da continuidade do serviço.

527 MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Concessões. Belo Horizonte: Fórum, 2015, p. 196.

528 CRETTELA JR., José. Tratado de direito administrativo. Vol. III, p. 165. Apud LOPES, Vera Maria de Oliveira Nusdeo. O Direito à Informação e as Concessões de Rádio e Televisão. São Paulo: RT, 1997, p. 128. 529 SILVA, Carlos Medeiros. Concessão de serviço público – Reversão – Fundo de amortização – Interpretação dos atos administrativos – Ilegalidade e abuso de poder – Instrumento público – Mandado de segurança. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 43, p. 454-470, jan. 1956, p. 459.

O primeiro caso ocorreria quando os bens reversíveis são entregues pelo Poder Concedente à concessionária para que preste o serviço, retornando ao domínio do concedente após a expiração do termo contratual. O exemplo citado por Floriano Marques é o da concessão de rodovias brownfield, em que o uso de um bem público rodovia  é transferido à concessionária, mas o bem segue sendo público e sua posse deve retornar ao Poder Público ao final da concessão.

A reversão pode, também, ocorrer como “vetor de auferição de bens pelo Poder Concedente”, ou seja, como fator de aumento patrimonial do Poder Concedente. Em casos quetais, parte-se do pressuposto de que, para a prestação do serviço, é necessário, antes de tudo, que determinado bem público seja construído ou elaborado. Assim, esses bens, inexistentes quando da outorga da concessão, passarão ao domínio do Poder Concedente ao término do contrato administrativo. O exemplo que ele dá é o caso da concessão de uma rodovia greenfield, caso em que a concessionária deve proceder à construção de infraestrutura como pré-requisito à operação do serviço. Como exemplo, ele dá o caso da produção de energia elétrica com a construção e operação de uma usina hidrelétrica.530 Nesses casos, o bem construído ou fabricado deve, necessariamente, reverter para o patrimônio público, caso contrário ter-se-ia a inviabilização da prestação do serviço.

Em terceiro lugar, a reversão pode funcionar como “instituto para garantia da continuidade do serviço prestado em regime público”. Nesse caso, ela alcança os demais bens que a concessionária utiliza no prazo da concessão para prestação do serviço. Trata-se, é claro, de bens reversíveis, mas que são dotados de fungibilidade (diferentemente da rodovia construída), em outras palavras, não é necessário que determinado e específico bem seja empregado. Ou seja, esses bens, por sua natureza, possuem outras finalidades que não o emprego no serviço público. Tanto do ponto de vista do domínio quanto do da função por eles desempenhadas, poderiam ser normalmente, e sem ressaltos, privados. Entretanto, por estarem jungidos à continuidade do serviço público, mesmo que estejam na dominialidade privada, são funcionalmente públicos531.

Nesse caso, portanto, a reversão ocorrerá à medida que o bem é necessário para a continuidade do serviço, e não como um vetor de aumento patrimonial do Poder Concedente.

530 MARQUES NETO, Floriano Peixoto de Azevedo. Parecer sobre reversibilidade de bens no STFC, 2015, mimeo, p. 21.

Estando o bem afetado ao serviço, ou à continuidade do serviço, para ser mais precisamente, ele é um bem reversível.

Tal concepção vai ao encontro de mudanças na noção de propriedade, inclusive dos bens públicos, nos últimos anos. Citem-se duas que interessam mais diretamente ao presente trabalho:

a) crescente desmaterialização da noção de riqueza532, correspondente a um predomínio do valor do uso sobre o valor da simples comutação;

b) maior funcionalização da propriedade, manifestada na crescente atenção do direito para com a finalidade a ser cumprida no emprego dos bens533. Especificamente com relação à funcionalização da propriedade, ela foi definida por Floriano Marques Neto como “a crescente atenção do direito para com a finalidade a ser cumprida pelo emprego de bens, públicos e privados, e que tem como fator mais patente a adstrição dos bens à função social”534.

Essa última concepção é a que predomina nos meios jurídicos, ou seja, afirma-se, comumente, que os bens reversíveis são aqueles que desempenham uma função na concessão, a de assegurar a continuidade do serviço, como se vê nas citações reproduzidas nas notas de rodapé535536537538539.

532 Cf. MENZEL, Ulrich. La revolution pos industrial: tercerización y desmateralización de la economía. Revista D+C Desarrollo y Cooperación, Frankfurt, n. 5, 1995, p. 56-78.

533 BASTOS, Celso Ribeiro et al. As tendências do direito público no limiar do novo milênio. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 374.

534 MARQUES NETO, Floriano Azevedo. Bens Públicos, Função Social e Exploração Econômica: O Regime Jurídico das Utilidades Públicas. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p 389.

535 “A reversão compreende os bens de qualquer natureza, vinculados à prestação do serviço. [..,] Os bens, moveis ou imóveis, estranhos à destinação do contrato, são do patrimônio privado da concessionária que deles pode dispor livremente. [...] a razão de reverterem ao concedente, indiscriminadamente, todos esses bens, está em que o que reverte, não são propriamente esses, senão o serviço concedido, serviço publico de execução sub- rogada no concessionário e que este, finda a concessão, terá de devolver organizado e aparelhado, como um todo, em ponto de poder ser prestado continuadamente pela Administração ou mediante nova delegação desta a terceiro. Dai decorre, obviamente, que os bens que possua a concessionária, não vinculados à prestação do serviço, não revertem, o que seria uma obrigação sem causa, um enriquecimento ilícito”. Cf. NUNES, Castro. Parecer: Concessão de Serviço Público – Reversão – Fundo de Amortização – Publicidade de Atos Administrativos – Poder de Polícia – Abuso de Poder. Revista de Direito Administrativo – RDA, v. 42, p. 457- 458, outubro a dezembro de 1955).

536 "[a] reversão, como a própria palavra indica, é o retorno do serviço ao concedente, ao término do prazo contratual da concessão. (...) a reversão só abrange os bens, de qualquer natureza, vinculados à prestação do serviço. Os demais, não utilizados no objeto da concessão constituem patrimônio privado do concessionário, que deles pode dispor livremente, e, ao final do contrato, não está obrigado a entregá-los, sem pagamento, ao concedente, Assim é porque a reversão só atinge o serviço concedido e os bens que asseguram a sua adequada prestação”. Cf. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 21. ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 351.

537 "Serviços de bondes do Distrito Federal; reversão à Prefeitura dos bens da companhia, sua concessionária; somente são reversíveis aqueles vinculados, próprios ou afetos à execução do serviço concedido, na

De toda forma, é preciso deixar bem vincado, como já se disse, que os bens reversíveis são não (necessariamente) públicos, mas podem sim ser bens particulares, caracterizados por um instituto especial: o da afetação ao serviço público. Trata-se de uma espécie de “titularidade privada de coisas públicas”, não ao modo de propriedade, mas pela funcionalidade; afetação não traduz, portanto, título de propriedade, mas de potestade sobre a coisa. Segundo Gaspar Ariño Ortiz, esta é a concepção mais condizente com a atual forma de atuação do Estado, qualificando bens com um regime misto para consecução das tarefas necessárias, entrecruzando-se uma feição pública (a vinculação ao serviço, que está submetida ao direito público) e outra privada (o regime jurídico geral do bem, no qual não interfira tal situação). Na sua visão, a afetação se insere entre os deveres de facere ou praestare, constituindo-se numa vinculação de conteúdo positivo que tem natureza de obrigação e de sujeição540

O mesmo autor traz os seguintes efeitos jurídicos dessa situação de “afetação”, entre outros541:

 A imobilidade dos bens em relação ao serviço;

 A perda por seu proprietário do ius disponendi: proibição de cessões, alienações, arrendamentos etc., (no caso da concessão, ao menos sem autorização do Poder Concedente);

 A obrigação de conservação e manutenção em bom estado, sob as ordens da administração;

conformidade do respetivo contrato, esclarecido por 'termos de acordo' posteriores; os adquiridos, portanto, pela concessionária, por aplicação de seus recursos, sem aquela destinação, são de sua livre propriedade e, consequentemente, não reversíveis. Se a reversão estabelecida significa, ou implica, a do serviço concedido, a inteligência a dar à cláusula respectiva, quanto à devolução dos bens da concessionária é de que tais bens são aqueles vinculados, próprios ou afetos à execução do serviço concedido, de forma a assegurar que ela volta ou reverta ao poder concedente devidamente aparelhado”. Cf STF, RE 32.865l DF, 24 T., Rel. Min. Edgard Costa, j. 28.8.56.

538 "Administrativo. Ação Popular. Prestadora de Serviço Público de Telefonia. Escritório Administrativo já desativado. Alienação bem reversível. Conceito, (...) 2.4 Vê-se que o bem alienado continuar como bem reversível, ainda que fora de uso não se harmoniza com o conceito de bens reversíveis. O que está desativado e fora de uso não é essencial à prestação de qualquer serviço" Cf. STJ, AgRg no REsp 971.851, 2 L, Rel. Min. Castro Meira, DJE 08.09.2008.

539 “A afetação de bens ao serviço verifica-se na data da reversão não abrangendo bens que, por desnecessários, ou obsoletos, ou por conveniência do concessionário, forem desvinculados do domínio da concessão. Não pode o concedente impedir que o concessionário desvincule qualquer bem utilizado na exploração do serviço de uma vez que sobre o patrimônio do concessionário não tem direito algum derivado de eventual e futura aquisição de propriedade.”.Cf. Apelação Cível nº 41.248, Relator Ministro Carlos Madeira. Acórdão publicado na Revista de Direito Administrativo – RDA/145-64).

540 ORTIZ, Gaspar Ariño. A afetação de bens ao serviço público. O caso das redes. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 258, p. 11-25, maio 2013, p. 17-18.

 A ação de ofício para que a administração recupere a possessão perdida sobre eles, e isto ainda que sem a vontade de seu dono, e qualquer que seja o título pelo qual se separou (venda, arrendamento, execuções etc.);

A questão da afetação do bem é extremamente importante, uma vez que, na visão funcionalizada dos bens, não importa tanto a titularidade dele quanto a função que é desempenhada no contexto do serviço. Ou seja, quando se afirma que tal bem é reversível e está afetado à prestação do serviço, não necessariamente se quer dizer que esse bem é público, nem mesmo que é de titularidade da concessionária; ele pode muito bem ser de um terceiro privado, mas que, por um acordo com a concessionária, está sendo utilizado para a prestação do serviço. Isso reforça que o fundamento da reversão é a continuidade do serviço e não eventual patrimonialidade do bem. Essa a posição da doutrina e da jurisprudência majoritárias, ao menos.

Essa visão pode trazer uma consequência jurídica relevante: ela implica que, estando o bem funcionalmente afetado à continuidade, essa afetação é que continua sendo necessária, depois do fim da concessão, independentemente da propriedade do bem. Ou seja, a reversão não deve implicar, necessariamente, a transferência da propriedade do bem reversível para o Poder Concedente, mesmo porque a concessionária pode utilizar bens de terceiros na viabilização do serviço. Assim, Floriano Marques Neto entende que os contratos que formalizem a utilização de bens de terceiros na concessão devem estipular cláusula prevendo a manutenção do pacto firmado ao término de seu prazo, sub-rogando ao poder público ou ao novo concessionário os efeitos deles, assegurando-se, assim, plenamente, a continuidade da prestação do serviço, sendo alcançado o objetivo da reversão.542

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