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1 PREMISSAS METODOLÓGICAS E DELIMITAÇÃO DO OBJETO

2.2 A fiscalização tributária e o dever de colaborar

O dever de colaborar imputado aos indivíduos submetidos à fiscalização é um “dever de facultar meios de prova cuja valoração caberá ao órgão de aplicação do direito”108. Isto é, enquanto sujeito passivo do procedimento fiscalizatório, é

fundamental a participação do particular, proporcionando ao agente competente meios aptos para a construção de um juízo acerca dos fatos. Todas as provas colhidas pelo agente fiscal, mediante a colaboração do fiscalizado, são analisadas e valoradas em conjunto com os demais elementos obtidos, de modo que o qualificativo da relatividade permeia todos os documentos109.

Nesse sentido, não há cogitar-se de uma repartição do dever de instrução probatória entre o Fisco e os fiscalizados, mas de um dever de o particular

107 Ilustrativamente, neste sentido, é a legislação Federal, que enuncia, na Lei nº 10.593, de 6

de dezembro de 2002: “Art. 6º São atribuições dos ocupantes do cargo de Auditor-Fiscal da Receita Federal do Brasil: I - no exercício da competência da Secretaria da Receita Federal do Brasil e em caráter privativo: a) constituir, mediante lançamento, o crédito tributário e de contribuições; b) elaborar e proferir decisões ou delas participar em processo administrativo-fiscal, bem como em processos de consulta, restituição ou compensação de tributos e contribuições e de reconhecimento de benefícios fiscais; c) executar procedimentos de fiscalização, praticando os atos definidos na legislação específica, inclusive os relacionados com o controle aduaneiro, apreensão de mercadorias, livros, documentos, materiais, equipamentos e assemelhados; d) examinar a contabilidade de sociedades empresariais, empresários, órgãos, entidades, fundos e demais contribuintes, não se lhes aplicando as restrições previstas nos arts. 1.190 a 1.192 do Código Civil e observado o disposto no art. 1.193 do mesmo diploma legal; e) proceder à orientação do sujeito passivo no tocante à interpretação da legislação tributária; f) supervisionar as demais atividades de orientação ao contribuinte; II - em caráter geral, exercer as demais atividades inerentes à competência da Secretaria da Receita Federal do Brasil.”

108 XAVIER, Alberto. Do Lançamento no Direito Tributário Brasileiro. Rio de Janeiro:

Forense, 2005, p. 161.

109 Exemplificativamente, “a despeito do disposto no art. 226 do Código Civil, cuja

literalidade aparenta conferir caráter de prova plena aos documentos ali relacionados, essa modalidade de prova documental, assim como qualquer outro meio probatório tributário, ostenta o qualificativo da relatividade, podendo ser ilidida por prova contrária, demonstrando-se a falsidade da escrituração, realizada de modo inadvertido ou proposital” (TOMÉ, Fabiana Del Padre. A Prova no Direito Tributário. 3. ed. São Paulo: Noeses, 2011, p. 114).

proporcionar relatos de fatos que serão apreciados livremente, perfazendo o papel de elemento de convicção da Administração110.

Na posse dos elementos colhidos durante o procedimento fiscalizatório, a Administração procede à sua análise dentro do contexto da sua atividade, sendo que a presunção de adequação do relato ao fato pode ser afastada no caso concreto111. Especialmente porque:

O processo tributário é oficial e não um processo de partes. O fisco não pode só considerar o que o obrigado alega e prova; não pode supor inexistente o que ele cale. Deve o fisco conduzir o procedimento (de lançamento ou de recurso) com o fim de lançar, o mais exatamente possível, o estado de coisas que criou o fato gerador, seja esse (estado de coisas) favorável ou não ao acusado112.

Na fiscalização em sentido estrito, é o fisco quem tem o dever de oferecer prova concludente de que o fato ocorreu na estrita conformidade da previsão

110 Ruy Barbosa Nogueira é contundente ao atribuir caráter instrutório à participação do

fiscalizado no procedimento fiscalizatório, demonstrando que os documentos que relatam as atividades dos particulares ainda prescindem de valoração pela administração: “A autoridade fiscal apura de ofício o fato tributário, determina o modo e a extensão dessa apuração e não se vincula às alegações e provas das partes” (NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 239).

Também neste sentido: “o contribuinte tem o dever jurídico de colaborar na instrução desse procedimento [fiscalizatório], o que inclui prestar declarações, esclarecimentos, exibir livros ou documentos em seu poder, ou seja, facultar os meios de prova cuja valoração caberá à autoridade fazendária” (NEDER, Marcus Vinicius; LOPEZ, Maria Teresa Martínez López. Processo Administrativo Fiscal Federal Comentado. São Paulo: Dialética, 2002, p. 99).

111 Uma vez preenchidos os requisitos procedimentais afetos à produção dos deveres

instrumentais, são as palavras de José Luiz Saldanha Sanches acerca da verossimilhança dos relatos: “A regularidade formal cria uma presunção de conformidade material, mas tal presunção pode ser afastada pelas circunstâncias externas que põe em causa os elementos contidos na contabilidade” (SANCHES, José Luís Saldanha. A quantificação da obrigação tributária. Lisboa: Lex, 2000, p. 260).

112 ATALIBA, Geraldo. Lançamento – Procedimento regrado: discricionariedade na

investigação e levantamento de dados. Esclarecimentos e informações do contribuinte. Impossibilidade jurídica da presunção quando a lei requer prova. Estudos e Pareceres de Direito Tributário, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1978, p. 341. Observe-se que, em que pese ao mestre Geraldo Ataliba tratar dos termos processo e procedimento de modo diferente do que demonstraremos no item seguinte, julgamos interessante colacionar as suas palavras, que realçam a presunção relativa dos documentos apresentados pelo fiscalizado.

genérica da hipótese normativa. Para tanto, realiza a análise de documentos, podendo infirmar relatos produzidos pelo administrado113.

A título ilustrativo, no plano federal, a Lei nº 9.784/1999, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal114, anuncia os deveres do administrado que se alinham com o dever de colaborar tratado neste item, in verbis:

Art. 4º São deveres do administrado perante a Administração, sem prejuízo de outros previstos em ato normativo:

I - expor os fatos conforme a verdade;

II - proceder com lealdade, urbanidade e boa-fé; III - não agir de modo temerário;

IV - prestar as informações que lhe forem solicitadas e colaborar para o esclarecimento dos fatos.

Como se pode notar, o dever de colaboração do particular resume-se em posturas facilitadoras do acesso do agente fiscal aos relatos dos fatos, sendo que a valoração das provas fica à mercê deste último. O atendimento à intimação para a apresentação de documentos gera uma expectativa acerca das normas que serão aplicadas ao caso concreto, sendo que apenas o sujeito competente para interpretar os elementos emite um juízo juridicamente relevante a respeito do Direito aplicável.

Tamanha é a relevância da cooperação do sujeito fiscalizado, que a sua ausência, nos casos de presunção de incidência de tributo, enseja não apenas o

113 “Por exemplo, se certo documento designa uma operação de compra e venda, mas a

mercadoria vendida não existe, ou não foi determinado preço, negócio jurídico de compra e venda não há, de sorte que o Fisco estará habilitado para requalificar – em outra situação jurídica – ou desqualificar – para não enquadrá-la em nenhuma outra situação jurídica – a linguagem produzida pelo contribuinte, para fina de perfazer a incidência da norma tributária (MCNAUGHTON, Charles William. Elisão e Norma Antielisiva. São Paulo:

Noeses, 2014, p. 169).

114 E, observe-se, reconhecidamente pela doutrina e jurisprudência aplica-se também às

emprego das técnicas indiciárias para a constituição dos fatos jurídicos, como, ainda, a denúncia por resistência, desobediência ou desacato115, a requisição do auxílio de força pública116, o ajuizamento de ação de busca e apreensão117, a

115 Código Penal: “Resistência Art. 329 - Opor-se à execução de ato legal, mediante violência

ou ameaça a funcionário competente para executá-lo ou a quem lhe esteja prestando auxílio: Pena - detenção, de dois meses a dois anos; Desobediência Art. 330 - Desobedecer a ordem legal de funcionário público: Pena - detenção, de quinze dias a seis meses, e multa; Desacato Art. 331 - Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela: Pena - detenção, de seis meses a dois anos, ou multa.”

116 Código Tributário Nacional: “Art. 200. As autoridades administrativas federais poderão

requisitar o auxílio da força pública federal, estadual ou municipal, e reciprocamente, quando vítimas de embaraço ou desacato no exercício de suas funções, ou quando necessário à efetivação dê medida prevista na legislação tributária, ainda que não se configure fato definido em lei como crime ou contravenção.”

117 Código de Processo Civil: “Art. 839. O juiz pode decretar a busca e apreensão de pessoas

aplicação de penalidade pelo embaraço à atividade fiscalizatória118, além da possível criminalização da conduta119.

Outrossim, é importante observar que o dever de colaborar, assim como todos os demais direitos e deveres, não é absoluto, de modo que exige a delimitação do seu âmbito de proteção, isto é, da acurada definição do seu conteúdo120.

118 Como é o caso da instituição do regime especial de fiscalização previsto no Regulamento

do Imposto sobre operações de importação: “Art. 541. A Secretaria da Receita Federal do Brasil poderá determinar regime especial para cumprimento de obrigações, pelo sujeito passivo, nas seguintes hipóteses: I - embaraço à fiscalização, caracterizado pela negativa não justificada de exibição de livros e documentos em que se assente a escrituração das atividades do sujeito passivo, bem como pelo não fornecimento de informações sobre bens, movimentação financeira, negócio ou atividade, próprios ou de terceiros, quando intimado, e demais hipóteses que autorizam a requisição do auxílio da força pública, nos termos do art. 200 da Lei nº 5.172, de 1966; II - resistência à fiscalização, caracterizada pela negativa de acesso ao estabelecimento, ao domicílio fiscal ou a qualquer outro local onde se desenvolvam as atividades do sujeito passivo, ou se encontrem bens de sua posse ou propriedade; III - evidências de que a pessoa jurídica esteja constituída por interpostas pessoas que não sejam os verdadeiros sócios ou acionistas, ou o titular, no caso de firma individual; IV - realização de operações sujeitas à incidência tributária, sem a devida inscrição no cadastro de contribuintes apropriado; V - prática reiterada de infração da legislação tributária; VI - comercialização de mercadorias com evidências de contrabando ou descaminho; ou VII - incidência em conduta que enseje representação criminal, nos termos da legislação que rege os crimes contra a ordem tributária. § 1o O regime especial

de fiscalização será aplicado em virtude de ato do Secretário da Receita Federal do Brasil. § 2o O regime especial pode consistir, inclusive, em: I - manutenção de fiscalização

ininterrupta no estabelecimento do sujeito passivo; II - redução, à metade, dos períodos de apuração e dos prazos de recolhimento dos tributos; III - utilização compulsória de controle eletrônico das operações realizadas e recolhimento diário dos respectivos tributos; ou IV - exigência de comprovação sistemática do cumprimento das obrigações tributárias. § 3o As medidas previstas neste artigo poderão ser aplicadas isolada ou cumulativamente,

por tempo suficiente à normalização do cumprimento das obrigações tributárias. § 4o A

imposição do regime especial não elide a aplicação de penalidades previstas na legislação tributária. § 5o As infrações cometidas pelo contribuinte durante o período em que estiver

submetido a regime especial de fiscalização serão punidas com a multa de que trata o art. 571.”

119 Criminalizando a conduta consubstanciada no desatendimento de intimação fiscal para a

apresentação de documentos é Lei nº 8.137/1990, artigo 1, inciso V: “Art. 1° Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas: […] V - negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação. Pena - reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.”

120 Observe-se que, a título de estudo das limitações e restrições aos direitos, foram

desenvolvidas as teorias externa e interna. Segundo a teoria externa, o direito individual e a restrição são categorias distintas, que necessariamente devem ser compatibilizadas para possibilitar a convivência em sociedade. Já para a teoria interna, os direitos individuais e as restrições são partes opostas de uma mesma moeda, tal como ressalvado por Alexy: “a eventual dúvida sobre o limite do direito não se confunde com a dúvida sobre a amplitude

Nesse sentido, há recusas legítimas de colaboração, tais como nas hipóteses de pedido de informações que afrontem ao princípio da legalidade, como por deveres instrumentais não instituídos por lei, ou à proporcionalidade, pela solicitação de documento que não se configure o meio menos oneroso para o fiscalizado facultar a informação à Administração, por exemplo121.