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1 PREMISSAS METODOLÓGICAS E DELIMITAÇÃO DO OBJETO

3.1 O critério pessoal – Sujeito competente para aplicar as normas de

3.1.1 Agentes fiscais e particulares: privatização da atividade fiscalizatória?

No que se refere à constituição das obrigações tributárias, é crescente o número de disposições legais que atribuem ao administrado o encargo de constituir o crédito tributário187, contudo, em relação à atividade fiscalizatória, essa tendência não encontra qualquer viabilidade, já que o particular não detém capacidade para participar da gestão fiscalizatória tributária188.

O sujeito competente para aplicar as normas de fiscalização tributária é exclusivamente aquele inserido nos quadros de agentes fiscais que compõem a Administração Pública. A atividade de fiscalização das obrigações tributárias e dos deveres instrumentais é formada por um conjunto de atos que buscam, por intermédio dos elementos disponíveis, a construção da convicção do Fisco acerca dos acontecimentos factuais, a fim de enquadrá-los no antecedente de normas tributárias primárias precedentes ou derivadas e regular a concretude da vida social: seja homologando, retificando ou complementando a atividade do administrado e/ou constituindo originariamente obrigações e sanções tributárias. Partindo desse pressuposto, o sujeito que detém legitimidade para

187 Sobre a privatização da gestão tributária: LAPATZA, Ferreiro; JUÁN, José. La

privatización de la gestión tributaria y las nuevas competencias de los tribunales económico-administrativos. Civitas – REDF, v. 37, p. 81 et seq. apud HORVATH, Estevão. Lançamento tributário e “autolançamento”. São Paulo: Dialética, 1997, p. 71.

188 Corroborando a assertiva: “outorgam-se ao particular, sob regime de concessão ou

permissão, somente atividades privativas do Poder Público; e a polícia administrativa o é. Contudo, isso não basta: para que a ‘atividade pública’ possa ser atribuída ao particular por meio de concessão ou permissão ‘é necessário que sua prestação não haja sido reservada exclusivamente ao próprio Poder Público’ – nas palavras de Celso Antonio Bandeira de Mello. E polícia administrativa é atividade tipicamente do Estado! Exclusiva! Portanto, não pode ser objeto de concessão ou permissão” (VITTA, Heraldo Garcia. Poder de Polícia. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 150).

inserir no sistema jurídico um expediente normativo enunciador de um fato jurídico em sentido estrito e constitutivo de um vínculo obrigacional tributário é quem pode figurar no polo ativo da norma de fiscalização. É o sujeito dotado de legitimidade para exigir o cumprimento das obrigações tributárias e dos deveres instrumentais, competente para fiscalizar, uma vez que a conclusão de procedimento fiscalizatória visa a inserir no sistema jurídico normas expressivas de um juízo acerca da conduta do fiscalizado em face da lei.

Na seara fiscalizatória, portanto, não resta campo para o intenso aumento da participação do particular.

Como já mencionado alhures, ao Direito interessam as condutas intersubjetivas, de modo que a possível fiscalização realizada por determinado indivíduo acerca de seus próprios atos não é relação juridicamente relevante, ressalvadas as consequências decorrentes das eventuais hipóteses de eficaz retificação de dado incorretamente indicado em momento anterior. Assim, caso a fiscalização fosse outorgada aos particulares, tratar-se-ia de uma relação recíproca, em que um particular tivesse o dever de fiscalizar a atividade de outro. Ocorre que essa ideia de atribuição de competência aos particulares para fiscalizarem a atividade desempenhada por outros iguais não se coaduna com o ordenamento jurídico vigente. Nesse sentido, são as argutas observações de Celso Antonio Bandeira de Mello, in verbis:

Os atos jurídicos expressivos de poder público, de autoridade pública, e, portanto, os de polícia administrativa, certamente não poderiam, ao menos em princípio, e salvo circunstâncias excepcionais ou hipóteses muito específicas (caso, ‘exempli gratia’, dos poderes reconhecidos aos capitães de navios), serem delegados a particulares, ou serem por eles praticados. A restrição à atribuição de atos de polícia a particulares funda- se no corretíssimo entendimento de que não se lhes pode, ao menos em princípio, cometer o encargo de praticar atos que envolvem o exercício de misteres tipicamente públicos quando em causa liberdade e propriedade, porque ofenderiam o

equilíbrio entre os particulares em geral, ensejando que uns oficialmente exercesse supremacia sobre outros189.

De fato, a outorga de legitimidade aos particulares para aplicarem normas de fiscalização e, consequentemente, imputarem obrigações a outrem provocaria uma situação inédita, capaz de ocasionar sérios danos à segurança jurídica. Duas possíveis ocorrências originárias desse caótico cenário são: a subjetividade que permeia o processo de aplicação do Direito, antes resumida à Administração Pública, passaria a contar com juízos produzidos por inúmeros intelectos; ademais, as aplicações da legislação poderiam passar a ser arbitrárias, em atitudes influenciadas pela má-fé, no intuito de desfavorecer a livre iniciativa, em detrimento dos caros princípios afetos ao procedimento fiscalizatório, tais como a homenagem do interesse público sobre o particular, bem como da legalidade e da busca pela verdade jurídica. Isso porque os agentes fiscais, diferentemente dos particulares, estão sujeitos a um específico regime jurídico, que lhes impõe a atuação nos exatos termos da lei, sem campo para a influência de qualquer interesse político190. A ação administrativa é, obrigatoriamente, secundum legem. Por estas razões, como já fora mencionado no item 2.1.1. Competência Fiscalizatória, apenas o Poder Executivo, por meio dos agentes que integram a Administração Tributária191, pode, legitimamente, compor o critério pessoal ativo da norma de competência fiscalizatória. Nesse

189 MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo:

Malheiros, 2009, p. 832.

190 “Os direitos e garantias de servidores, especificamente ‘estatutários’ – integrantes da

Administração direta e de autarquias, regidos por estatutos, isto é, leis, de cada entidade política, no âmbito do respectivo território -, existem em benefício da sociedade. A população espera desses agentes públicos imparcialidade no desempenho de atividades públicas; por isso, não podem sujeitar-se às pressões de grupos políticos momentâneos” (VITTA, Heraldo Garcia. Poder de Polícia. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 145).

191 Frise-se, vinculados pelo regime estatutário e, jamais, celetista, haja vista que “não há

possibilidade fora do regime institucional/estatutário de se dar prevalência ao interesse público sobre o interesse privado. Isto porque a adoção do regime celetista retira do poder público a possibilidade de alterar regras do jogo no decorrer da relação mantida com os seus servidores. As jurisprudência e doutrina pátrias são pacíficas ao aceitarem a alteração dos direitos e vantagens dos servidores no decorrer de uma relação institucional. Já no tocante ao regime celetista ocorre o inverso. Aqui o que prevalece é a proteção ao obreiro” (BASTOS, Evandro de Castro. O regime estatutário, a fiscalização da coisa pública e as “pedras de toque” do regime jurídico-administrativo. In: ______; BORGES JR., Odilon. Novos rumos da autonomia Municipal. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 103).

mesmo sentido, o artigo 145, § 1º, da Constituição Federal192, expressamente outorga o dever fiscalizatório à administração tributária, não havendo disposições normativas que deleguem referida atividade aos particulares. É relevante consignar que o Supremo Tribunal Federal193, em análise da inconstitucionalidade de dispositivos afetos à legislação que dispunha sobre a fiscalização de profissões regulamentadas, houve por bem, entre outras questões, declarar a contrariedade à Constituição Federal dos preceitos legais que delegavam aos particulares referidas atividades, pois que patentemente representativas do exercício de polícia, já que relacionadas à tributação e punição.

Observe-se que, naquela oportunidade, as discussões em plenário suscitaram a ideia de delegação do poder de polícia no âmbito do Código de Trânsito Brasileiro, no que se refere às parcerias do Poder Público com os particulares para o registro de infrações por meio de aparelhos eletrônicos. Como muito bem ressalvado em breve ponderação colocada pelo Ministro Sepúlveda Pertence, não há falar-se, neste tocante, de privatização do poder de polícia, já que nestas hipóteses os particulares não aplicam as normas aos casos concretos,

192 “Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a

capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.”

193 “DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO DIRETA DE

INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 58 E SEUS PARÁGRAFOS DA LEI FEDERAL Nº 9.649, DE 27.05.1998, QUE TRATAM DOS SERVIÇOS DE FISCALIZAÇÃO DE PROFISSÕES REGULAMENTADAS. […] a interpretação conjugada dos artigos 5°, XIII, 22, XVI, 21, XXIV, 70, parágrafo único, 149 e 175 da Constituição Federal, leva à conclusão, no sentido da indelegabilidade, a uma entidade privada, de atividade típica de Estado, que abrange até poder de polícia, de tributar e de punir, no que concerne ao exercício de atividades profissionais regulamentadas, como ocorre com os dispositivos impugnados. 3. Decisão unânime” (ADI 1717, Relator(a): Min. SYDNEY SANCHES, Tribunal Pleno, julgado em 07/11/2002, DJ 28-03-2003 PP- 00061 EMENT VOL-02104-01 PP-00149).

senão fornecem elementos para os agentes competentes subsidiarem a positivação do Direito194.

Assim, podemos inferir que a Corte Máxima Brasileira julga que o exercício do poder de polícia, categoria dentro da qual se enquadra a atividade fiscalizatória tributária, enquanto exercício de função típica e essencial do Estado, no exercício pleno de sua soberania, não pode ser objeto de delegação aos particulares. Sendo que a suposta ocorrência de referida delegação de competência, como no seio da fiscalização das regras atinentes ao trânsito, por

194 Apesar de não concordarmos em ser o fornecimento do substrato linguístico uma forma de

fiscalização, isto é, de exercício do poder de polícia, Heraldo Garcia Vitta enumera as atividades representativas da polícia administrativa, dentre as quais figuram as atividades materiais, que se enquadram ao nosso conceito de atividade que pode ser atribuída aos particulares, e permite a delegação do seu desempenho: “Quando se fala em polícia administrativa – atividade exclusiva do Estado, na qual há contornos jurídicos à liberdade e propriedade das pessoas – tem-se, dentre outros atos jurídicos ampliativos (como autorizações e licenças), atos jurídicos restritivos da esfera jurídica do administrado (ordens, proibições, medidas cautelares, imposição de penalidades administrativas) e atividades materiais (guinchar veículo na via pública; apreender produtos deteriorados; fechar fábrica poluidora; intentar, compulsoriamente, louco, em hospital público, etc.). […] particulares, contratados pelo Poder Público podem praticar atos materiais que precedem atos jurídicos de polícia [como exemplo dos equipamentos fotossensores pertencentes e operados por empresas privadas] […] Sem embargo, de acordo com Celso Antônio Bandeira de Mello, atividades materiais podem ser praticadas por particular – contratado pela Administração – quando forem sucessivas de atos jurídicos de polícia realizados pelo Poder Público” (e.g., contratar empresa privada para demolir dado prédio em ruínas)” (VITTA, Heraldo Garcia. Poder de Polícia. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 153-155).

A título ilustrativo: “ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. OMISSÃO NÃO CONFIGURADA. INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO AO ARTIGO 535, II DO CPC. MULTA DE TRÂNSITO. NULIDADE DE AUTOS DE INFRAÇÃO. EQUIPAMENTO ELETRÔNICO (RADAR FIXO). LAVRATURA DO AUTO DE INFRAÇÃO. AUSÊNCIA DE INDICAÇÃO DO AGENTE AUTUADOR. ART. 280 DO CTB. RESOLUÇÃO DO CONTRAN. […] 3. O Código de Trânsito Brasileiro e Resoluções do CONTRAN permitem a comprovação de infrações no trânsito por meio de aparelhos eletrônicos. […] 5. Os ‘‘pardais’’ não aplicam multas, apenas fornecem elementos fáticos para que o DETRAN lavre o auto e imponha sanções quando comprovadas as infrações. […] ‘‘A função da polícia administrativa envolve o ‘‘poder de império’’ sobre a vontade individual, devendo ser exercida por entidade com personalidade jurídica de direito público (administração direta – centralizada – ou, se descentralizada, só se pode outorgá-la para uma autarquia). Para tanto, pode ser necessário o uso de insumos – pessoal e equipamentos – privados, o que não se confunde com transferência do exercício do poder de polícia para o particular, o que representa um dos limites à desestatização.’’ (Marcos Juruena Villela Souto, in Direito Administrativo Regulatório, 2ª edição, Editora Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2005, pág:73/74). 7. Recurso especial desprovido” (REsp 772347/DF, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 28/03/2006, DJ 17/04/2006, p. 181).

exemplo, é, na verdade, mera cessão da atividade de coleta de elementos que subsidiam a construção de um juízo precedente à produção de atos administrativos.

Aplicando essas lições ao âmbito do Direito Tributário, é a crítica à interpretação de que a regra insculpida no artigo 155, § 2º, inciso I, da Constituição Federal195, impõe a efetiva cobrança e respectiva comprovação de pagamento do tributo para a consecução do direito ao crédito. Como muito bem ponderado por Clélio Chiesa196, o termo cobrado mencionado no referido enunciado prescritivo deve ser compreendido como devido, pois, caso contrário, estar-se-ia impondo a necessidade de que cada contribuinte se certificasse de que seus fornecedores e produtores efetivamente constituíram e recolheram aos cofres públicos o ICMS incidente em toda a cadeia de circulação da mercadoria até a operação ou prestação presente. À parte dos argumentos pela manutenção do direito creditício independentemente do pagamento e respectiva comprovação, em virtude da ausência de ingerência do Estado de destino acerca da tributação na jurisdição de origem, bem como da obrigatória observância ao postulado da não cumulatividade, temos que o contribuinte adquirente de mercadoria ou tomador de serviços não dispõe de poderes para fiscalizar e exigir o cumprimento de obrigações tributárias pelo vendedor ou prestador do serviço. Ao nosso ver, a solução neste caso seria, no máximo, a instituição de um dever instrumental pelo qual o sujeito que firma

195 “Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: […] II - operações

relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior; […] § 2.º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte: I - será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal.”

196 “Nada obstante o legislador tenha se utilizado da referida expressão [montante cobrado] ao

dispor sobre o crédito, o intérprete não pode se limitar a uma interpretação literal da legislação. A exegese de que o crédito está atrelado ao montante pago nas operações anteriores não nos parece ser a mais adequada. A origem do crédito está atrelada à existência de operação tributada. Essa é a ilação que se pode extrair da análise dos perceptivos que disciplinam a matéria” (CHIESA, Clélio. Créditos de ICMS: situações polêmicas. In: VII Congresso Nacional de Estudos Tributários – Direito Tributário e os conceitos de Direito Privado. São Paulo: Noeses, 2011, p. 251).

negócios informa o Fisco sobre o efetivo recolhimento do tributo em favor do Erário pelo contribuinte que lhe antecede na cadeia de operações mercantis, não lhe tolhendo qualquer direito creditício.

Enfim, assim como na seara das normas de trânsito e do direito administrativo, no âmbito do Direito Tributário não existe espaço para a concretização da atividade fiscalizatória pelos particulares. Situação distinta e aceitável é aquela verificada nos casos em que a lei, por meio da instituição de deveres instrumentais, estabelece a obrigatoriedade do fornecimento de meios fáticos, pela sociedade, que servem de substrato linguístico para a produção normativa individual e concreta de competência dos agentes fiscais. Ilustrativamente, alguns dos sujeitos enumerados no artigo 197 do Código Tributário Nacional são obrigados a prestar informações de negócios de terceiros, que servem de material indispensável para o desenvolvimento da atividade fiscalizatória. Nesse caso, os particulares não fiscalizam o cumprimento de obrigações tributárias de outrem, mas cumprem deveres instrumentais, fornecendo meios fácticos para a produção de normas individuais e concretas tributárias.