• Nenhum resultado encontrado

1 PREMISSAS METODOLÓGICAS E DELIMITAÇÃO DO OBJETO

3.6 O critério prestacional – matérias em torno das quais podem ser

3.6.1 Direito ao silêncio e fiscalização

Como já mencionamos, para viabilizar a atividade fiscalizatória, o sistema jurídico confere amplos poderes investigativos aos agentes fiscais, impondo aos

280 EMERENCIANO, Adelmo da Silva. Procedimentos Fiscalizatórios e a Defesa do

administrados em geral o dever de colaborar com a atividade fiscalizatória. Ocorre que a Lei nº 8.137/1990 elevou à categoria de crimes contra a ordem tributária determinadas condutas que podem ser desveladas pelo procedimento fiscalizatório, surgindo, neste contexto, a questão relativa à aplicação do direito ao silêncio na seara tributária. Neste tópico, enfrentaremos essa problemática, pretendendo fixar uma regra segura quanto ao tema do silêncio no procedimento fiscalizatório.

No altiplano Constitucional, o silêncio está insculpido no artigo 5º, inciso LXIII, ipsis litteris:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a /inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […]

LXIII - o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado; […]

Esse enunciado prescritivo anuncia a recepção, pelo nosso ordenamento jurídico, do princípio contra a autoincriminação, segundo o qual os réus têm o direito de não se manifestarem durante o processo penal, a fim de evitar que qualquer declaração própria seja usada contra si mesmo281. A interpretação conferida ao dispositivo legal em comento é no sentido de que merecem ser

281 Neste sentido, em razão do avento da Constituição da República de 1988, os diplomas

legislativos anteriores à sua existência passaram a ser interpretados em conformidade com os direitos e garantias que passaram a ser tutelados pelo Estado. Manifestação disso é a construção de sentido arquitetada hodiernamente com suporte nos artigos 186 e 198, do Código Penal, in verbis:

“Art. 186. Antes de iniciar o interrogatório, o juiz observará ao réu que, embora não esteja obrigado a responder às perguntas que lhe foram formuladas, o seu silêncio poderá ser interpretado em prejuízo da própria defesa.

Art. 198. O silêncio do acusado não importará confissão, mas poderá constituir elemento para a formação do convencimento do juiz.”

É entendimento assente entre os estudiosos do assunto, que a parte final de ambos os enunciados prescritivos citados não pode prevalecer, porque traduzem o silêncio do acusado em gravame para a esfera penal, num silogismo de que ‘o réu calou-se, logo, é culpado’, flagrantemente superado pelas prescrições vigentes postas no sistema pelo Constituinte.

contemplados com o direito ao silêncio não apenas os sujeitos presos, como propõe a literalidade da lei, mas todos aqueles que são acusados em geral. O argumento que justifica essa tomada de posição é a circunstância de que, a depender do contexto, o réu pode estar preso desde a fase inicial da persecução penal, ou não, de modo que a extensão do direito ao silêncio a todo acusado outorga tratamento isonômico aos indivíduos perante o juízo282.

A fim de solucionar a contraposição entre o direito ao silêncio e o dever de o contribuinte colaborar com a fiscalização, Helenilson Cunha Pontes283 advoga pela tese de que o administrado está protegido pelo manto do direito ao silêncio quando o cumprimento da obrigação de prestar informações gera reflexos na esfera penal. Numa manobra de ponderação alegadamente justificada no princípio da proporcionalidade, é retirado o atributo de eficácia técnico- sintática284 da norma que prescreve o dever de apresentar documentos quando,

282 Corroborando a orientação dos tribunais, é a doutrina de Guilherme de Sousa Nucci, que

anuncia ser “preciso dar ao termo ‘preso’ uma interpretação extensiva para abranger toda pessoa indiciada ou acusada da prática de um crime, pois se o preso possui o direito, é evidente que o réu também o tenha” (NUCCI, Guilherme de Sousa. Código de Processo Penal Comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 198).

283 “Se no caso concreto, o direito do Estado de exigir do indivíduo o cumprimento do dever

de colaboração puder gerar a esta consequências de ordem criminal, com reflexos na sua liberdade individual, poderá o indivíduo afastar aquela pretensão estatal exercendo o direito ao silêncio, direito fundamental que por dirigir-se exatamente a estas situações, assume ‘en situation’ peso específico reforçado” (PONTES, Helenilson Cunha. O direito ao silêncio no Direito Tributário. In: FISCHER, Octavio Campos (Coord.). Tributos e Direitos Fundamentais. São Paulo: Dialética, 2004, p. 91).

284 Observe-se que o autor falar em exclusão da validade da norma. Temos que, pelo rigor

terminológico que os estudos com pretensões científicas requerem, é necessária a adequada nomenclatura ao fenômeno que Helenilson Cunha Pontes explica, qual seja, a impossibilidade da norma jurídica surtir efeitos em virtude de outra norma jurídica.

Explicando as categorias da validade e da eficácia:

O termo validade equivale à existência, isto é, uma norma é válida/existe na medida em que pertence a determinado sistema, não devendo ser o termo validade empregado como predicado, mas como status de relação entre a norma e o sistema jurídico.

A eficácia, nas lições dos professores Tércio Sampaio Feraz Jr. e Paulo de Barros Carvalho, pode ser analisada sob três diferentes ângulos: técnica, jurídica e social. A primeira é qualidade da norma, no sentido de descrever fatos que, uma vez ocorridos tenham aptidão para irradiar efeitos, podendo ocorrer causas impeditivas de ordem sintática, decorrentes de uma relação entre normas (existência de outra norma inibidora de sua incidência ou pela ausência de norma regulamentadora, de igual ou inferior hierarquia), ou de ordem semântica, relacionadas com o conteúdo da norma (descrição de fatos ou comportamentos impossíveis). A eficácia jurídica, por sua vez, é predicado dos fatos jurídicos, dizendo respeito à sua aptidão para propagar os efeitos que lhe são próprios

in concreto, essa exigência puder dar razão a consequências criminais. Arremata o raciocínio com suporte na alegação de que o dever de colaboração nasce com o exercício da potestade do Estado de investigar a ocorrência do fato jurídico tributário, enquanto que o direito ao silêncio antecede a própria máquina pública estatal, consistindo em prerrogativa inalienável do indivíduo. Com a devida vênia, não compartilhamos o mesmo entendimento pela aplicação do direito ao silêncio em sede de procedimento administrativo tributário, inclusive naquelas situações em que a conclusão do trabalho fiscal pode redundar em consequências deletérias na esfera penal, por três motivos, quais sejam: (i) a desobrigatoriedade do atendimento às intimações para apurar um ilícito fiscal ensejaria a arbitrariedade de os contribuintes escolherem os tributos que pagam; (ii) o atendimento às intimações fiscais não causa automática e infalivelmente a aplicação das normas que constituem o crédito tributário e/ou as sanções administrativas, ou a homologação da atividade do sujeito administrado, mas provoca, única e exclusivamente, uma expectativa a respeito da subsunção do fato às referidas normas, que eventualmente podem provocar o início da persecução penal; (iii) até no âmbito penal, esfera da qual tem origem o direito ao silêncio, a sua aplicação é restrita à fase acusatória. Explicamos:

na ordem jurídica, em decorrência da causalidade jurídica. Por fim, a eficácia social é direcionada ao plano das condutas intersubjetivas e está relacionada à produção dos resultados das normas na ordem dos fatos sociais.

Partindo dessas premissas, não há como um enunciado ser válido e inválido, a depender da situação verificada na experiência social. Ou ele pertence ou não ao sistema jurídico. A possibilidade da norma construída com fundamento na lei ser tolhida nos seus efeitos, a depender de aspectos factuais, é questão afeta à eficácia técnico-sintática da mesma: a regra é pela sua aplicação, contudo, em virtude de outras normas também aplicáveis ao caso concreto, os efeitos da primeira são cassados. (Explicando sobre a ineficácia técnico- sintática, particularmente no caso de pertencerem ao sistema jurídico normas tributante e suspensiva da tributação no caso concreto, Robson Maia Lins afirma que a suspensão não é da validade, tampouco da vigência ou da eficácia técnico-semântica da norma impositiva, mas da sua eficácia técnico-sintática, visto que “a norma introduzida pela cautelar, ainda que provisória, impede o agente competente de realizar a incidência da RMIT. Prescreve, portanto, a ineficácia técnico-sintática da RMIT” (LINS, Robson Maia. Controle de Constitucionalidade da norma tributária. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 163).

Primeiramente, inexiste lógica no raciocínio que defende a cessação da obrigatoriedade de apresentar documentos em observância a dever instrumental em defluência do cometimento ilícito, facultando o que antes era uma obrigação. Admitir a aplicação do direito ao silêncio no Direito Tributário implicaria na arbitrariedade de os contribuintes escolherem as exações fiscais que pretendessem adimplir, pois poderiam negar o acesso do Fisco aos documentos motivadores do nascimento do fato jurídico tributário mediante a alegação de que as informações solicitadas poderiam vir a incriminá-los285. O sistema tributário funda-se, precipuamente, na colaboração dos particulares, sob o pretexto de fornecer substrato fáctico aos agentes fiscais, responsáveis pela arrecadação de recursos para o financiamento do Estado, bem como pela homologação da atividade dos administrados. A alteração desta sistemática, em virtude da possível criminalização de condutas que podem ser aferidas em procedimento fiscalizatório, tornaria impraticável a fiscalização tributária. Ademais, nos termos das premissas adotadas nesta dissertação, as normas não incidem sem a participação de um sujeito competente: assim, como seria possível afirmar, a priori, de eventual processo de positivação do direito penal, que determinada conduta subsome-se à figura delituosa, conferindo, então, aplicabilidade ao direito ao silêncio? Ora, para a criminalização de uma conduta é imprescindível a condenação em processo judicial, visto que essa pronúncia jurisdicional é a linguagem competente para a constituição do crime, inclusive daqueles classificados como contra a ordem tributária. Assim, resta inviável a defesa pela aplicabilidade do silêncio em procedimento

285 “Por tanto, ¿puede el contribuyente negarse desde un principio a brindar la información o

documentación requerida por el fisco nacional de conformidad con el art. 35 de la LPT antes analizado? Claro está que si la respuesta es afirmativa se podría sostener que ello conduciría a la “quiebra” del sistema sobre el cual se asienta la recaudación de tributos, por cuanto ningún contribuyente prestaría documentación al fisco y ello haría imposible a dicho organismo determinar los ingresos de los contribuyentes o terceros e, por ende, los tributos a ingresar” (LALANNE, Guillermo A. Las facultades de la administración tributaria – las actuaciones de los inspectores y deberes de colaboración. In: El procedimiento tributario. Buenos Aires: Editorial Abaco de Rodolfo Depalma, 2003, p. 141).

fiscalizatório, por impossibilidade lógica de falar-se em crime em momento anterior a qualquer providência persecutória no campo do Direito Penal286. Observe-se que, pragmaticamente, a consequência imposta pelo sistema normativo, no caso de configuração, em tese, de crime contra a ordem tributária, é a formulação, pelo auditor fiscal, de representação para fins penais 287 . Somente depois de encerrado o procedimento fiscalizatório tributário, com a constituição do crédito tributário ou a lavratura do Auto de Infração, podem passar a incidir sobre o caso normas jurídicas de duas esferas distintas do Direito: tributária e penal, de modo que, dando continuidade ao procedimento de constituição do crédito tributário, é concedida a oportunidade de o contribuinte se defender em sede administrativa ou judicial; e, tendo início o curso de positivação da norma penal, o Ministério Público já oferece a denúncia ao juiz de Direito ou, ainda, caso necessário, instaura o inquérito policial para a investigação dos elementos do tipo penal. A comprovação da ocorrência do fato jurídico tributário que eventualmente se subsome ao fato jurídico penal, nos termos da legislação que define os crimes contra a ordem tributária, é apenas um impulso inicial para as providências penais.

Por fim, até na esfera penal, da qual se origina o direito ao silêncio, há restrições quanto à sua aplicação, justamente no tocante a um momento que muito se assemelha à fase procedimental fiscalizatória.

O percurso de positivação das normas penais é formado por uma fase inquisitiva e outra acusatória. A primeira é comumente revelada no inquérito policial, que investiga pelos relatos de fatos que constituem o crime. Esse iter inquisitivo se encerra com o oferecimento da denúncia, que pode instaurar a

286 Sobre o assunto, também Hugo de Brito Machado: “o dever de informar precede a

configuração do crime contra a ordem tributária” (MACHADO, Hugo de Brito. Algumas questões relativas aos crimes contra a ordem tributária. In: PINTO, Ernestina Rodrigues; TRONCOSO, João Troncoso y; CORRÊA, Viviane (Coords.). Coletânea de Estudos Jurídicos – homenagem ao advogado José Oswaldo Correa. Rio de Janeiro: Grafline, 1999, p. 121).

287 Conforme prescrevem, no âmbito federal, o artigo 83 da Lei nº 9.430/1996 e as Portarias

fase acusatória, caracterizada por um processo regido pelos princípios da imparcialidade do órgão julgador e da ampla defesa e contraditório. É apenas a partir dessa segunda fase de realização do Direito Penal que surge a figura do acusado e, via de consequência, o direito ao silêncio.

Conforme abalizadas vozes da doutrina penal, a inexistência de um direito ao silêncio na fase inquisitiva penal se justifica no seu caráter meramente procedimental, que busca por informações relevantes para o início do processo penal288. O direito à autodefesa, que tem como desdobramento o direito a não se autoincriminar, mediante uma postura silenciosa, apenas incide em fases póstumas à averiguação dos relatos dos fatos e oferecimento da denúncia. Como se pode ver, o procedimento fiscalizatório identifica-se com a fase inquisitória do Direito Penal, na medida em que em ambos são realizados atos no intuito de colher elementos formadores de um juízo acerca dos fatos para subsumi-los ao antecedente normativo de uma norma primária (no caso da esfera tributária) e de uma norma secundária (referente à esfera penal). Em ambos os casos não é legítima a invocação do direito ao silêncio.

Por essas razões, não há como negarmos a premente necessidade de os administrados sempre atenderem às intimações da fiscalização para a apresentação de documentos que relatam fatos eventualmente relevantes para o mundo jurídico. Ao nosso ver, a utilização de elementos produzidos em sede de procedimento fiscalizatório tributário pelo Ministério Público, provocado pela representação para fins penais, é um ônus que não pode ser revertido em favor daquele que pratica condutas reprovadas pelo sistema jurídico.

Inclusive, reforçando o raciocínio pela inaplicabilidade do direito ao silêncio no procedimento fiscalizatório, a súmula nº 439 do Supremo Tribunal Federal anuncia que “está sujeito à fiscalização tributária ou previdenciária quaisquer

288 Vide: MIRABETE, Julio Fabbrini. Código de Processo penal interpretado. São Paulo:

Atlas, 1994, p. 31; MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. Rio de Janeiro: Forense, 1961, p. 145.

livros comerciais, limitando o exame aos pontos objeto da investigação” e, a Lei nº 8.137/1990 devidamente criminaliza, no inciso V, do seu artigo 1º289, a conduta consubstanciada no desatendimento de intimação fiscal para a apresentação de documentos. De fato, a ausência de cooperação do administrado com a fiscalização deve ser fato apto a acarretar consequências penais, sob pena de inviabilizar a atividade fiscalizatória e, via de consequência, comprometer a gestão do Estado.

Frise-se, ainda, que a exata definição de um direito fundamental apenas pode ser aferida mediante a definição do seu conteúdo cotejado com demais enunciados prescritivos válidos e vigentes 290 . Neste caso, o enunciado prescritivo contido no artigo 5º, inciso LXIII, da Constituição Federal, deve ser interpretado conjuntamente com o artigo 145, § 1º, do mesmo diploma normativo, que impõe à Administração Tributária a identificação do patrimônio, dos rendimentos e das atividades econômicas do contribuinte para conferir efetividade ao princípio da capacidade contributiva. Assim, a aparente limitação de aplicabilidade do direito ao silêncio “não implica em sacrificar-se direitos, pois os direitos albergados no sistema são tais como o sistema os concebe”291: as restrições estabelecidas pelo Constituinte não são restrições,

mas descrições dos exatos contornos daquilo que é protegido juridicamente. Pelos motivos expostos, via de regra, o silêncio não pode ser arguido em favor do sujeito passivo de procedimento fiscalizatório, subsistindo o dever de colaborar e informar. Ocorre que, nos termos das ponderações deduzidas no

289 “Art. 1° Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou

contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas: […] V - negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação. Pena - reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.”

290 A respeito de outro aparente conflito entre normas Constitucionais, James Marins

envereda a seguinte solução: “Para tanto, basta que se refira a um dos mais elementares cânones da intepretação constitucional que preceitua que dois comandos de ordem constitucional não podem em sua aplicação concreta anular-se, devendo se propugnar por um ponto de equilíbrio entre eles” (MARINS, James. Direito Processual Tributário Brasileiro (Administrativo e Judicial). São Paulo: Dialética, 2014, p. 243).

específico item 2.2. A fiscalização tributária e o dever de colaborar, existem solicitações documentais que exigem uma análise mais parcimoniosa, por afrontarem outros direitos fundamentais, mormente a inviolabilidade da privacidade. Exemplo que ainda merece a atenção do Judiciário, no que diz respeito à análise da sua constitucionalidade, é a questão afeta à quebra do sigilo bancário pela autoridade administrativa, de que trataremos no tópico seguinte.