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1 PREMISSAS METODOLÓGICAS E DELIMITAÇÃO DO OBJETO

2.3 A fiscalização tributária: processo ou procedimento?

É essencial esclarecermos as diferenças entre procedimento e processo para que possamos contextualizar a fiscalização tributária neste tema e, assim, definir aspectos fundamentais para o estudo do seu regime jurídico.

das restrições que lhe devem ser impostas, mas diz respeito ao próprio conteúdo do direito” (ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Vírgilio Afonso da Silva. São Paulo, 2008).

Para uma melhor compreensão das teorias do âmbito de proteção dos direitos, podemos traçar semelhanças às concepções de imunidade e de isenção. Relativamente à teoria interna, podemos afirmar que a similitude com as normas imunizantes existe porque estas “estabelecem, de modo expresso, a incompetência das pessoas políticas de direito constitucional interno para expedir regras instituidoras de tributos que alcancem situações específicas e suficientemente caracterizadas”, impedindo a construção da regra-matriz de incidência tributária. Igualmente, a teoria interna nega a existência de direitos e limitações como categorias autônomas, mas compatibilizadas e resultantes de um único direito, demarcado pelas limitações. Destarte, enquanto a imunidade delimita a competência tributária, aqui, a contraposição entre direito e restrição delimita o âmbito de abrangência do direito fundamental. Também, pode ser traçado paralelo entre a teoria externa e a isenção na medida em que esta é o fenômeno de “encontro de normas com a mutilação da regra matriz de incidência”, sendo que esta mutilação decorre do encontro de duas normas jurídicas – regra de tributação e regra de isenção –, que inibe a incidência da hipótese tributária sobre os eventos abstratamente qualificados pelo preceito isentivo, ou que lhe tolhe as consequências, comprometendo-lhe os efeitos prescritivos da conduta. Da mesma forma, na teoria externa pressupõe-se a existência de duas normas jurídicas – regra de direito e regra de restrição –, que são conflituosas e devem ser compatibilizadas, com a consequente mitigação de atuação de uma delas.

Enfim, o maior obstáculo à delimitação do âmbito de proteção dos direitos, independentemente da teoria adotada, está na dificuldade da constatação objetiva dos limites dos limites, isto é, admitindo-se a possibilidade de limitação ou restrição a direitos fundamentais, resta a árdua tarefa de demarcação do núcleo essencial de cada direito para fins de aferição de eventuais (in)constitucionalidades e (i)legalidades.

A corrente majoritária dos administrativistas brasileiros122 aponta repousar na litigiosidade a diferença fundamental entre o procedimento e o processo. Enquanto o procedimento é termo que se vale para nomear a forma de concatenação de determinados atos, o processo, mais amplo e abrangente, é um procedimento especificamente voltado para a solução de um litígio. Nesse sentido, o procedimento é uma espécie de itinerário que deve ser seguido para o atingimento de uma finalidade específica. Esta ideia é ponderada por Marçal Justen Filho, ipsis litteris:

O procedimento consiste numa sequência predeterminada de atos, cada qual com finalidade específica, mas todos dotados de uma finalidade última comum, em que o exaurimento de cada etapa é pressuposto de validade da instauração da etapa posterior e cujo resultado final deve guardar compatibilidade lógica com o conjunto dos atos praticados123.

Disso decorre a conclusão lógica de que todo processo pressupõe um procedimento, mas nem todo procedimento converte-se em processo.

No Direito Tributário, encontramos este dualismo processo/procedimento em três diferentes momentos no percurso de positivação das normas, quais sejam: procedimento administrativo preparatório do ato do lançamento tributário124; processo administrativo, instaurado em razão da impugnação do contribuinte

122 Vide: FIGUEIREDO, Lucia Valle. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros,

1985, p. 280; MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 480.

123 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. Belo Horizonte: Fórum, 2011,

p. 306.

124 Enquadrando-se nessa fase, nos casos em que prevista na legislação, ainda, a eventual

revisão do ato de lançamento em face da ausência de impugnação do contribuinte. (e.g., Artigo 29 da Lei Estadual nº 10.941/2001, que dispõe sobre o processo administrativo tributário decorrente de lançamento de ofício e dá outras providências: “Apresentada defesa, ou findo o prazo sem que esta seja apresentada, o processo deve ser como regra, imediatamente encaminhado ao órgão de julgamento de primeira instância administrativa”).

contra o crédito constituído; processo judicial, em sede do qual atua um terceiro imparcial para a solução da controvérsia125.

As características que diferem o procedimento administrativo tributário do processo administrativo tributário são muito bem elucidadas por Fabiana Del Padre Tomé. Vejamos:

Enquanto o procedimento administrativo tributário é marcadamente fiscalizatório e apuratório, visando a preparar o ato constituidor da obrigação tributária ou da sanção pelo descumprimento desta ou de deveres instrumentais, a figura do processo administrativo só aparece em momento posterior ao nascimento do crédito tributário, mediante resistência do contribuinte à pretensão do Fisco126.

Focando as nossas atenções na fase fiscalizatória, confirmamos a míngua da litigiosidade entre os envolvidos 127 , fundamentalmente porque o iter procedimental que caracteriza a fiscalização é aquele que precede a constituição de obrigações decorrentes da incidência de normas impositivas de tributos e/ou de sanções administrativas ou homologatórias da atividade do contribuinte. Isto é, o procedimento fiscalizatório é composto por uma série de atos que visam à aplicação de uma norma primária128 que, então, enseja o

125 Neste sentido, “no Direito Tributário, como já visto em capítulos anteriores, deve-se

enfrentar o dualismo procedimento/processo em três diferentes regimes jurídicos: 1º procedimento enquanto caminho para consecução do ato de lançamento (inclusive fiscalização tributária e imposição de penalidades); 2º processo como meio de solução administrativa dos conflitos fiscais; e 3º processo como meio de solução judicial dos conflitos fiscais” (MARINS, James. Direito Processual Tributário Brasileiro (Administrativo e Judicial). São Paulo: Dialética, 2014, p. 160).

126 TOMÉ, Fabiana Del Padre. A Prova no Direito Tributário. 3. ed. São Paulo: Noeses,

2011, p. 279.

127 Corroborando a assertiva pela ausência de litigiosidade na fase fiscalizatória, é a regra

insculpida no artigo 14, do Decreto nº 70.235/1972, que dispõe sobre o processo administrativo fiscal federal: “a impugnação administrativa instaura a fase litigiosa do procedimento” (NEDER, Marcos Vinicius; LOPEZ, Maria Teresa Martínez López. Processo Administrativo Fiscal Federal Comentado. São Paulo: Dialética, 2002, p. 28).

128 Retomando, em breve síntese, algumas ideias traçadas no item 1.2.2. Norma jurídica

completa deste trabalho, todas as normas em sentido estrito são organizadas na forma lógica hipotética condicional, de modo que o antecedente implica o consequente. No sistema jurídico, caracterizado pela sua coercitividade, existem (i) a norma primária, que contém na sua hipótese a descrição de um fato hipotético, prescrevendo, na sua tese, uma relação entre sujeitos com direitos e deveres materiais correlatos; e (ii) a norma

nascimento de uma relação jurídico-tributária129. É depois de constituídas juridicamente as relações jurídicas que podem ser suscitadas inconformidades a respeito de seus termos.

Com efeito, a relação jurídica obrigacional tributária é instaurada quando presentes e, necessariamente, traduzidos em linguagem competente, os seus cinco elementos constitutivos: sujeitos ativo e passivo, direito subjetivo, dever jurídico e objeto.

Noutro giro, antes e durante o transcurso do procedimento fiscalizatório, inexiste a obrigação formalizada, tampouco a pretensão resistida130. É depois de constituída a relação entre o contribuinte e o ente político competente que surge a exigibilidade da obrigação, surgindo as possibilidades de o autuado quitar a dívida ou contestá-la, seja em sede de processo administrativo ou judicial.

Decerto, uma vez efetuado o lançamento, pode ocorrer o pagamento, encerrando nesta etapa a concretização do Direito, exclusivamente, por meio de um procedimento administrativo. Existe, porém, a possibilidade de ser instaurada uma fase processual, permeada pela litigiosidade, caso o sujeito passivo da obrigação, veiculada pelo documento que relata a incidência tributária, venha a insurgir-se contra a pretensão estatal. Em sede de processo administrativo, o litígio será solucionado por órgão que integra a própria Administração Tributária. Neste caso, numa espécie de controle de legalidade do ato impugnado, será proferida decisão que se restringirá a analisar a adequação do ato à lei.

secundária, que prescreve a atuação coercitivo-sancionatória dos Estado-juiz na hipótese de descumprimento das normas primárias.

129 “Até a interposição da peça impugnatória pelo contribuinte, o conflito de interesses ainda

não está configurado. Os atos anteriores ao lançamento referem-se à investigação fiscal propriamente dita, constituindo-se medidas preparatórias tendentes a definir a pretensão da Fazenda. Há simples procedimento que tão-somente conduz a constituição do crédito tributário.”

130 MARINS, James. Direito Processual Tributário Brasileiro (Administrativo e Judicial).

Mais amplamente, com a instauração de um processo judicial, podem ser discutidos assuntos mais abrangentes do que a submissão do ato de lançamento às prescrições legais. O autuado tem o direito de requerer, com fundamento numa norma secundária, a manifestação do Poder Judiciário, que é parte desinteressada no litígio, a respeito do conflito suscitado131.

Feitas essas ponderações, fica evidente que a atividade fiscalizatória é realizada a título de um procedimento administrativo até o momento que apura a ocorrência de fatos ensejadores da aplicação de normas primárias precedentes ou derivadas punitivas ou não punitivas.

Decorrência lógica da conclusão pelo caráter procedimental da atividade fiscalizatória é a inaplicabilidade do princípio da ampla defesa e a existência de um contraditório mitigado132 durante a concretização desses atos que perquirem

131 “O juiz é imparcial. Ele não é titular dos interesses sobre os quais decide. Ele personifica o

Estado-jurisdição, que é parte na relação processual Essa relação processual é peculiar, uma vez que congrega três partes (usualmente) e tem por objeto obter uma solução para o litígio existente em outra relação jurídica” (JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. Belo Horizonte: Fórum, 2011, p. 311).

132 Importante observar aqui a distinção entre a ampla defesa e o contraditório. Aquele diz

respeito à oportunidade de deduzir resistência às pretensões adversárias, enquanto que este refere-se ao direito de ser ouvido.

Fixadas estas ideias, exemplo do mitigado contraditório é a comunicação do início do procedimento fiscalizatório, o direito de consulta dos atos procedimentais, o direito de apresentar documentos quando intimado, o direito de solicitar a dilação de prazo para o atendimento à intimação.

Pela inaplicabilidade da ampla defesa no procedimento fiscalizatório: “[…] NULIDADE DO PROCESSO FISCAL. MOMENTO DA INSTAURAÇÃO DO LITÍGIO. CERCEAMENTO DO DIREITO DE DEFESA. Somente a partir da lavratura do auto de infração é que se instaura o litígio entre o fisco e o contribuinte, podendo-se, então, falar em ampla defesa ou cerceamento dela, sendo improcedente a preliminar de cerceamento do direito de defesa quando concedida, na fase de impugnação, ampla oportunidade de apresentar documentos e esclarecimentos. […]” (CARF; Primeira Seção; Acórdão nº 1402-001.763; publicado em 16/09/2014).

Sequer considerando aplicáveis os princípios da ampla defesa, como também do contraditório, na fase procedimental que antecede a constituição do crédito tributário: “Como explicitado na Seção I, o processo administrativo fiscal é composto de dois momentos distintos: o primeiro caracteriza-se por procedimento em que são prolatados os atos inerentes ao poder fiscalizatória do autoridade administrativa cuja finalidade é verificar o correto cumprimento dos deveres tributários por parte do contribuinte, examinando registro contábeis, pagamentos, retenções na fonte, culminando com o lançamento. Este é, portanto, o ato final que reconhece a existência da obrigação tributária e constitui o respectivo crédito, vale dizer, cria o direito à pretensão estatal. Nesta fase, a

dados factuais: inexistente crédito constituído, não há motivo para a salvaguarda de uma participação ativa do fiscalizado no sentido de lhe outorgar oportunidade de deduzir a sua inconformidade contra obrigação sequer existente133.

Também em favor da regra que preza pela ausência da ampla defesa nesta fase procedimental, são os argumentos de que a natureza estritamente vinculada da atividade fiscalizatória torna irrelevante a averiguação dos interesses dos particulares e de que a fiscalização é voltada a um vasto campo de destinatários, que combinado com infinitos recursos tecnológicos, inviabilizaria o desempenho da atividade fiscalizatória com uma robusta participação dos particulares134.

atividade administrativa pode ser inquisitória e destinada tão-somente à formalização da exigência fiscal. O segundo inicia-se com o inconformismo do contribuinte em face da exigência fiscal ou, nos casos de inciativa do contribuinte, com a negativa do direito pleiteado. A partir daí, está formalizado o conflito de interesses, momento em que se considera existente um verdadeiro processo legal, entre eles o da ampla defesa e do contraditório” (NEDER, Marcos Vinicius; LOPEZ, Maria Teresa Martínez López. Processo Administrativo Fiscal Federal Comentado. São Paulo: Dialética, 2002, p. 75- 76).

Também neste sentido: “O procedimento fiscalizador interessa apenas ao Fisco e tem a finalidade instrutória, estando for a da possibilidade, ao menos enquanto mera fiscalização, dos questionamentos processuais do contribuinte. […] na etapa meramente fiscalizatória não há que se falar em contraditório ou ampla defesa, pois não há, ainda, qualquer espécie de pretensão fiscal sendo exigida pela Fazenda Pública em face do contribuinte, mas tão somente o exercício da faculdade da Administração Tributária em examinar mercadorias, livros, arquivos, documentos, papéis fiscais ou comerciais e da correspectiva obrigação do contribuinte em exibi-los” (MARINS, James. Direito Processual Tributário Brasileiro (Administrativo e Judicial). São Paulo: Dialética, 2014, p. 228, 267-268).

133 Corroborando a assertiva, é o magistério de Fabiana Del Padre Tomé: “Apenas no âmbito

do processo, entretanto, tem-se a garantia constitucional da ampla defesa, visto que esta, nos termos da Carta Magna, aplica-se “aos litigantes” ou “acusados em geral”. O procedimento administrativo fiscalizador não representa materialização conflitiva, configurando sequência de atos unilaterais com vistas a verificar a ocorrência ou não do fato jurídico ou do ilícito tributário, inviabilizando, por conseguinte, questionamentos e oposição por parte do contribuinte” (TOMÉ, Fabiana Del Padre. A Prova no Direito Tributário. 3. ed. São Paulo: Noeses, 2011, p. 300).

134“Dificilmente se concebe, na verdade, que o lançamento tributário deva ser precedido de

uma necessária audiência prévia dos interessados. Duas razões desaconselham tal audiência: em primeiro lugar, o caráter estritamente vinculado do lançamento quanto ao seu conteúdo torna menos relevante a prévia ponderação de razões e interesse apresentados pelo particular do que nos atos discricionários; em segundo lugar, o fato de se tratar de um “procedimento de massas”, dirigido a um amplo universo de destinatários e