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A fragilidade da nação

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 68-74)

2. Construção político-identitária

2.2. Relações entre identidade e alteridade

2.2.3. A fragilidade da nação

Conforme vimos anteriormente, a edificação e a legitimação da nação são processos que estão intimamente associados à construção da identidade nacional; para atingir esse objetivo, entram em cena alguns elementos, dentre os quais a literatura ocupa um papel primordial, cumprindo a função de promover um sentimento de unidade, de pertença, que Anne-Marie Thiesse resume sob o nome de “ficções criadoras”.

Segundo Thiesse, “a nação nasce de um postulado e de uma invenção. Mas só se mantém viva com a adesão colectiva a essa ficção.” (THIESSE, 2001, p. 72). Em outras palavras, podemos dizer que, na concepção de nação, está em jogo a adesão pessoal de cada cidadão à identidade nacional acima das outras identidades coletivas: é o caso, por exemplo, do bretão e do normando que sobrepuseram a essas identidades a identidade de francês. Ao analisar a obra de Kourouma, é possível observar que não há uma afirmação da nacionalidade marfinense que se sobreponha às outras formas de identidade; ao contrário, percebe-se, por exemplo, a defesa de identidades coletivas tais como as dos malinkés, dos muçulmanos, dos “féticheurs”, isto é, identidades ligadas à etnia, à religião, às tradições e não à nação, como vimos em exemplos anteriores.

A partir de fragmentos supracitados do romance Allah n’est pas obligé, nota-se que uma das principais causas das guerras civis encenadas no romance provém das tensões étnicas entre os povos africanos. É o que revela, por exemplo, o trecho a seguir: “Quand un Krahn ou un Guéré arrivait à Zorzor, on le torturait avant de le tuer parce que c’est la loi des guerres tribales qui veut ça. Dans les guerres tribales, on ne veut pas les hommes d’une autre tribu différente de notre tribu” (A, p. 71, grifo nosso).69

Apesar de suas rivalidades históricas, em um determinado momento da história, povos inimigos se uniram em torno de um objetivo comum: expulsar o colonizador.

69“Quando um krahn ou um guerê chegava em Zorzor, torturavam antes de matar porque isso, isso é a

guerra tribal que determina. Nas guerras tribais, ninguém quer homens de outra tribo diferente da sua própria tribo” (A, p. 73, grifo nosso).

Entretanto, as guerras tribais em países como a Libéria ou a Serra Leoa evidenciam que a unidade estabelecida com esse intuito não tinha raízes profundas. Houve uma união momentânea de povos com interesses opostos; no entanto, após a consquista da independência, o poder passou a estar livre e se tornou alvo de novas ambições políticas, o que trouxe novamente à tona as antigas rivalidades entre as etnias.

Do ponto de vista literário, notamos que a categoria nacional nem sempre responde à busca identitária empreendida pelos artistas, intelectuais e também pelos personagens ficcionais criados pelos escritores; torna-se, pois, necessário pensar essa literatura, produzida por africanos, em um contexto de entrecruzamento de culturas e línguas, a partir de outras categorias alternativas à literatura nacional. Da mesma forma que as fronteiras nacionais são artificiais, essa literatura ultrapassa as fronteiras geográficas e os seus questionamentos não se restringem a um único país. O caso de Kourouma ilustra esse fato, uma vez que o seu país de origem é a Costa do Marfim, porém, ele escreve a respeito de diversos outros países além do seu. Em Allah n’est pas obligé, os cenários em questão são a Libéria e a Serra Leoa; em outros romances, entram em cena também países como o Togo, o Zaire, a Guiné, a República Centro- Africana (DIANDUE, 2003), enfim, um grande número de países que possuem uma série de elementos históricos, culturais e (pluri)linguísticos em comum.

Essa evidência vai ao encontro de análises recentes relativas ao conceito de nação. Eduardo Coutinho, ao repensar a historiografia da América Latina, reflete sobre elementos que são relevantes também para a produção literária africana. Tanto a nação quanto o idioma, que constituíam “referenciais seguros para a Literatura Comparada, hoje se revelam como constructos frágeis” (COUTINHO, 2011, p. 120). Ambas serviam para dar homogeneidade a determinado corpus, porém, em diversos contextos atuais, essas duas instâncias estão mais longe do que nunca de ser perfeitamente homogêneas, tornando-se menos rígidas e mais plurais.

Dentro de uma mesma nação, encontram-se contradições culturais e, por outro lado, existem categorias literárias e culturais que transcendem as fronteiras fixas das nações (COUTINHO, 2011). Essa constatação se aplica ao caso africano, visto que o patrimônio ancestral dos diversos povos africanos não segue a divisão política determinada pelos europeus, o que significa que, dentro de uma mesma delimitação geográfica, convivem povos que não partilham a mesma herança cultural e, por outro

lado, há diversas semelhanças que vão muito além das fronteiras demarcadas no século XX.

Esse fator é claramente percebido através da obra de Kourouma, que não se restringe à Costa do Marfim, mas menciona, percorre e aborda diversos outros países africanos. O romance Allah n’est pas obligé ilustra essas fronteiras fluidas entre países como a Costa do Marfim, Libéria, Serra Leoa, Gana, pelas quais o narrador transita sem demarcar as fronteiras, isto é, sem fazer muita distinção geográfica, o que aponta para características semelhantes entre os países dessa região.

Após essas considerações, pode-se notar que a abordagem nacionalista da literatura é problemática em muitos contextos e não dá conta de realidades plurais e móveis.

Se não se pode mais pensar a história em termos de um esquema linear e unicultural, mas apenas como a articulação de sistemas que se imbricam, superpõem e transformam constantemente; se não se pode mais restringir a produção de um povo a um espaço arbitrariamente construído por razões de hegemonia político-econômica, mas, ao contrário, encarar esse espaço como um locus móvel e plural, (...) os corpus que serviram de base às histórias literárias tradicionais perdem sua fixidez, tornando-se múltiplos e dinâmicos, e dão margem à coexistência de cânones distintos dentro de um mesmo contexto (COUTINHO, 2011, p. 125).

Essa visão de Eduardo Coutinho é a constatação de que a literatura não pode mais ser abordada a partir de um modelo único, eurocêntrico. A sua proposta de reflexão não visa, de forma alguma, a abolir as literaturas nacionais até então estabelecidas, inclusive, pois esse modelo é ainda fecundo em determinados contextos e constitui um aparato histórico que deve ser levado em conta; no entanto, trata-se de pensar a literatura nacional a partir de novos recortes, mais amplos e mais móveis, levando em conta critérios de constituição da identidade diversos da hegemônica identidade nacional.

No contexto em questão, essa concepção de Coutinho auxilia a compreender que as manifestações literárias não precisam ser analisadas dentro do círculo fechado de suas fronteiras geográficas, tendo em vista que há diversos elementos de aproximação entre elas e as literaturas produzidas em outras regiões. Desse modo, os sistemas postos em relação podem auxiliar no estudo e na compreensão da literatura como um todo. O crítico Xavier Garnier, estudioso de muitos autores africanos, em seu artigo “Le comparatisme: une vocation pour les études littéraires africanistes”, reflete sobre esse campo literário, que apresenta características peculiares e complexas. Garnier constata

que esse contexto de produção literária, apesar de ser um desafio para a crítica, figura como um terreno fecundo para o comparativismo e para a relação da literatura com outras áreas do saber, como a filosofia, a linguística, a geografia, a história, a sociologia, entre outras.

Garnier esboça, nesse sentido, um panorama das correntes críticas que se debruçaram sobre a literatura produzida nesse contexto, ressaltando três principais abordagens: culturalista, sociopolítica e filológica, todas essencialmente comparatistas. Na abordagem negro-africana, por exemplo, o critério racial ocupou um lugar central e buscaram-se imbricações entre fatores literários e etnográficos, através do resgate dos “valores profundos” da África, com seus mitos e imaginários próprios.

As abordagens mitocríticas da literatura africana geralmente buscam uma

nova orientação através dos “valores profundos” de uma África negra cujo

imaginário é estruturado por mitos específicos. Elas revelam, no entanto, a mistura gerada pelo contato colonial e encaram os escritores como lugares de confrontação ou de conciliação de imaginários. 70

Outra abordagem que deu origem a muitos trabalhos foi a intercultural, que se debruçou sobre a “coexistência de elementos culturais heterogêneos no seio de uma mesma obra”.71 Abordagens de cunho sociopolítico problematizaram a existência e a diversidade de campos literários no continente africano. O fator geográfico também foi levado em conta na tentativa de agrupar regiões geográficas com determinadas características de modo a formarem um espaço literário, como seria o caso do Maghreb, da África Negra, entre outras.

Apesar de reconhecer que a pesquisa da literatura africana torna-se, muitas vezes, limitada em razão de questões linguísticas, uma vez que poucos pesquisadores conhecem e dominam os idiomas africanos, Garnier enfatiza a centralidade linguística na literatura do continente africano. Um dos motivos pelos quais o estudioso faz essa afirmação é o fato de que essa literatura é extremamente rica em fenômenos como a autotradução, ou a coexistência de mais de uma língua em uma mesma obra.

O formidável plurilinguismo do continente africano e a dinâmica da evolução das línguas são particularidades que os estudos literários estão

70 “Les approches mythocritiques de la littérature africaine vont généralement dans le sens d’un

recentrage sur les « valeurs profondes » d’une Afrique noire dont l’imaginaire est structuré par des

mythes spécifiques. Elles prennent cependant acte du brassage engendré par le contact colonial et envisagent les écrivains comme des lieux de confrontation ou de conciliation d’imaginaires” (GARNIER, 2007, p. 337).

buscando avaliar e que os instalam de forma sólida no campo do comparativismo. 72

Esse comentário de Garnier introduz uma reflexão central no estudo da obra de Kourouma; trata-se do jogo linguístico que ele realiza diante do plurilinguismo em que se encontra a sua situação de escrita. Por um lado, o imaginário dos escritores desse campo literário é composto por mais de uma língua; no caso de Kourouma, há duas fortes influências linguísticas: sua língua materna, o malinké, e a língua francesa. Por outro lado, o público dessas obras é extremamente heterogêneo e, consequentemente, plurilinguístico, como nos alerta o próprio narrador, nas primeiras páginas de Allah n’est pas obligé:

Il faut expliquer parce que mon blablabla est à lire par toute sorte de gens : des toubabs (toubab signifie blanc) colons, des noirs indigènes sauvages

d’Afrique et des francophones de tout gabarit (gabarit signifie genre) (A, p.

9). 73

Consciente da diversidade de seu público, o narrador Birahima precisa encontrar estratégias para que seu relato seja compreendido pelo maior número possível de pessoas. Esse comentário explicita um grande desafio encontrado por escritores como Kourouma, que diz respeito ao trabalho com a língua, para que a sua obra atinja o público mais vasto possível. É o que constata, por exemplo, Lise Gauvin, crítica literária canadense, que se debruça sobre a literatura francófona:

Esses escritores têm em comum o fato de se dirigirem a diversos públicos, separados por aquisições culturais e linguísticas diferentes, o que os obriga a encontrar estratégias capazes de dar conta de sua comunidade de origem, permitindo-lhes, ao mesmo tempo, atingir um maior número de leitores. 74

Para obter maior projeção, grande parte dos escritores africanos opta por escrever na língua do colonizador, uma vez que suas línguas maternas têm menor alcance, inclusive, em meio a leitores africanos, tendo em vista a pluralidade linguística existente no continente. Assim, o escritor se depara, inevitavelmente, com a seguinte questão: como expressar a sua identidade na língua do outro? Essa problemática se complica ainda mais, uma vez que esse “outro” é o ex-colonizador.

72“Le formidable plurilinguisme du continent africain et la dynamique d’évolution des langues est une

particularité dont les études littéraires sont en train de prendre la mesure et qui les installe solidement

dans le champ du comparatisme” (GARNIER, 2007, p. 342).

73“É preciso explicar porque meu blablablá é para ser lido por todo tipo de gente: tubabs (tubab significa

branco) colonos, pretos nativos selvagens da África e francófonos de tudo que é gabarito (gabarito

significa tipo)” (A, p. 11).

74“Ces écrivains ont en commun le fait de s’adresser à divers publics, separés par des acquis culturels et

langagiers différents, ce qui les oblige à trouver des stratégies aptes à rendre compte de leur communauté

Debruçar-se sobre o problema linguístico se torna, pois, um grande desafio para Kourouma, que não se contenta em escrever no idioma francês e negligenciar completamente as influências de sua língua materna e seu imaginário africano. Kourouma opta por transformar essa problemática em um modo de reivindicação e afirmação de sua identidade, ao explorar, esteticamente, a sua situação de plurilinguismo e interculturalidade.

Essa exploração criativa da língua faz pensar na noção de “literatura menor” postulada por Gilles Deleuze e Félix Guattari. Em sua concepção, a “literatura menor” não é vista sob uma perspectiva negativa, mas, ao contrário, é aquela que contém “as condições revolucionárias de toda literatura no seio daquela que chamamos de grande (ou estabelecida)” (DELEUZE e GUATTARI, 1975, p. 28). A minoridade da língua e da literatura nesse contexto aparentemente instável se converte em uma potência estética e literária. No próximo capítulo, analisaremos a obra de Kourouma sob a ótica da minoridade literária, investigando os aspectos de sua escrita que consistem em uma revolução e inovação literárias, a partir da presença da cultura, da língua e do imaginário africanos. Ao explorar as potencialidades de um uso “menor” da língua, Kourouma oferece pistas para uma possível expressão de elementos identitários africanos, ainda que se recorra à língua do “outro”.

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 68-74)