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– PósGraduação em Letras Neolatinas

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IDENTIDADE E MINORIDADE EM ALLAH N’EST PAS OBLIGÉ, DE AHMADOU KOUROUMA

MARIA SERTÃ PADILHA

RIO DE JANEIRO

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IDENTIDADE E MINORIDADE EM ALLAH N’EST PAS OBLIGÉ, DE AHMADOU KOUROUMA

Maria Sertã Padilha

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do título de mestre em Letras Neolatinas (Literaturas de Língua Francesa).

Orientador: Professor Doutor Marcelo Jacques de Moraes.

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Padilha, Maria Sertã.

Identidade e minoridade em Allah n’est pas obligé, de Ahmadou Kourouma./ Maria Sertã Padilha. – Rio de Janeiro: UFRJ/Faculdade de Letras, 2016.

147f; 30cm

Orientador: Marcelo Jacques de Moraes.

Dissertação (Mestrado) – UFRJ/Letras/ Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas, 2016.

Referências Bibliográficas: ff. 143-147.

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Maria Sertã Padilha

Orientador: Professor Doutor Marcelo Jacques de Moraes.

Dissertação de mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos – Literaturas de Língua Francesa).

Examinada por:

____________________________________________________________________ Presidente, Prof. Doutor Marcelo Jacques de Moraes

____________________________________________________________________ Profa. Doutora Eurídice Figueiredo

____________________________________________________________________ Profa. Doutora Marília Santanna Villar

____________________________________________________________________ Profa. Doutora Irene Correa de Paula Sayão Cardozo, Suplente

____________________________________________________________________ Prof. Doutor Rodrigo Silva Ielpo, Suplente

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Padilha, Maria Sertã. Identidade e minoridade em Allah n’est pas obligé, de Ahmadou Kourouma. Rio de Janeiro, 2016. Dissertação (Mestrado em Letras Neolatinas, área de concentração Estudos Literários Neolatinos, opção Literaturas de Língua Francesa) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Rio de Janeiro, 2016.

Análise do romance Allah n’est pas obligé do escritor marfinense Ahmadou Kourouma, sob o viés de dois conceitos literários: a identidade e a minoridade. O esfacelamento da identidade provocado por eventos históricos – tais como o violento processo de colonização, a repartição arbitrária do território em nações e a problemática descolonização – impõe aos povos africanos uma urgente necessidade de problematização de sua identidade. Assim, a revisão do passado adquire um papel central na compreensão da obra, devendo ser lida em diálogo com a história. Logo, a

análise do romance levará em conta obras de cunho histórico, como a coleção “Histoire Générale de l’Afrique” e as reflexões do crítico Albert Memmi. Para responder às exigências identitárias advindas do contexto de escrita de Kourouma, que é plurilinguístico e intercultural, o autor lança mão de um artifício que consiste em pensar e trabalhar a língua, para que ela seja capaz de expressar elementos da identidade

africana. Esse trabalho com a língua remete ao conceito de “literatura menor”,

concebido por Gilles Deleuze e Félix Guattari, que será considerado nessa análise. A minoridade se torna, portanto, uma chave de leitura para o estudo do romance, aspecto que é potencializado na obra a partir da construção da voz narrativa, centrada em uma criança-soldado.

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Padilha, Maria Sertã. Identidade e minoridade em Allah n’est pas obligé, de Ahmadou Kourouma. Rio de Janeiro, 2016. Dissertação (Mestrado em Letras Neolatinas, área de concentração Estudos Literários Neolatinos, opção Literaturas de Língua Francesa) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Rio de Janeiro, 2016.

Analyse du roman Allah n’est pas obligé, de l’écrivain ivoirien Ahmadou Kourouma,

par le biais de deux concepts littéraires : l’identité et la minorité. L’ébranlement de

l’identité provoqué par des événements historiques – tels que le violent procès de la colonisation, la division arbitraire du territoire en nations et la problématique décolonisation – impose aux peuples africains un urgent besoin de poser le problème de

l’identité. Ainsi, la révision du passé joue un rôle central dans la compréhension de

l’oeuvre, qui doit être lue en dialogue avec l’histoire. C’est pourquoil’analyse du roman

tiendra compte des oeuvres de caractère historique, comme la collection « Histoire Générale de l’Afrique » et les réflexions du critique Albert Memmi. Pour répondre aux

exigences identitaires résultantes du contexte d’écriture de Kourouma, qui est plurilingue et interculturel, l’auteur fait appel à une stratégie qui consiste à penser et à

travailler la langue, pour qu’elle soit capable d’exprimer des éléments de l’identité

africaine. Ce travail de la langue renvoie au concept de « littérature mineure », conçu par Gilles Deleuze et Félix Guattari, qui sera considéré dans cette analyse. La minorité

devient, donc, une clé de lecture pour l’étude du roman, aspect qui est renforcé dans

l’oeuvre à partir de la construction de la voix narrative, axée sur un enfant-soldat.

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Padilha, Maria Sertã. Identidade e minoridade em Allah n’est pas obligé, de Ahmadou Kourouma. Rio de Janeiro, 2016. Dissertação (Mestrado em Letras Neolatinas, área de concentração Estudos Literários Neolatinos, opção Literaturas de Língua Francesa) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Rio de Janeiro, 2016.

Analysis of the book Allah n’est pas obligé, by Ivorian writer Ahmadou Kourouma,

under the bias of two literary concepts: identity and minority. The identity’s

disintegration caused by historical events – such as the violent colonization process, the arbitrary distribution of territory in nations and the problematic decolonization – imposes to the African people an urgent need of questioning their own identity. Therefore, past review acquires a center role in the comprehension of the novel, which must be read in dialogue with history. Thus, the analysis of the novel will take into

account works with historical nature, like the collection “Histoire Générale de l’Afrique” and the reflections of the critical Albert Memmi. To answer to the identity

requirements coming from Kourouma’s writing context, which is multilingual and intercultural, the author makes use of a strategy that consists of thinking and working the language, in order to turn it capable to express elements of the African identity. This

language work leads to the concept of “minor literature”, designed by Gilles Deleuze

and Félix Guattari, which will be considered in this analysis. Therefore, minority

becomes a reading key to the novel’s study, an aspect which is potentiated at the work from the construction of the narrative voice, centered in a soldier-child.

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A Deus, pelo dom da vida.

Ao meu marido, meu amor, Fabio, que participou incansavelmente dessa etapa da minha vida, não apenas me dando palavras de apoio ou aliviando os desafios que apareceram, mas, principalmente, se interessando verdadeiramente pela literatura africana e ajudando a manter vivo o interesse pelo tema da minha pesquisa e pelo estudo.

À minha querida mãe, Martha, que desempenha muitas funções literárias na minha vida. Evidentemente, junto com meu querido pai, é a autora da minha existência. É também uma grande narradora, que tem o dom de nos envolver com suas histórias. Sempre foi leitora dos meus escritos. Enfim, é uma grande interlocutora, com quem troco muitas ideias sobre a literatura e sobre a vida.

Ao meu querido pai, Marcelo, que, com o seu exemplo, me ensinou a ter paciência, dom necessário para concluir o meu Mestrado, e a sorrir, mesmo quando a vida é dura.

Às minhas queridas irmãs, Luiza e Carla, que são minhas maiores companheiras, que me aceitam como eu sou e com quem sei que posso contar para tudo.

Ao meu orientador, Marcelo Jacques de Moraes, que me incentivou a dar início ao Mestrado, acreditando no meu projeto e no meu trabalho, e que me apoiou até o final dessa etapa, de forma sempre solícita e atenciosa.

À Marília Santanna Villar, que me ajudou a elaborar o projeto de Mestrado, sempre esteve disponível para me ajudar e aceitou fazer parte da Banca.

Aos professores que aceitaram fazer parte da Banca.

A todos os professores que passaram pela minha trajetória e, de alguma forma, marcaram a minha vida.

A todos os meus familiares, que sempre me acompanham de longe ou de perto, dando palavras de apoio, torcendo por mim e compartilhando intensamente cada momento da minha vida.

Aos grandes amigos do Focolare, com quem compartilho uma vida verdadeira.

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[A infância] é o signo sempre presente de que a humanidade não repousa somente sobre sua força e seu poder, mas também, de maneira mais secreta, mas tão essencial, sobre suas faltas e suas fraquezas.

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1. Introdução ... 11

2. Construção político-identitária ... 21

2.1. Percepções do passado e do presente ... 25

2.1.1. História e ficção ... 26

2.1.2. A voz, o tempo e o espaço... 34

2.1.3. Personagens históricos e personagens ficcionais ... 40

2.2. Relações entre identidade e alteridade ... 49

2.2.1. A identidade nacional e a literatura ... 52

2.2.2. O nacional e outras instâncias identitárias ... 61

2.2.3. A fragilidade da nação... 68

3. Literatura menor ... 74

3.1. Desterritorialização da língua ... 78

3.1.1. A oralidade ... 81

3.1.2. O mito e a desmistificação ... 91

3.1.3. Os dicionários: jogo com o real... 98

3.2. Minoridade etária: “destutela” e descolonização ... 103

3.2.1. Retratos da descolonização ... 112

3.2.2. Infância roubada ... 119

3.2.3. O dever de memória e a subversão da tradição ... 125

4. Conclusão ... 137

5. Bibliografia ... 143

5.1. Obras de Kourouma ... 143

(11)

1. Introdução

Ahmadou Kourouma nasceu em Boundiali, na Costa do Marfim em 1927 e

morreu no ano de 2003, em Lyon, na França. O escritor fez seus estudos em Bamako,

no Mali, porém, em 1949, foi expulso desse país sob a acusação de ter participado de

uma manifestação pró-independência. Diante dessa situação, decidiu se alistar ao

exército francês para lutar na guerra da Indochina. De retorno à França, Kourouma

retomou seus estudos e optou pelo curso de matemática em uma universidade de Lyon.

Em 1960, quando a Costa do Marfim alcançou a sua independência, ele decidiu retornar

à sua terra natal. Engajou-se politicamente, na luta contra o regime do Presidente Félix

Houphouët-Boigny, o que lhe rendeu alguns anos na prisão e no exílio.

Nessa época, quando se viu privado de trabalhar, Kourouma iniciou a sua

empreitada como escritor e concebeu a sua primeira criação. Seu primeiro romance se

intitula Les soleils des Indépendances1 e foi publicado em 1968 por uma editora

canadense, após ter sido rejeitado por editoras francesas sob o pretexto de conter

problemas na escrita. Após a publicação, no entanto, seu romance foi amplamente

reconhecido pelo uso criativo da língua e por “violar” as normas francesas ao introduzir o malinké em sua linguagem. O romance ganhou o prêmio da revista Études Françaises (Les Presses Universitaires de Montréal) e foi reeditado pela editora parisiense Seuil

em 1970, alcançando renome internacional. Como o título sugere, esse livro trata das

condições em que se encontravam certos países africanos após o processo de

descolonização; a independência semeou no povo a esperança de tempos melhores, sem,

no entanto, que isso se verificasse na prática. Kourouma desconstrói as idealizações em

torno das independências ao escolher como protagonista um príncipe que perdera a sua

função e se tornara mendigo em Abidjan.

O seu segundo romance, Monnè, outrages et défis, publicado apenas vinte anos mais tarde pela editora Seuil, retrata o período da colonização francesa no território africano. No romance En attendant le vote des bêtes sauvages (1998), Kourouma põe em cena um ditador africano como protagonista para questionar as práticas de grupos

políticos do período posterior à descolonização. Em 2000, Kourouma lança um novo

livro, intitulado Allah n’est pas obligé, que, no mesmo ano de sua publicação, foi

(12)

vencedor de três prêmios literários: o PrixRenaudot, o Prix Goncourt des lycéens e o

Prix Amerigo-Vespucci.

Esse romance será o corpus central dessa pesquisa e, a partir de sua leitura, serão levantadas importantes questões para a reflexão acerca da África na contemporaneidade.

A análise do corpus girará fundamentalmente em torno dos problemas da identidade e da minoridade, na medida em que Kourouma constrói o problema da identidade a partir

do relato de uma criança. Evidentemente, a construção ficcional de sua obra remete a

um questionamento identitário de todo um povo que assistiu, em sua história, à

dominação, à guerra, às múltiplas influências culturais e linguísticas, enfim, a um

esfacelamento de sua identidade, acompanhado de uma afirmação de sua situação de

marginalidade. Nesse contexto, a literatura exerce um importante papel não apenas no

sentido da reivindicação de uma nova compreensão identitária africana, mas, sobretudo,

no que tange aos meios de expressá-la. Ao centrar seu romance na figura de uma criança

e ao explorar o uso de “menor” de sua língua, Kourouma aposta na minoridade como potência estética, como veremos adiante.

A obra Allah n’est pas obligé tem início com a apresentação de um personagem: Birahima. Trata-se de um menino de dez ou doze anos, que empreende uma narração

em primeira pessoa para contar a sua “vie de merde de damné” (A, p. 10)2. Para atingir o maior público possível, o menino adota a seguinte estratégia: servir-se de quatro

dicionários a fim de explicar a todos os seus leitores as referências culturais e lexicais

necessárias para a compreensão de seu relato.

Il faut expliquer parce que mon blablabla est à lire par toute sorte de gens: des toubabs (toubab signifie blanc) colons, des noirs indigènes sauvages

d’Afrique et des francophones de tout gabarit (gabarit signifie genre) (A, p. 9).3

Após apresentar-se, o menino relata fatos relevantes de sua infância, marcada

pela ausência de seu pai e pela doença de sua mãe, que a impossibilitava de andar e

também de cumprir plenamente suas funções maternas. Para explicar os eventos

ocorridos em sua infância, Birahima nos fornece constantemente informações a respeito

de sua cultura de origem e de sua língua materna, isto é, o malinké. A doença da mãe,

2 As refêrencias ao corpus da pesquisa, o romance Allah n’est pas obligé, aparcerão em francês no corpo do texto e sua respectiva tradução, retirada da versão traduzida em português por Flávia Nascimento, aparecerá nas notas de rodapé. “Vida de merda de desgraçado” (A, p. 13).

3“É preciso explicar porque meu blablablá é para ser lido por todo tipo de gente: tubabs (tubab significa branco) colonos, pretos nativos selvagens da África e francófonos de tudo que é gabarito (gabarito

(13)

por exemplo, é consequência de sua excisão, tradição imposta a muitas mulheres

africanas, que é explicada e comentada pelo narrador. Após muito sofrimento, a mãe de

Birahima morre, deixando-o órfão. A única solução consiste em delegar a tutela do

menino a uma tia, que se vê obrigada a fugir da aldeia sem o menino, pois estava jurada

de morte. Mais uma vez, o menino se encontra sem tutela e parte em busca de sua tia,

que se instalara na Libéria, percorrendo inúmeros países fronteiriços da África negra, na

companhia de Yacouba, um mercenário de guerra.

A partir do segundo capítulo, inicia-se, pois, essa trajetória de Birahima em

busca da tia, o que o leva a se tornar criança-soldado para sobreviver. Conforme o

próprio narrador nos informa, essa etapa tem início em junho de 1993, o que nos

permite situar historicamente os eventos vividos pelos personagens. Nos capítulos que

se seguem, Birahima relata as suas desventuras em meio à guerra, aquilo que vira e que

vivera, o seu engajamento na guerra tribal. O menino passa por diversas facções, como

a NPFL (Frente Nacional Patriótica da Libéria), comandada por Taylor, a ULIMO

(Movimento Unido de Libertação pela Democracia na Libéria), chefiada por Samuel

Doe, a facção de Prince Johnson, a RUF (Frente Revolucionária Unida de Serra Leoa),

cujo líder era Foday Sankoh, e a facção de Johnny Koroma.

Esses líderes das facções tinham todos grandes ambições políticas, porém, para

legitimar o seu poder, serviam-se da força e, consequentemente, de meios extremamente

violentos. Os dois primeiros – Taylor e Doe – foram presidentes da Libéria e sua trajetória será comentada adiante. Prince Johnson atuou nesse mesmo país e foi o

responsável pela tortura e morte de Samuel Doe.

Foday Sankoh e Johnny Koroma são chefes de guerra de Serra Leoa. O primeiro

manteve o controle sobre as minas de ouro e diamante do país, o que leva o narrador do

romance a repetir inúmeras vezes a seguinte frase a seu respeito: “il tient la Sierra Leone utile” (A, p. 166).4 Sankoh é responsável ainda pelo episódio que ficou

conhecido como o evento dos “manchots”, que consistiu em amputar o braço dos

indivíduos que se apresentassem às urnas para eleger o presidente do país. Johnny

Koroma, em maio de 1997, através de um golpe militar, destitui o governo de Ahmad

Tejan Kabbah, e se mantém no poder até fevereiro de 1998.

(14)

Todos os chefes de guerra se dotam de um discurso semelhante, isto é, o de

salvar a Libéria do inimigo, livrando-a da guerra e da dominação; no entanto, o que se

observa é que todos dão continuidade aos mesmos atos de violência e crueldade,

fazendo justiça com as próprias mãos em nome da liberdade. Através de discursos

travestidos de verdade, os chefes de guerra legitimam seu poder e perpetuam uma

guerra sem sentido para aqueles que dela participam; o fragmento a seguir, pronunciado

pelo chefe da NPFL durante um sermão, mostra a denúncia aos outros chefes de guerra

para legitimar a sua imagem de herói:

Ça portait sur la trahison, sur les fautes des autres chefs de guerre: Johnson, Koroma, Robert Sikié, Samuel Doe. Ça portait sur le martyre que subissait le peuple libérien chez ULIMO (United Liberian Movement of Liberia), Mouvement uni de libération pour le Liberia, chez le LPC (le Liberian Peace Council) et chez NPFL-Koroma (A, p. 70).5

Como podemos notar através do breve resumo da obra e do trecho acima, o

romance está em constante diálogo com a história, convocando, inclusive, personagens

com referência no mundo real para participar da sua trama. No que diz respeito à

contextualização histórica dos eventos narrados, será de grande importância a coleção

“Histoire Générale de l’Afrique”, organizada pela UNESCO, com a participação de 350 especialistas, inclusive de importantes historiadores, como Joseph Ki-Zerbo. Outro

trabalho de interesse para o diálogo entre a história e a obra de Kourouma será a tese de

Bi Kakou Parfait Diandue, estudioso da obra do autor.

A partir de suas análises dos romances Les soleils des Indépendances e Monnè, outrages et défis, Diandue observa que os lugares representados pelo autor podem ser identificados à terra natal de Kourouma, isto é, a Costa do Marfim. Em ambos os

romances, Kourouma traça um diálogo intenso com a história da África; na obra Monnè, outrages et défis, ele fornece informações detalhadas a respeito da instalação dos europeus na África e do modo como eles legitimaram sua dominação, a resistência dos

chefes locais e da população diante da imposição do colonizador, os impostos forjados

pelo colonizador para subordinar a população à sua dominação (cf. DIANDUE, 2003, p.

50-60).

(15)

No romance Les soleils des Indépendances, Kourouma problematiza o processo de descolonização das recém-formadas nações africanas, que mergulhou os países em

uma profunda crise, não apenas política e econômica, mas também social e moral.

Kourouma situa os eventos em um espaço denominado “Côte des Ébènes”, construindo um personagem chamado “Tiékorini”; conforme demonstra Diandue, essa dupla criação ficcional representa o espaço da Costa do Marfim e o líder político Félix

Houphouët-Boigny, primeiro presidente do país, o chamado “pai da independência” marfinense (cf. DIANDUE, 2003, p. 328), que permaneceu no governo de 1960 até o ano de 1993.

Cabe observar desde já que o uso da palavra “nação” por si só é problemático quando se trata do contexto africano, uma vez que a repartição do território em nações

não levou em conta as especificidades de cada região, estabelecendo fronteiras

arbitrárias, o que figurou muito mais uma utopia do que a solução para os problemas.

Representantes de diferentes etnias, muitas vezes inimigas entre si, uniram-se para

expulsar o colonizador, mas não tinham bases sólidas em comum favoráveis a uma

posterior unidade e à possibilidade de convivência pacífica; conclui-se, pois, que “a luta

pelas independências não permitiu que os africanos se libertassem da tutela ocidental”. 6 O romance Allah n’est pas obligé também é permeado por essa polêmica problematizada nos outros romances de Kourouma; dessa vez, porém, o principal

cenário é a Libéria, sobretudo a sua região fronteiriça com a Serra Leoa e a Guiné. De

acordo com o sétimo volume da coletânea “Histoire Générale de l’Afrique”, no capítulo dedicado à Libéria, escrito pelo historiador Monday B. Akpan, podemos concluir que

esse país apresenta algumas particularidades históricas, que serão brevemente

comentadas para enriquecer a compreensão do contexto em que se encena

majoritariamente o corpus dessa pesquisa.

Primeiramente, cabe observar que a Libéria foi o primeiro país africano a

alcançar a sua independência. Em 1822, foi fundada a cidade de Monróvia, pela

Sociedade Americana de Colonização, com o objetivo de instalar os ex-escravos

afro-americanos. Essa região da África serviu, pois, ao intuito de resolver um problema dos

norte-americanos no que diz respeito aos ex-escravos, que haviam alcançado a sua

liberdade mas não foram incorporados à sociedade, sofrendo muitos preconceitos e

6 As citações de teóricos e críticos de língua estrangeira serão traduzidas por mim no corpo do texto e a versão original aparecerá nas notas de rodapé. “La lutte pour les indépendances n’a pas permis aux

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permanecendo à margem do corpo social. A independência da Libéria data do ano de

1847, com a proclamação de uma República na qual o presidente tinha amplos poderes;

no entanto, como era difícil legitimar esse poder fora da capital Monróvia, os vilarejos

eram dominados por grupos ou por famílias que ali impuseram a sua força.

Quando os ex-escravos vindos dos Estados Unidos se instalaram nessa região,

ela já era habitada por povos autóctones africanos e a cultura desses dois grupos se

diferenciava enormemente, uma vez que os afro-americanos tinham origem ocidental,

professavam a religião cristã e levavam um estilo de vida muito diverso ao dos povos

africanos. Evidentemente, a divisão e a disputa entre esses dois grandes grupos eram

significativas e os afro-americanos, detentores do poder político durante muitos anos,

tinham o objetivo de dominar também culturalmente os povos autóctones, exercendo

uma espécie de colonialismo através de seu esforço “civilizatório”.

Como podemos observar, a origem do Estado liberiano foi problemática desde a

sua implantação, por reunir em um mesmo território grupos que apresentavam valores,

hábitos e interesses muito diferentes. Nos anos 1880, com a chegada efetiva dos

europeus no continente, a situação se intensificou ainda mais. Os chefes liberianos

acreditavam que a Libéria não seria objeto de dominação europeia, uma vez que já se

constituía enquanto Estado; entretanto, esse fato não poupou a Libéria da influência

europeia, que começou a conquistá-la a partir do interior e a influir significativamente

em sua administração e organização econômica. Com o consequente enfraquecimento

do país, os ingleses e os franceses começaram a dominar as regiões não ocupadas da

Libéria e a anexá-las ao seu território.

A instabilidade política vivida pelo governo liberiano, de origem afro-americana,

gerou uma situação complexa de colonização dos autóctones, isto é, de colonização de

seu próprio povo, dentro de um país independente. Evidentemente, essa situação gerou

insatisfação e revoltas por parte dos africanos:

Não foi à toa que os africanos autóctones se opuseram ao governo, pois este queria submetê-los pela força das armas à sua dominação, assim como os outros africanos se opuseram em outros lugares aos europeus que desejavam impor-lhes sua lei; eles se revoltavam também contra os abusos da administração. 7

7Il n’est pas étonnant que les Africains autochtones se soient opposés au gouvernement parce que celui-ci

(17)

A Libéria foi capaz de manter o seu estatuto de Estado independente e de

sobreviver diante do imperialismo europeu; no entanto, não foi capaz de resolver as suas

questões internas, provenientes da dominação e das disputas étnicas, e acabou

mergulhando em uma sangrenta guerra civil, a partir de 1989, decorrente da tomada do

poder por parte dos africanos. No ano de 1980, Samuel Doe, primeiro africano a ocupar

o cargo máximo político na Libéria, articula um golpe de estado e massacra os líderes

políticos afro-americanos. A partir de então, inicia-se uma longa disputa pelo poder,

marcada por rivalidades étnicas e por ambições políticas e econômicas, lideradas,

inicialmente, por Samuel Doe, de um lado, e Charles Taylor, de outro.

Esses últimos eventos são evocados diretamente por Kourouma em Allah n’est

pas obligé, e os fatos vividos pelo narrador Birahima se mesclam com a história da Libéria e de países fronteiriços, fazendo com que a sua trajetória de vida seja

indissociável do jogo político presente na região. Kourouma procede, portanto, a uma

ficcionalização da história, em que personagens reais e fictícios estão em cena para

construir a trama do romance.

Além da Libéria, outro cenário do romance é a Serra Leoa. Como a maioria dos

países africanos, a Serra Leoa também sofreu a dominação colonial ocidental. No início

do século XIX, a Coroa Britânica deu início à colonização deste país e, assim como

ocorrera na Libéria, a Serra Leoa também recebeu ex-escravos recém-alforriados.

Depois de um século e meio de dominação, em 1961, a Serra Leoa proclamou a sua

independência, que veio acompanhada de uma enorme instabilidade política,

conduzindo o país a uma sangrenta guerra civil, que será representada no romance.

Conforme comentamos anteriormente, Kourouma traça um paralelo entre a

ficção e a história dos países africanos, como é possível observar no trecho a seguir: “ce pays [la Sierra Leone] a été un havre de paix, de stabilité, de sécurité pendant plus d’un siècle et demi, au début de la colonisation anglaise em 1808 à l’indépendance, le 27 avril 1961” (A, p. 161)8. Notamos, portanto, que a história é central para o estudo dos romances de Kourouma, uma vez que ela é incessantemente convocada; de acordo

com o pesquisador Diandue, analisar a sua obra significa traçar um paralelo constante

com a disciplina historiadora.

8“Este país foi um ninho de paz, de estabilidade, de segurança durante mais de um século e meio, no

(18)

Os romances de Kourouma são todos uma retomada ficcional da História. Enquanto tais, eles não poderiam ser relatos não referenciais, assim como o romance para Kourouma é um testemunho. Por isso, o correlato noemático da imitação, isto é, a representação mimética consciente da História que constitui a produção romanesca de Kourouma é digna de interesse.9

No primeiro capítulo desse trabalho, o fio condutor da pesquisa será, pois, a

relação da obra de Kourouma com a história da África. Na primeira seção, discutirei as

especificidades e os limites entre a história e a ficção. O objetivo será compreender de

que modo a disciplina historiadora está presente na obra de Kourouma, porém sempre

sob o viés da ficção, uma vez que os espaços, tempos e vozes seguem uma flexibilidade

e fluidez mais próximas da criação ficcional que da objetividade historiadora.

Kourouma procede, portanto, a uma estetização da história, que será compreendida

como um processo de expressão identitária. Revisar o seu passado para questionar o

presente constitui um movimento característico da compreensão identitária de sujeitos e

comunidades que sofreram um processo de dominação política, mas também no âmbito

da cultura e da língua, elementos centrais para a identidade coletiva.

A tarefa literária de revisitar o seu passado, mas de expressá-lo através de um

jogo entre realidade e ficção, revela a necessidade de Kourouma de cumprir um dever

de memória. Ele recorre, pois, à sua memória, mas certamente nutre o seu imaginário

com a memória coletiva, trazendo para o papel central, isto é, para a função de narrador

e de protagonista, uma testemunha dos eventos narrados. A escolha de dar a voz a uma

criança-soldado e a permissão de deixá-la falar em primeira pessoa revelam a ponte que

constrói entre a história da África e a narração; em outras palavras, podemos dizer que o

testemunho de Birahima concede aos fatos um teor de veracidade e permite o encontro e

a associação da sua história à história da África.

Na segunda seção do primeiro capítulo, aprofundarei a reflexão acerca da

identidade, examinando o modo como ela está presente no romance. Partirei das

primeiras páginas do livro, que consistem na apresentação do narrador Birahima, para

depreender as instâncias identitárias em jogo no romance. Cabe observar que o narrador

levará em conta aspectos linguísticos, étnicos, sociais e religiosos, sem mencionar o

critério nacional. Conforme mencionei anteriormente, a construção nacional dos países

9“Car les romans de Kourouma sont tous une reprise fictionnelle de l’Histoire. En tant que tels, ils ne

sauraient être des récits non référentiels d’autant même que le roman pour Kourouma est un témoignage. C’est pourquoi le corrélat noématique de l’imitation, c’est-à-dire la représentation mimétique consciente

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africanos é uma questão extremamente complexa e que exige uma análise mais

detalhada. Procederei, pois, a um estudo da construção e da legitimação da ideia de

nação no contexto europeu, para problematizar a sua imposição no contexto africano.

As alusões às nações no romance revelam a descrença de Kourouma diante do fato

nacional e indicam que a compreensão da identidade não deve ser pautada por esse

critério, pois há inúmeros outros aspectos em questão.

Vemos, pois, que a questão identitária é central para a reflexão de Kourouma; o

seu trabalho, portanto, vai além de uma simples busca da identidade e se mostra

inovador na medida em que o autor não apenas questiona, mas procura expressar a sua

identidade, colocando em relevo aquilo que ele considera que é próprio e característico

de sua realidade. Surge, assim, o seguinte questionamento: como é possível expressar

uma identidade africana em língua estrangeira? Kourouma responde a essa pergunta ao

colocar a língua no cerne do seu fazer literário, isto é, ele transforma a sua ferramenta

de expressão em um fim em si. Através da língua, Kourouma resgata valores ancestrais

da África – como a oralidade, as tradições, a cultura malinké – sem negligenciar as influências culturais recebidas a partir do encontro com outras culturas e línguas.

O segundo capítulo gira justamente em torno dessas questões; na primeira seção,

o objetivo da análise será, pois, verificar a expressão da identidade sob o ponto de vista

da minoridade, a partir, especialmente, do modo como a concebem Gilles Deleuze e

Félix Guattari, que nela apostam como uma força de criação literária. A estratégia

empreendida por Kourouma para expressar a sua identidade está profundamente ligada

ao uso que faz da língua: a situação de desterritorialização linguística, aparentemente

um obstáculo à escrita, revela-se, no romance Allah n’est pas obligé, como uma força de criação, justamente. De acordo com a concepção de minoridade de Deleuze e Guattari, a

“literatura menor não é a de uma língua menor, mas antes a que uma minoria faz em

uma língua maior” (DELEUZE e GUATTARI, 1975, p. 25). Kourouma opta pela língua maior como idioma de escrita – o francês –; no entanto, o uso da língua francesa é profundamente irrigado por outros imaginários e referências culturais, abrindo ao

francês a possibilidade de expressar imaginários e paisagens outras.

Na segunda seção do segundo capítulo, investigarei outra instância minoritária

presente no romance, isto é, a minoridade etária representada pela voz narrativa da

(20)

outras crianças-soldados, analisaremos as especificidades desse modelo de infância,

bem como as condições que a propiciam. Os exemplos nos revelarão um elemento

comum a todas essas crianças: a falta de uma instância tutelar, lacuna radicalizada pela

presença da guerra.

A minoridade etária se torna duplamente significativa, uma vez que apresenta

outra dimensão: as recém-formadas nações africanas. Nascidas tardiamente, as nações

africanas também apresentam um problema relativo à noção de tutela, e da necessária

“destutela” em relação à dominação europeia. O romance de Kourouma retrata a

problemática desse processo de “destutela”, que ainda não se realizou plenamente, uma vez que as nações africanas demonstram muita dificuldade em encontrar modelos

políticos capazes de resolver as crises internas e guerras civis. Esse contexto abre

margem para o caos generalizado, disputas pelo poder, criação de facções de guerra e,

conforme problematiza o romance, o emprego de crianças na linha de frente dos

(21)

2. Construção político-identitária

A partir de uma breve análise a respeito do conteúdo das três obras de

Kourouma, Monnè, outrages et défis, Les soleils des Indépendances e Allah n’est pas

obligé, é possível concluir que, aos poucos, ele encarou inúmeros episódios do continente africano, atravessando muitos anos de sua história. É notório que um evento

que marcou profundamente essa história e que transformou o seu rumo foi a

colonização, fato que norteia bastante a realidade histórica, social e cultural abordada

por Kourouma. Na primeira obra escrita e publicada pelo autor, Les soleils des Indépendances, o tema central é a realidade da época posterior ao processo de descolonização de alguns países africanos.

O caso de Kourouma ilustra a situação de outros artistas em contextos

semelhantes, isto é, a necessidade de rever o seu passado: o autor só consegue liberar a

sua palavra após se debruçar, refletir, questionar e revirar a própria história. Em um

primeiro momento, no entanto, como conta o próprio autor, em uma entrevista

concedida a Lise Gauvin, o seu texto era puramente político, com um tom jornalístico

que tinha por objetivo denunciar a realidade que ele encontrava em seu país. Após

seguir o conselho de alguns amigos, Kourouma decide reescrever seu manuscrito,

fazendo a opção pela ficção e descartando as passagens de teor jornalístico, como ele

próprio revela a Lise Gauvin: “Je crois que notre ami Vauchon avait vu qu’il fallait peut-être enlever ce qui était au fond très très politique et ne conserver que la fiction” (GAUVIN, 1997, p, 155). 10

Kourouma dá, portanto, lugar à ficção, transformando seus personagens, espaços

e tempos em entidades ficcionais, o que garante ao seu texto um jogo diverso com a

realidade. O panfleto cede lugar à literatura, pois entram em cena elementos estéticos,

com forte ênfase no trabalho com a língua. Evidentemente, a história não ficará

suspensa; ao contrário, ela será constantemente convocada para ser problematizada,

reformulada, estetizada.

O segundo romance de Kourouma, Monnè, outrages et défis, dialoga diretamente com a colonização francesa no continente africano e conta com comentários

precisos e específicos a respeito do processo colonizador. Bi Kakou Parfait Diandue, em

(22)

sua tese sobre a obra de Kourouma, mostra que a riqueza de informações a respeito, por

exemplo, dos impostos pagos pelos colonos e dos trabalhos forçados a que eles eram

submetidos demonstra a importância das fontes históricas na produção romanesca de

Kourouma. Esse romance, publicado vinte anos mais tarde que o primeiro, revela a

necessidade do autor de mergulhar ainda mais na história de seu povo, resgatando um

passado ainda mais distante daquele que havia convocado em sua primeira obra.

O livro Allah n’est pas obligé não trata diretamente da colonização ou da independência em relação à dominação europeia, pois se debruça sobre uma época

posterior a esses momentos; entretanto, a guerra civil representada por Kourouma nesse

romance não está isenta das influências da colonização dos países africanos e do

complexo processo de descolonização pelo qual passaram. A interferência europeia

mudou a estrutura de poder existente nesses países e, no momento em que ocorreu a

expulsão do colonizador para dar lugar à independência, a consequência foi uma

enorme crise política. Uma vez que o poder ficara livre das mãos dos colonizadores, era

preciso encontrar lideranças para ocupá-lo, o que mergulhou diversos países em

sangrentas guerras civis entre grupos que se insurgiram visando a assumir o poder. O

destino de Birahima, protagonista do romance, aparentemente desconectado da

colonização, é, na realidade, efeito das sequelas deixadas por esses eventos históricos.

Esse resumo de três importantes obras de Kourouma nos revela uma questão que

está permanentemente em jogo no seu fazer literário: a linha tênue entre a ficção e a

história. Como vimos, o autor se alimenta de fontes histórias para construir suas obras;

no entanto, ele optou por proceder a uma criação ficcional e não a um texto jornalístico.

Para compreender em que implica a opção de Kourouma de criar um texto ficcional,

porém em constante diálogo com a disciplina historiadora, investigaremos,

primeiramente, o sentido da história. Na introdução de sua tese, Diandue, interessado na

relação entre história e ficção na obra de Kourouma, reflete sobre o conceito de história.

Resumidamente, ele depreende duas significações importantes para esta noção:

(23)

indução, a classificação, mas também, de certo modo, a explicação causal dos fatos particulares. (DIANDUE, 2003, p. 12)11.

A compreensão do tempo passado, as transformações da sociedade, a relação de

causa e efeito entre os fatos, para articular os eventos passados constituem, portanto,

tarefas do historiador. O escritor, ao mesmo tempo em que pode também tomar para si

essa tarefa, não está comprometido da mesma forma com a verdade dos fatos, pois o

jogo traçado entre a realidade e a ficção lhe permite criar ao invés de explicar. Assim, o

escritor, ao estar comprometido com o ficto e não com o facto, isto é, com o ficcional e não com o factual, pode jogar com temporalidades e causalidades imaginárias,

envolvendo, em seu processo de escrita, elementos estéticos e ficcionais, como veremos

na primeira seção deste capítulo.

Cabe também compreender os motivos pelos quais a história se faz tão presente

na obra de Kourouma. Primeiramente, poderíamos dizer que a função da história em

obras de autores como Kourouma traça uma íntima relação com a identidade.

Compreender o seu passado configura um processo natural da compreensão de si

mesmo. É o que verifica, por exemplo, o historiador Jacques Le Goff na introdução de

sua obra “História e Memória”: “a história tornou-se [...] um elemento essencial da

necessidade de identidade individual e coletiva” de muitos povos (LE GOFF, 1996, p.

16). Essa necessidade se intensifica ainda mais quando se trata de povos que buscam

dotar-se de uma história própria, com uma visão de passado que não seja imposta por

outro povo que se considera superior.

Além da questão identitária, outra função primordial da história consiste na sua

relação com o presente: descortinar o passado torna-se, pois, uma maneira indispensável

para compreender o presente. Através da trajetória literária de Kourouma, notamos que,

após escavar o seu passado, percorrendo, sobretudo, os eventos mais duros e cruciais da

história de seu continente, resta-lhe outra difícil tarefa, não menos dolorosa, não menos

complexa: encarar o presente. No romance Allah n’est pas obligé, em que Kourouma encena uma época contemporânea à sua, é possível depreender certas pistas de como o

autor vislumbra a africanidade no final do século XX, com um tom sempre irônico e

raramente otimista.

11“Elle a d’abord une signification épistémologique générale désignant un certain mode de connaissance relatif à des données empiriques irréductibles, en fait ou en droit, à toute explication théorique rationnelle. Elle est ensuite la transformation dans le temps des sociétés humaines et le récit qui en est fait. L’Histoire

(24)

Para muitos escritores que tratam de questões semelhantes, torna-se cada vez

mais problemático produzir um discurso sobre o presente, como constata, por exemplo,

Albert Memmi, escritor tunisiano que muito se debruça sobre a realidade africana

colonial e pós-colonial, em seu ensaio intitulado “Retrato do descolonizado árabe

-muçulmano e de alguns outros”. Ao refletir sobre a representação do presente, Memmi afirma o seguinte: “é mais difícil ser um escritor no período pós-colonial do que durante a colonização” (MEMMI, 2007, p. 57). Durante o período colonial, havia um inimigo comum a ser expulso e os discursos dos africanos engajados eram unânimes quanto a

essa questão: era preciso proclamar a independência em relação aos países que se

instalaram em seu território apenas para explorar suas riquezas.

As guerras de descolonização eram imbuídas de uma promessa de paz e de

prosperidade que nunca, porém, foi realizada; os senhores foram trocados, a luta pelo

poder se instaurou, a guerra continuou, mas, dessa vez, tornou-se mais difícil abordar o

seu sentido, isto é, identificar quem é o inimigo contra o qual se luta. Dessa vez, o poder

foi ocupado pelos próprios africanos, que passaram a fazer a guerra contra os seus

irmãos – o que justifica o fato de elas serem frequentemente chamadas de “guerras

fratricidas”. Posicionar-se quanto ao momento presente torna-se uma tarefa mais delicada, uma vez que se devem denunciar indivíduos do próprio povo: no passado, a

língua do colonizador era empregada para denunciá-lo; no presente, entretanto, a língua

do colonizador passou a ser usada para questionar e denunciar os próprios conterrâneos.

Eis que, desde então, ele tem que voltar essa mesma língua [do colonizador] contra os seus, uma vez que não aprendeu nenhuma outra. Continuando a fazer o seu ofício, deveria pintar as carências de seu povo, seus egoísmos, a lucrativa cumplicidade de suas classes dirigentes, as exações de seu próprio governo (MEMMI, 2007, p. 57). O distanciamento temporal permite ver e criticar com mais clareza o passado;

escrever sobre o presente, por outro lado, converte-se em uma tarefa desafiadora, pois

pressupõe uma visão crítica sobre a realidade atual e a denúncia não de um inimigo

estrangeiro, mas de seu próprio povo. Essa é a tarefa à qual se lança Kourouma em seu

romance Allah n’est pas obligé, que, na tentativa de compreensão do presente, volta-se constantemente para o passado. Na primeira seção deste capítulo, analisaremos, pois, as

percepções entre o passado e o presente e a importância da disciplina historiadora na

(25)

Ao convocar a história para reivindicar uma identidade e compreender o

presente, busca-se, na realidade, uma concepção do passado diversa àquela construída

pelo colonizador. Trata-se de elaborar uma visão histórica através de um olhar africano,

pondo à prova as visões dominantes, isto é, eurocêntricas. Essa compreensão do passado

africano leva em conta, necessariamente, o modelo político aplicado às inúmeras

realidades africanas, isto é, a divisão arbitrária do território em nações. Essa divisão

geográfica ignorou aspectos linguísticos, culturais e étnicos, provocando no continente

uma grave fragmentação territorial, mas também identitária, o que gera consequências

negativas até a atualidade.

Apesar de a obra Allah n’est pas obligé não questionar diretamente a problemática nacional, o contexto em que as ações do romance estão inseridas, isto é, a

guerra tribal decorre de questões políticas e históricas ligadas à formação nacional dos

povos africanos. A identidade nacional não se substituiu a outras formas de identidade,

como a étnica, por exemplo, dificultando a possibilidade de uma unidade nacional,

sempre ameaçada por guerras civis. Ora, se os habitantes de um mesmo território não se

sentem parte de uma unidade, as disputas entre eles serão inevitáveis.

Sendo assim, percebemos que questões passadas ainda geram consequências no

presente. A formação das nações africanas é digna de interesse a partir desta

perspectiva, isto é, enquanto causa de conflitos no presente. Na segunda seção deste

capítulo, abordaremos a questão nacional no contexto africano, refletindo sobre a sua

formação, em comparação ao modelo europeu. A nação está intimamente associada à

noção de identidade nacional; investigaremos, pois, como é construída a noção de

identidade no corpus dessa pesquisa e de que modo a referência à identidade nacional se faz presente.

2.1. Percepções do passado e do presente

A obra de Ahmadou Kourouma faz com que o leitor mergulhe imediatamente na

história, uma vez que o conteúdo de suas narrativas, por mais que seja ficcional, está

imerso na realidade histórica da África. Como vimos, a relação entre a história e a

literatura está intimamente associada a um processo de consciência identitária. É o que

(26)

remodelagem dos fatos históricos faz o trabalho de despertar a consciência identitária

em Kourouma”. 12

Quando se fala em passado, em história, não há como ignorar um evento que

deixou muitas marcas nas recém-formadas nações africanas: a guerra, elemento que se

torna central enquanto temática, na medida em que constitui um fato onipresente não

apenas na história de uma única nação africana, mas de inúmeras nações, que nasceram

em meio à guerra e continuam a viver sob a sua constante ameaça. Como a literatura

não é alheia aos acontecimentos que abalam a realidade, – ao contrário, procura encará-los, questioná-los e representá-los – a guerra se torna um tema literário recorrente no cenário africano. É esse o contexto do romance Allah n’est pas obligé, no qual a literatura se converte em um meio de dar voz a sujeitos anônimos, que ganham espaço

para refletir sobre a sua realidade e dar testemunho de sua história; como a memória

ainda está muito viva, torna-se impossível calar as vozes de lembranças tão recentes e,

frequentemente, tão cruéis.

A memória, portanto, tem um papel significativo na representação estética da

guerra, à qual se articulam também a pesquisa de dados historiográficos e os arquivos.

As diversas visões e interpretações do passado estão em cena na construção do romance,

mas esses elementos estão aliados à imaginação, por meio da qual os artistas criam e

inventam personagens, tempos e espaços fictícios para jogar com a realidade. Essas três

questões centrais – a história, a memória e a ficção – se imbricam e se fazem presentes na representação literária da guerra e, a partir de exemplos tirados das obras de

Kourouma, podemos discutir as representações históricas e literárias do passado

africano.

2.1.1. História e ficção

No romance Allah n’est pas obligé, o narrador convoca inúmeros personagens cujas referências existem no mundo real, como é o caso de Charles Taylor, Samuel Doe,

Prince Johnson, Johnny Koroma, todos líderes de facções, com grande influência

política e econômica, na Libéria ou em Serra Leoa. As ações dos acontecimentos

(27)

narrados também se passam em lugares reais, como os vilarejos de Zorzor, Sanniquelie

e Mile-Thirty-Eight, e as cidades de Monróvia e Freetown. Além disso, a todo tempo

são citados nomes de cidades, como, por exemplo, Abidjan, Yopougon, Port-Bouët,

Boundiali, Dakar, Bamako; e de países, como Costa do Marfim, Libéria, Serra Leoa,

Gana, Nigéria, Senegal.

Sobretudo na parte final do romance, Kourouma evoca inúmeros personagens

com referência história, com uma precisão tão grande, que situa os acontecimentos no

tempo, datando-os e explicando o contexto internacional da situação em questão. Nos

exemplos a seguir, são narrados eventos históricos relativos às tentativas de negociação

em prol do estabelecimento da paz nos países em guerra civil:

Le trente-troisième sommet des chefs d’État et de gouvernement de l’OUA (Organisation de l’unité africaine) se tient à Harare au Zimbabwe du 2 au 4 juin(A, p. 198, grifo nosso)13;

Le deuxième round des négociations d’Abidjan (round signifie épisode d’une négociation difficile) s’est ouvert les 29 et 30 juillet 1997 toujours au

vingt-troisième étage de l’hôtel Ivoire (A, p. 200, grifo nosso)14;

La junte veut maintenir la suspension de la constitution et rester au pouvoir

jusqu’à l’an 2001 (A, p. 200, grifo nosso)15;

Dès le début du mois d’août 1997, la Sierra Leone est ravagée par

d’incessants combats (A, p. 201, grifo nosso)16;

Des entrevues, il ressort que la junte est « disposée à poursuivre les

négociations avec le comité des quatre mandaté par la CDEAO en vue d’un

retour à la paix » et réaffirme tout haut que la date de novembre 2001 annoncée pour un retour au régime civil est négociable (A, p. 201, grifo nosso)17.

As referências a organizações – a OUA, a CDEAO –, a datas e a eventos históricos revelam que Kourouma está em constante diálogo com a disciplina

historiadora e que deseja situar as ações narrativas no tempo histórico, para lhes conferir

um teor de veracidade. No entanto, não podemos esquecer que se trata de uma obra

ficcional e que, apesar das evocações explícitas de personalidades históricas, não se

13“A trigésima terceira reunião de cúpula dos chefes de Estado e do governo da OUA (Organização da Unidade Africana) realiza-se em Harare, no Zimbábue, entre os dias 2 e 4 de junho” (A, p. 202, grifo nosso).

14 “A segunda rodada das negociações de Abidjão (rodada significa etapa de uma negociação difícil) abriu-se nos dias 29 e 30 de julho de 1997, sempre no vigésimo terceiro andar do hotel marfim” (A, p. 204, grifo nosso).

15“A junta quer manter a suspensão da constituição e permanecer no poder até o ano de 2001” (A, p. 204, grifo nosso).

16“Desde o

início do mês de agosto de 1997, incessantes combates devastam Serra Leoa” (A, p. 205, grifo nosso).

17“Das conversas, resulta que a junta está ‘disposta a prosseguir as negociações com o comitê dos quatro

(28)

pode confundir o caráter diegético de um personagem com a sua existência histórica,

pois, a partir do momento em que o autor se propõe a narrar uma ficção, os seus

personagens ganham caráter ficcional mesmo que os seus nomes coincidam com a

existência real de uma pessoa no mundo externo ao romance. Percebe-se, pois, um tênue

limite entre história e ficção, uma vez que, ao ler os trechos acima, que contêm diversas

citações e comentários a respeito de personagens que podem ser associados a uma

referência externa real, poderíamos pensar que se trata de um discurso histórico.

Para refletir acerca dos limites e aproximações entre história e ficção,

recorreremos a dois pensadores que se debruçaram sobre essa temática: Hayden White,

um historiador norte-americano, sobretudo a partir da análise de um capítulo intitulado

“As ficções da representação factual”, que se encontra em sua obra “Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura”; e Paul Ricoeur, filósofo francês que muito refletiu sobre elementos comuns à historiografia e ao discurso literário, como, por

exemplo, a temporalidade. Sua obra “A memória, a história e o esquecimento” norteará as reflexões relativas à tríade história, memória e ficção, central para a análise do

romance Kourouma.

De acordo com Hayden White, a aproximação entre história e ficção existe, pois

ambos se utilizam das mesmas técnicas e estratégias no exercício da escrita, isto é, as

duas recorrem à linguagem para produzir o seu discurso; um grande ponto de interseção

entre história e ficção se dá, pois, no âmbito discursivo. Antes da Revolução Francesa, a

distinção entre esses dois campos de estudo era feita entre “fato” e “fantasia”; após a

Revolução Francesa, a oposição passou a ser feita a partir da dicotomia entre verdade

histórica e erro. É preciso admitir que, a partir do momento em que se propõe a

transformar em discurso o estudo da história, deve-se lançar mão das técnicas de

representação, que são indissociáveis das técnicas de representação ficcional, da qual

faz parte a imaginação.

A disciplina historiadora passou a ter a pretensão de fazer um discurso sobre a

verdade isento da subjetividade e da ficcionalidade contidas nas técnicas de

representação; acreditou-se que existia uma forma única e objetiva de representar o real.

Em outras palavras, acreditou-se que,se as ideologias fossem abstraídas, seria possível

(29)

A crítica feita por White a essas teorias reside na ideia de que “os fatos não

falam por si mesmos, mas que o historiador fala por eles, fala em nome deles, e molda

os fragmentos do passado num todo cuja integridade é – na sua representação –

puramente discursiva” (WHITE, 2001, p. 141). Além disso, não há como negar que

qualquer conjunto de fatos pode ser escrito e representado de infinitos modos, o que

conduz à seguinte conclusão: todo modo de expressão seleciona algumas formas que

privilegia, excluindo outras.

Na obra de Kourouma, podemos depreender um exemplo que ilustra o modo

como ele se alimenta do discurso histórico para construir as suas narrativas ficcionais. O

autor, ao fazer o seu recorte, acaba por selecionar os fatos que lhe parecem pertinentes,

nutrindo-se da história apenas quando lhe é conveniente. Essas escolhas do autor nos

permitem inferir a sua visão de mundo. Em seu estudo sobre a obra de Kourouma, na

seção em que se dedica ao livro Monnè, Outrages et Défis, o pesquisador Diandue observa a riqueza de detalhes com que Kourouma descreve a colonização francesa, a

divisão da África entre as nações europeias, a luta de resistência dos povos africanos

contra a colonização; esse detalhamento e a precisão histórica demonstram a

importância das fontes históricas na construção romanesca de Kourouma (DIANDUE,

2003).

Todavia, Diandue observa que alguns fatos históricos são deixados de lado pelo

autor: ao narrar a instalação dos ocidentais na África, Kourouma opta por omitir as

divergências e lutas entre os líderes da oposição aos colonizadores, o que revela uma

idealização da relação entre os líderes africanos na África pré-colonial, fato bastante

contestado historicamente. Segundo Diandue, “essa postura visa a estigmatizar a intrusão colonial, que é lida como a fratura no destino de um continente. Ela mostra a

imagem de uma África pré-colonial pacífica e sem choques”.18

Prosseguindo o debate teórico, à luz das reflexões de Hayden White, pode-se

afirmar que, além do aspecto da escolha seletiva de fatos, a oposição entre os discursos

histórico e ficcional pode ser encarada sob o prisma do conflito entre duas verdades: a

“verdade de coincidência” e a “verdade de coerência”, associadas, respectivamente, à história e à ficção. No entanto, White defende que ambos os discursos compartilham das

18“

Cette entreprise vise à stigmatiser l’intrusion coloniale qui se lit comme la fracture dans le destin d’un

continent. Elle montre le visage d’une Afrique précoloniale paisible et sans heurts” (DIANDUE, 2003, p.

(30)

duas verdades; a história também usa estratégias de “coerência”, pois recorre a mecanismos da lógica textual para encadear o seu discurso, ao passo que a ficção

pressupõe a “coincidência”, pois ela é uma imagem de algo além de si mesma (WHITE, 2001).

É inegável, pois, que a história e a ficção dialogam e compartilham alguns

elementos capazes de aproximá-las; sabe-se, contudo, que “uma coisa é um romance,

mesmo realista; outra coisa, um livro de história” (RICOEUR, 2010, p. 274). Paul Ricoeur propõe tratar da distinção entre esses dois campos abordando a questão do

ponto de vista da recepção, do pacto estabelecido entre os interlocutores: “embora informulado, esse pacto estrutura expectativas diferentes, por parte do leitor, e

promessas diferentes, por parte do autor” (RICOEUR, 2010, p. 274).

Há um pacto ficcional estabelecido entre autor e leitor na leitura de um romance,

que faz com que o leitor aceite, por exemplo, explicações mágicas e sobrenaturais para

acontecimentos ficcionais, o que seria impensável em uma narrativa histórica, visto que

a expectativa do leitor é outra; por sua vez, a promessa, a tarefa e o objetivo do escritor

também são completamente diferentes nesses dois modos de narrativa. Está, pois, em

questão um jogo de expectativas e promessas entre leitor e autor que não são

formulados explicitamente, mas que estão no imaginário dos interlocutores envolvidos

no processo. O leitor, ao se deparar com uma narrativa ficcional, “suspende de bom

grado a sua desconfiança” (RICOEUR, 2010, p. 275), aceita o pacto de entrar num universo irreal; por outro lado, o leitor da narrativa histórica é convocado a ter a atitude

contrária, isto é, a ativar seu espírito crítico e buscar a veracidade do discurso que se

propôs a narrar o passado real.

Na narrativa histórica, portanto, “autor e leitor (...) convencionam que se tratará de situações, acontecimentos, encadeamentos, personagens que existiram realmente

anteriormente” (RICOEUR, 2010, p. 289). A palavra “realmente” traz novamente à tona a questão da verdade, que é a maior pretensão da representação historiadora, cujo objeto

referencial é o próprio passado. Como criticar, então, o discurso historiador? Como

saber se ele é de boa fé e pretende à verdade, ou se ele não está somente a serviço de

uma ideologia? A resposta sugerida por Ricoeur leva em conta todas as etapas do

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do discurso histórico” (RICOEUR, 2010, p. 292). Ricoeur aposta ainda na força viva do testemunho; da mesma forma que é a memória que certifica a realidade de nossas

lembranças, é o testemunho que certifica e dá crédito à representação historiadora do

passado (RICOEUR, 2010, p. 293).

Como o objeto de estudo desse trabalho é a análise literária de um romance, o

que nos interessa principalmente é o âmbito da ficção; a suspensão de bom grado da

desconfiança – como fala Ricoeur – permite à ficção explorar universos alheios à realidade, mesmo que eles nos falem profundamente da realidade humana, dada a sua

relação de verossimilhança com o mundo. “É graças a essa relação de verossimilhança que a narrativa de ficção está habilitada a detectar, na forma das variações imaginativas,

as potencialidades não efetuadas do passado histórico” (RICOEUR, 2010, p. 276, nota

de rodapé).

A ficção pode explorar tempos, espaços e pessoas que não existiram, enquanto

que a história sempre pressupõe a coincidência entre o discurso e a realidade. Com isso,

a ficção pode realizar todas as potencialidades do passado, além de poder dar voz a

personagens fora da existência real, porém que, muitas vezes representam aqueles que

não têm voz no discurso histórico. Nesse sentido, o campo da ficção se alarga em

relação ao campo da história, uma vez que ele compreende todos os eventos dignos de

interesse pela história, isto é, os elementos da realidade observável, porém também

abarca a matéria da imaginação e da criação ficcional:

Os historiadores ocupam-se de eventos que podem ser atribuídos a situações específicas de tempo e espaço, eventos que são (ou foram) em princípio observáveis ou perceptíveis, ao passo que os escritores imaginativos – poetas, romancistas, dramaturgos – se ocupam tanto desses tipos de eventos quanto dos imaginados, hipotéticos ou inventados (WHITE, 2001, p. 137). Desse modo, a literatura pode recorrer tanto à realidade histórica, quanto à

imaginação, o que lhe permite jogar com o real de um modo diverso, porém, não menos

comprometido com a realidade. Os escritores, através de seus personagens ficcionais,

estão autorizados a dizer aquilo que pensam, a se emocionar, a sentir, a chorar, enfim, a

dizer tudo aquilo que não é dito oficialmente. No romance Allah n’est pas obligé,

Kourouma se serve de uma voz ficcional, a voz do protagonista Birahima, para tratar de

uma realidade profundamente humana e diretamente ligada à realidade histórica da

África no final do século XX. O narrador, Birahima, uma criança-soldado que se vê

(32)

muitas crianças em meio à guerra e à violência, em um diálogo constante com a

realidade histórica.

Em circunstâncias nas quais o discurso histórico ou político está a serviço de

ideologias que pretendem veicular apenas a sua visão da realidade, impondo os seus

valores, muitas vezes como forma de legitimar ou eternizar o seu poder, os escritores

dispõem da ficção para mostrar a realidade de outra forma. Tempos, espaços e

personagens imaginários ganham vida para representar tudo aquilo que se sente, mas

não que não é dito oficialmente.

Ao reler os trechos do romance Allah n’est pas obligé relativos a acontecimentos históricos, podemos notar que, apesar de assemelhar-se ao discurso histórico, por sua

forma e seu conteúdo, a fala do narrador é entremeada de estratégias discursivas que nos

lembram, em alguns momentos, que se trata de uma obra ficcional. Retomemos uma das

citações, porém estendendo-a um pouco:

Le deuxième round des négociations d’Abidjan (round signifie épisode d’une négociation difficile) s’est ouvert les 29 et 30 juillet 1997 toujours au vingt-troisième étage de l’hôtel Ivoire. Il devait porter sur les modalités de

l’établissement de la légalité constitutionnelle. Surprise! Les nouvelles propositions de la junte sont en total désaccord avec les points acquis au cours de la première rencontre du 17 juillet. (A, p. 200, grifos nossos)19.

Primeiramente, podemos observar que o narrador, mesmo em meio a uma

referência histórica, recorre a uma estratégia usada ao longo de todo o romance, que é o

uso dos parênteses para esclarecer o significado de uma palavra. Esse recurso será

analisado mais adiante, porém, em resumo, ele se manifesta na fala do menino Birahima

para explicar uma palavra de sua língua malinké àqueles que não a dominam ou, inversamente, para explicar a definição de um vocábulo francês que não seria

compreendido imediatamente por um africano; ou seja, essa estratégia literária tem o

objetivo de fazer o leitor transitar entre os dois universos linguísticos, estratégia que não

tem o menor interesse histórico.

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referencia o dicionário usado para fazer a tradução da palavra “round”, informando uma

definição que não corresponde exatamente à do dicionário em todo e qualquer contexto.

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