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As primeiras páginas do romance Allah n’est pas obligé constam da apresentação do narrador e protagonista do romance, a criança-soldado Birahima. Como vimos, o menino se serve de elementos linguísticos, raciais, étnicos, sociais e culturais para compor o seu retrato, o que indica uma problematização da identidade, estabelecida desde as primeiras linhas do romance.

Certamente, essa problematização provém do enorme contraste entre a infância presente no romance e uma infância prototípica. Tradicionalmente, a infância é associada à incapacidade, à inocência, à pureza; Birahima, ao contrário, faz questão de assumir que é o oposto dessas características, tecendo comentários como os seguintes: “suis insolent, incorrect comme barbe d’un bouc et parle comme un salopard” (A, p. 8),170 “depuis longtemps je m’en fous des coutumes du village” (A, p. 9),171 “suis pas chic et mignon, suis maudit parce que j’ai fait du mal à ma mère” (A, p. 10).172 Na realidade, essa deturpação da infância nada mais é do que o reflexo da deturpação da realidade em meio ao caos da guerra tribal. Logo, a problematização da identidade apresentada pelo narrador espelha um questionamento identitário que não se restringe ao personagem infantil presente no romance, estendendo-o a uma coletividade.

Para responder a esse apelo identitário coletivo, é preciso remontar ao passado e convocar a história para compreender de que modo foi possível atingir tamanho desajuste no presente. A realidade da guerra tribal é decorrente de uma série de eventos históricos que deixaram sequelas no continente, levando povos vizinhos a dizimarem uns aos outros, conforme verificamos a partir dos relatos de Birahima. Mergulhar no passado de seu continente e repensar eventos históricos – como a implantação do modelo nacional, a dominação ocidental, a independência, o processo de descolonização, a conquista da democracia, muitas vezes através de golpes de estado e eleições fraudulentas – constitui um movimento intrínseco à problematização e à compreensão da identidade.

A obra de Kourouma responde a esse apelo, em seu constante diálogo com a disciplina historiadora. Todavia, o trabalho do escritor não se resume a reproduzir a história, mas envolve um processo de ficcionalização da história, no qual se imbricam

170“Sou insolente, errado que nem barba de bode e falo como um filho-da-mãe” (A, p. 10). 171“Mas eu faz muito tempo que estou me lixando para os costumes da aldeia” (A, p. 11).

referências reais e ficcionais em um jogo com o real que reflete os grandes questionamentos da África no final do século XX.

A revisão do passado e a compreensão do presente põem à prova duas instâncias canônicas da literatura Ocidental: a nação e a língua. No que diz respeito ao nacional, a sua fragilidade é manifestada na obra de Kourouma através de dois mecanismos: a suspeita e a descrença em relação às nações africanas, constantemente qualificadas através de uma adjetivação negativa, como “foutue”, “fichu”, “barbare”, “maudit”, “injuste”; e a filiação dos personagens a outras instâncias identitárias, sobretudo à instância étnica, conforme sugere o trecho a seguir: “les Malinkés, c’est ma race à moi” (A, p. 9),173 o que relativiza a importância da identidade nacional.

No que concerne à língua, podemos dizer que esse é um elemento central do fazer literário de Kourouma. A situação de plurilinguismo em que se encontra o seu contexto de escrita produz no autor uma grande sensibilidade aos problemas linguísticos, o que Lise Gauvin chama de surconscience linguistique, isto é, uma necessidade exacerbada de “pensar a língua” (GAUVIN, 2003, p. 22): “Essa surconscience é também uma consciência da língua como espaço de ficção ou até mesmo de fricção: um imaginário da língua e pela língua”.174

No contexto de escrita de Kourouma, a língua e a literatura estão intimamente ligadas, pois adotar um idioma de escrita se converte em uma decisão política e identitária, que dá origem à seguinte bifurcação: escrever na sua própria língua ou na língua do outro? Kourouma opta por irrigar a língua do outro, a língua do colonizador, com seu imaginário africano. A língua se torna fecunda, uma vez que representa o lugar da manifestação da identidade através da conjugação de elementos multiculturais e plurilinguísticos.

Kourouma assume a identidade literária africana baseada na oralidade ao evocar elementos da literatura oral em seu texto escrito: o ritmo da narrativa, os provérbios, a função fática, as repetições comprovam que a escrita e a oralidade podem conviver no mesmo texto. Ademais, as nuances lexicais do malinké e as referências culturais africanas abrem ao idioma francês a possibilidade de representar uma paisagem e um imaginário além de suas fronteiras nacionais.

173“Os malinquês, essa é a minha raça” (A, p. 10).

174“Cette surconscience est aussi une conscience de la langue comme espace de fiction voire de friction:

Esses desvios linguísticos e a exploração criativa do plurilinguismo apontam para um uso “menor” da língua, ou melhor, para uma literatura que “uma minoria faz em uma língua maior” (DELEUZE e GUATTARI, 1975, p. 25). Como vimos, o conceito de “menor” associado à literatura de Kourouma não remete a um sentido pejorativo do termo; ao contrário, a “literatura menor” é aquela que contém “as condições revolucionárias de toda literatura no seio daquela que chamamos de grande (ou estabelecida)” (DELEUZE e GUATTARI, 1975, p. 28).

Em um artigo citado anteriormente, acerca da definição de “literatura menor” de Deleuze e Guattari, Karl Eric Schollhammer define da seguinte forma o sentido do adjetivo “menor”:

“Menor” é aquela prática que assume sua marginalidade em relação aos

papéis representativos e ideológicos da língua e que aceita o exílio no interior das práticas discursivas majoritárias, formulando-se como estrangeiro na própria língua, gaguejando e deixando emergir o sotaque e o estranhamento de quem fala fora do lugar ou de quem aceita e assume o não- lugar como seu deserto, na impossibilidade de uma origem (SCHOLLHAMMER, 2001, p. 63).

Nesse sentido, a “minoridade” consiste em uma afirmação de sua marginalidade para fugir dos modelos ideológicos totalizantes e majoritários, ao trazer para a literatura o estranho, o não-canônico, o sotaque, o estrangeiro. Assim, Kourouma desterritorializa a sua língua, para permitir a convivência de universos plurilinguísticos e interculturais. Ao irrigar o idioma francês com a língua e a cultura malinké, o autor abre novos horizontes para a possibilidade de manifestação de uma identidade africana na língua do outro.

A noção de minoridade se torna ainda mais fecunda na análise da obra Allah n’est pas obligé, tendo em vista a importância da voz narrativa centrada em um personagem infantil na construção desse romance. A minoridade etária é manifestada ainda através das recém-formadas nações africanas que, tendo nascido tardiamente, ainda apresentam complexas tensões em relação ao processo de “destutela”. Essa dupla minoridade etária – das crianças e das nações – revelam, na realidade, duas faces da mesma moeda: uma vez que as nações africanas são instâncias problemáticas, que apresentam dificuldades em encontrar soluções no presente para problemas históricos, elas se tornam um ambiente propício para a deturpação do modelo infância verificado na figura das crianças-soldados.

Além de revelar uma triste faceta da África descolonizada, a minoridade etária está relacionada também a dois elementos cruciais para a compreensão da obra de Kourouma: a história e a tradição. A criança-soldado aparece como a forma mais radical e mais intensa das consequências desastrosas do passado sobre o presente. A cada momento em que a voz extradiegética da narrativa é tentada a voltar ao passado, surge novamente a voz de Birahima para lembrar que é o presente que interessa. Trata-se do jogo entre passado e presente descrito por Gagnebin, citado anteriormente: “um trabalho que, certamente, lembra dos mortos, por piedade e fidelidade, mas também por amor e atenção aos vivos” (GAGNEBIN, 2006, p. 105). A minoridade do narrador também põe à prova o modo de narrar inspirado pelos griots, o que manifesta o jogo de Kourouma com a tradição, revelador de uma sociedade que, tendo perdido as suas referências morais e éticas, encontra dificuldades em compreender seus próprios valores.

Kourouma aposta, portanto, em uma postura de valorizar a tradição e buscar nela pistas para a compreensão da identidade, porém, ativando o espírito crítico e questionador a seu respeito. Essa perspectiva vai ao encontro das reflexões de Albert Memmi acerca do papel dos artistas e intelectuais em meio à crise das nações descolonizadas. Segundo Memmi, em um momento em que era imprescindível a participação da camada intelectual para buscar soluções criativas para combater os problemas, o que se verificou, na realidade, foi o oposto; ao invés de se engajarem politicamente, os intelectuais optaram pelo silêncio, o que mergulhou as nações africanas em uma profunda “letargia cultural” (MEMMI, 2007, p. 62). Ao ceder à omissão, “eles [os intelectuais] renunciam à sua função específica, a de uma justa avaliação das atuais carências coletivas, que é a condição prévia e necessária de uma mudança salutar” (MEMMI, 2007, p. 50).

A atitude de Kourouma de lançar um olhar crítico em relação ao seu próprio povo responde a essa missão dos artistas e intelectuais de rever e questionar as suas práticas, suas tradições e seu passado, a fim Essa perspectiva vai ao encontro das reflexões de Albert Memmi acerca do papel dos artistas e intelectuais em meio à crise das nações descolonizadas. Segundo Memmi, em um momento em que era imprescindível a participação da camada intelectual para buscar soluções criativas para combater os problemas, o que se verificou, na realidade, foi o oposto; ao invés de se engajarem politicamente, os intelectuais optaram pelo silêncio, o que mergulhou as

nações africanas em uma profunda “letargia cultural” (MEMMI, 2007, p. 62). Ao ceder à omissão, “eles [os intelectuais] renunciam à sua função específica, a de uma justa avaliação das atuais carências coletivas, que é a condição prévia e necessária de uma mudança salutar” (MEMMI, 2007, p. 50). de construir um presente mais consciente. É o que constata Memmi ao afirmar o seguinte: “dizer a verdade a seu povo (...) não é aumentar sua miséria, mas, ao contrário, respeitá-lo e ajudá-lo” (MEMMI, 2007, p. 51). Assim, torna-se necessário pôr à prova a sua própria cultura e suas tradições para denunciar uma cultura manipulada em favor de benefícios próprios – conforme ilustram o personagem Yacouba e tantos líderes de guerra presentes no romance. Memmi acredita que “a cultura viva recoloca permanentemente em questão as aquisições tradicionais para experimentá-las, adaptá-las à inelutável transformação de todas as sociedades” (MEMMI, 2007, p. 63). A cultura africana deve, pois, ser fértil para responder às exigências do presente e não estéril a ponto de se dobrar aos interesses pessoais.

Em suas obras, Kourouma não se propõe a sugerir soluções para os problemas da África. No entanto, os seus textos cumprem a função de refletir sobre as tradições e o passado, sempre em íntimo diálogo com o presente. A forte presença de elementos históricos em seus romances cumpre a função de proceder a uma rememoração no sentido de Benjamin: ver as “centelhas de perigo” da história. O testemunho ficcionalizado de Birahima responde a um dever de memória que tem a finalidade de lutar contra o esquecimento.

Os inúmeros fragmentos retirados dos romances e analisados ao longo desse trabalho evidenciam que uma característica comum às obras de Kourouma é o tom pessimista. Ao pintar um retrato terrível da África contemporânea, parece não deixar nenhuma esperança respirar em seu relato. Dos acontecimentos, cada vez mais cruéis, parece surgir uma fatalidade que impossibilita algum tipo de perspectiva otimista. No entanto, ao convocar para o lugar central da narração uma criança, testemunha dos eventos narrados, o autor revela a sua confiança depositada na história.

Não se trata, pois de uma história que comemora e celebra os eventos do passado, mas de uma reconstrução histórica capaz de construir uma consciência identitária ativa, isto é, que veja em seu passado as “centelhas de perigo” do presente. Trata-se de uma história rememorativa, que não permite que se esqueça nunca das

condições limítrofes da condição humana às quais a guerra necessariamente conduz, ao levar o ser humano a cometer atrocidades como essas: “Quand un Krahn ou un Guéré arrivait à Zorzor, on le torturait avant de le tuer parce que c’est la loi des guerres tribales qui veut ça. Dans les guerres tribales, on ne veut pas les hommes d’une autre tribu différente de notre tribu” (A, p. 71).175 Ao relatar eventos terríveis como este, de modo tão natural, Kourouma cumpre com o seu dever de memória para lembrar que a busca e a problematização da identidade são importantes, porém, uma vez que a identidade é concebida a partir da destruição da alteridade, as consequências são as catástrofes relatadas no romance Allah n’est pas obligé.

A própria imagem de uma criança (in-fans) que é capaz de narrar os horrores da guerra, conceber uma terrível banalização da morte (“on mourait comme des mouches dans le Liberia de la guerre tribale” (A, p. 63)176), e ser, ela própria, responsável pela morte (“j’ai tué beaucoup de gens avec kalachnikov” (A, p. 9)177), representa um personagem inconcebível. Mais próximo da ficção do que da realidade, as crianças- soldados assemelham-se a um monstro, a um Frankenstein. No entanto, sabe-se que elas são profundamente reais e, inclusive, muito numerosas. O testemunho de Birahima é uma criação ficcional, entretanto, ele alerta para uma situação real e até mesmo corriqueira em muitos lugares. Enfim, ele representa a radicalização de um presente afetado por marcas profundas e por uma exigência urgente de identidade. É nesse sentido que se compreende a tarefa política de Kourouma, que se debruça a responder à questão “quem somos?”, para poder lançar as bases da necessária reflexão “para onde vamos?”. Em outras palavras, o testemunho ficcionalizado de Birahima, que trava um intenso diálogo com a realidade, alerta para as “centelhas de perigo” do passado e suas terríveis consequências no presente.

175“Quando um krahn ou um guerê chegava em Zorzor, torturavam antes de matar porque isso, isso é a

guerra tribal que determina. Nas guerras tribais, ninguém quer homens de outra tribo diferente da sua

própria tribo” (A, p. 73).

176“o povo morria que nem mosca na Libéria da guerra tribal” (A, p. 65). 177“matei muita gente com kalachnikov” (A, p. 11).

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 137-143)