• Nenhum resultado encontrado

O mito e a desmistificação

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 91-98)

3. Literatura menor

3.1. Desterritorialização da língua

3.1.2. O mito e a desmistificação

Como vimos na seção anterior, a escrita de Kourouma envolve uma série de procedimentos que remetem a uma valorização da cultura africana, manifestada através da convocação de elementos lexicais e culturais, bem como a presença de estratégias literárias típicas da oralidade. Entretanto, é impossível ignorar que a escrita de Kourouma também é permeada por elementos característicos da literatura ocidental, a começar pelo recurso ao idioma francês e pelo gênero literário escolhido para compor as suas obras, isto é, o romance. De acordo com a crítica literária Aurélia Mouzet, em um artigo relativo à obra de Kourouma, já citado anteriormente, o que se observa é o seguinte: “o objetivo de Kourouma não era combater o romance ocidental, mas, sobretudo, encontrar técnicas de expressão que permanecessem fiéis à identidade africana, abraçando a forma de escrita romanesca”. 97

Édouard Glissant, pensador antilhano muito sensível às relações entre línguas e culturas, propõe uma reflexão pertinente acerca dessa temática. Glissant aposta em uma “Poética da Relação”, contrapondo aquilo que ele chama de o “Mesmo” e o “Diverso”. O conceito do “Mesmo” é definido por Glissant como aquele que deseja impor a sua visão humanista e universal a todos os povos, excluindo as diferenças, postura que

97 “Le propos de Kourouma n’était pas de contrer le roman occidental, mais plutôt de trouver des

techniques d’expression qui demeuraient fidèles à l’identité africaine tout en épousant la forme de

Glissant associa ao imaginário ocidental diante do restante dos povos. Já o “Diverso” é aquele que almeja uma relação transversal entre as culturas, sem tender ao universalismo, e que tem a necessidade da presença de todos os povos, não para que eles sejam objetos a serem negligenciados, mas para que sejam postos em relação (GLISSANT, 1981).

Como o Outro é a tentação do Mesmo, o Todo é a exigência do Diverso. (...) se foi possível que o Mesmo se tenha revelado na solidão do Ser, torna-se

indispensável que o Diverso “passe” pela totalidade dos povos e das

comunidades. O Mesmo é a diferença sublimada; o O Diverso, a diferença consentida. 98

Essa atitude em relação ao Outro, em relação ao diferente, está associada ao modo como essas comunidades nasceram e se afirmaram diante dos outros. Constituídas há milênios, as comunidades denominadas por Glissant de atávicas basearam a sua origem em uma ideia de gênese, ligada à ideia de filiação a um determinado espaço: para legitimar a sua presença e o domínio de um território, essas comunidades se filiaram a ele, excluindo as outras. Segundo Glissant, estão na base desse processo de legitimação os mitos fundadores, isto é, o grito poético fundador de uma comunidade, que valida a pertença de um território a um determinado povo eleito.

O grito poético está presente no início da formação de todas essas comunidades atávicas: o Antigo Testamento, a Ilíada e a Odisseia, a Canção de Rolando, os Nibelungen, o Kalevala finlandês, os livros sagrados da Índia, as Sagas islandesas, o Popol Vuh e o Chilam Balam dos ameríndios. Hegel, no capítulo três de sua Estética, caracteriza essa literatura épica como uma literatura da consciência da comunidade, mas da consciência ainda ingênua, isto é, ainda não política, em um momento em que a comunidade não está certa de sua ordem, em um momento em que esta necessita sentir-se segura em relação a essa ordem. (GLISSANT, 2005, p. 43).

Como mostra Glissant, parafraseando Hegel, a consciência coletiva, no discurso épico, brotou de forma ainda ingênua, reunindo a comunidade em torno de seus mitos e sacralizando-os; foram necessários séculos de escrita e de amadurecimento da consciência coletiva até que se chegasse ao estágio do pensamento político em que se dessacralizaram os mitos. Do ponto de vista literário, Glissant observa que as literaturas que emergiram no seio do “Diverso” encararam o problema de não ter tempo de evoluir harmoniosamente:

98“Comme l’Autre est la tentation du Même, le Tout est l’exigence du Divers. (...) s’il était loisible que le

Même se révelât dans la solitute de l’Être, il demeure impérieux que le Divers ‘passe’ par la totalité des

peuples et des communautés. Le Même, c’est la différence sublimée; le Divers, c’est la différence

O problema contemporâneo das literaturas nacionais, tal como eu os concebo aqui, é que elas devem aliar o mito à desmistificação, a inocência primeira a uma malícia adquirida. (...) Elas devem assumir tudo de uma só vez, o combate, o militantismo, o enraizamento, a lucidez, a desconfiança de si mesmo, o absoluto de amor, a forma da paisagem, o nu das cidades, as superações e as teimosias.99

Consequentemente, as literaturas das quais fala Glissant, expostas a múltiplas influências, esbarram necessariamente em um conflito paradoxal: resgatar e sacralizar os seus mitos, ou colocá-los em xeque, ativando a suspeita e a descrença em relação a eles. Glissant aposta na “Poética da Relação” como chave para a compreensão da identidade de literaturas nesse contexto; ele acredita que a identidade dessas novas nações não deverá repetir o mesmo caminho das “culturas atávicas”, ao construir o seu ideário baseando-se na exclusão do outro, mas colocar o “Mesmo” e o “Diverso” – o Nós e o Outro – em relação. Glissant, em sua poética, não defende a soma das culturas, mas a relação entre elas, o que sempre produz um resultado imprevisível, o novo.

Essas análises de Glissant nos fornecem as bases para pensar a obra de Kourouma, atravessada ela também por essa polêmica, tanto histórica e política, quanto literária. O que observamos na escrita de Kourouma é justamente esse duplo movimento: uma busca de suas raízes para irrigar o seu estilo narrativo, com recurso à oralidade e a todas as estratégias analisadas anteriormente; mas também um espírito crítico aguçado quanto à visão que se tem de sua própria realidade. Kourouma convoca o seu imaginário africano, com seu modo de expressão, suas paisagens, seu léxico, seu ritmo narrativo; por outro lado, não é ingênuo em relação ao seu passado, narrando-o de forma crítica, com uma grande “malícia adquirida”, parodiando Glissant. A obra de Kourouma ilustra o quanto uma cultura pode irrigar a outra: a oralidade desafia o romance da tradição ocidental, enquanto que a ironia, por exemplo, desafia valores tradicionais africanos.

As reflexões de Glissant evidenciam a relação entre o gênero épico e a afirmação da identidade das comunidades. No que diz respeito ao conteúdo das narrativas de Kourouma, é possível traçar alguns paralelos com o gênero épico, sobretudo no que concerne ao fator da revisão histórica do passado, o que está relacionado, muitas vezes,

99“Le problème contemporain des littératures nationales, telles que je les conçois ici, est qu’elles doivent

allier ce mythe à cette démystification, cette innocence première à cette ruse acquise. (...) Il leur faut tout

assumer tout d’un coup, le combat, le militantisme, l’enracinement, la lucidité, la méfiance envers soi, l’absolu d’amour, la forme du paysage, le nu des villes, les dépassements et les entêtements” (GLISSANT, 1981, p. 192).

à temática da guerra. Nas epopeias tradicionais, entretanto, a guerra estava associada a uma causa coletiva, de defesa de um patrimônio, através de gestos heroicos, sendo o canto de exultação de uma vitória.

A guerra encenada no romance Allah n’est pas obligé não tem essa mesma função, e uma clara diferença reside no fato de não haver vitória nem vitoriosos. Ao final da leitura, é evidente a falta de sentido da guerra, que sacrifica grande parte de sua população, sobretudo de suas crianças, em busca de uma solução que não garante o benefício coletivo. Ao contrário, o que percebemos é que a guerra representa uma eterna luta pelo poder, em que um líder massacra o outro, sem conseguir se manter no poder, sendo, em seguida, também assassinado. Além disso, as ações dos personagens não configuram gestos heróicos, pois se resumem a uma violência gratuita, cujas razões não são compreendidas nem por eles próprios. Constatamos, portanto, a transgressão do gênero épico, uma vez que os romances de Kourouma, apesar de traçarem paralelos com as epopeias clássicas, acabam por desconstruí-las ao evidenciarem a falência do sistema representado.

Ademais, nas obras de Kourouma estão constantemente presentes os valores culturais, que, assim como nas epopeias, têm a função de manter viva a tradição de um povo. No romance Les soleils des Indépendances, observamos, diversas vezes, a importância dos “fétiches” para buscar uma solução para algum problema, para afastar algum mal, para se livrar de uma tragédia ou de uma ameaça natural que possa prejudicar a organização social ou a produção agrícola, como é o caso do harmattan100.

Les Malinkés du Horodougou le savaient bien, ils pratiquaient la divination, et pas uniquement avec les méthodes prescrites par Allah. Parce que musulmans dans le coeur, dans les ablutions, le fétiche koma leur devait être interdit. Mais le fétiche prédisait plus loin que le Coran; aussi passaient-ils

la loi d’Allah, et chaque harmattan, le koma dansait sur la place publique pour dévoiler l’avenir et indiquer les sacrifices. Et quel village malinké n’avait pas ses propres devins? Togobala, capitale de tout le Horodougou, entretenait deux oracles: une hyène et un serpent boa (SI, pp. 154-155).

Essa passagem nos revela a importância dos “fétiches” para adivinhar o futuro e, consequentemente, proteger-se das possíveis ameaças. Em seguida, o narrador descreve como os oráculos – a hiena e a serpente – livraram a aldeia de inúmeras ameaças, garantindo, inclusive, a sua sobrevivência ante a aparição de uma epidemia que dizimou

100

tantas outras aldeias da África. Podemos perceber ainda que os “fétiches” estão a serviço de uma comunidade, eles pertencem ao village, a Togobala, que os mantém para o proveito de todos e não de uma minoria.

Um pouco adiante, o narrador nos mostra que as adivinhações continuaram sendo feitas na era das independências, como podemos observar na seguinte passagem:

Il demeurait bien connu que les dirigeants des soleils des indépendances consultaient très souvent le marabout, le sorcier, le devin ; mais pour qui le faisaient-ils ? Fama pouvait répondre, il le savait : ce n’était jamais pour la communauté, jamais pour le pays, ils consultaient toujours les sorciers pour eux-mêmes, pour affermir leur pouvoir, augmenter leur force, jeter un mauvais sort à leur ennemi (SI, pp. 156-157).

Esse recurso, usado tradicionalmente em prol da comunidade, passou a ser utilizado com vistas a um objetivo totalmente diferente, isto é, ao benefício próprio. Em um primeiro momento, o narrador procede, portanto, a uma valorização dos “fétiches” e da coletividade, o que, de certa forma, os sacraliza. No entanto, ao mesmo tempo em que o narrador quer manter viva a sua tradição cultural e seus ritos ancestrais, ele reconhece que, em um determinado momento da história, esses valores foram deturpados em prol de benefícios pessoais. A sacralização vem, portanto, seguida da sua problematização: a literatura de escritores como Kourouma, para dar conta de sua realidade, acaba por “aliar o mito à desmistificação” (GLISSANT, 1981, p. 192).

No romance Allah n’est pas obligé, vemos um procedimento semelhante, sobretudo através da figura de Yacouba, um multiplicador de notas de dinheiro, como o denomina o menino Birahima, que não poderia ser reconhecido em muitas regiões, devendo ser chamado de Tiécoura. Esse personagem se aproveita da circunstância da guerra para ganhar dinheiro: “Tiécoura était pressé de partir parce que partout tout le monde disait qu’au Liberia là-bas, avec la guerre, les marabouts multiplicateurs de billets ou devins guérisseurs ou fabricants d’amulettes gagnaient plein d’argent et de dollars américains” (A, p. 36, grifos nossos)101. Além de ser um oportunista, o personagem também se atribui o título de marabout, isto é, um sábio da religião muçulmana, o que faz com que a sua profissão seja reconhecida por sua ligação com a tradição local. Para ganhar dinheiro, Yacouba aceita fazer qualquer negócio, seja ele lícito ou não, até mesmo pretender ocupar importantes posições sociais e religiosas –

101“Tiecura estava com pressa de sair de viagem porque por todo lado todo mundo estava dizendo que na

Libéria, com a guerra, os marabutos multiplicadores de notas de dinheiro ou os adivinhos curandeiros ou os fabricantes de amuletos estavam ganhando muito dinheiro e dólares americanos” (A, p. 38, grifos nossos).

marabout, féticheur – inventando preces e fabricando feitiços em troca de dinheiro e proteção: “Yacouba (...) s’est installé comme marabout multiplicateur de billets,

fabricant d’amulettes, inventeur de paroles de prières pour réussir et découvreur des sacrifices pour éloigner tous les mauvais sorts. Son travail a bien marché” (A, p. 40, grifos nossos)102.

Associado aos costumes e tradições, Kourouma insere, portanto, uma grande dose de ironia em suas narrativas. Outro evento baseado na tradição africana é a seção de “desenfeitiçamento” (“désensorcelement”). O Coronel Papa le bon, ao prender uma mulher sem nenhum motivo, inventara que ela estava enfeitiçada. O narrador explica nos seguintes termos as seções de “desenfeitiçamento” na terra de Papa le bon: “La maman du bébé alla aux femmes à désensorceler. (Chaque femme à désensorceler était enfermée nue, totalement nue, tête à tête avec le colonel Papa le bon. C’était la guerre tribale qui voulait ça.) (A, p. 72, grifo nosso).103 Esse comentário do narrador evidencia a ironia inerente à prática de “desenfeitiçamento”, o que sugere a sua desconfiança relativa a essa tradição, tendo em vista as condições a que eram submetidas as mulheres diante de Papa le bon.

Assim como a convivência do mito com a desmistificação, a lucidez e a malícia adquirida (cf. GLISSANT, 1981, p. 190-193) também se fazem presentes na literatura de Kourouma; em sua obra, convivem a tradição e a modernidade, como a presença de elementos da tradição africana, porém seguidos de um questionamento a seu respeito. O autor não se contenta com uma visão ingênua acerca da tradição de seu povo, colocando-a constantemente à prova. Na última parte deste trabalho, abordaremos novamente essa questão, analisando os efeitos da subversão da tradição na obra de Kourouma. Por ora, investigaremos, em Allah n’est pas obligé, a presença da ingenuidade e da ironia, a convivência do mito com a desmistificação.

Em sua revisão do passado, o autor escolhe até mesmo os nomes dos personagens de maneira a evidenciar a ironia da situação. Esse é caso, por exemplo, do Général Baclay, que luta junto a Doe para livrar o país dos afro-americanos. Segundo o

102 “Yacuba se instalou como marabuto multiplicador de notas de dinheiro, fabricante de amuletos,

inventor de orações para ter sucesso e descobridor de sacrifícios para conjurar todos os maus-olhados. Seu trabalho funcionou bem” (A, p. 42, grifos nossos).

103“A mãe do bebê foi para junto das mulheres que deveriam ser desenfeitiçadas. (Cada mulher que devia

ser desenfeitiçada era trancada pelada, totalmente pelada, a sós com o coronel Papai bonzinho. Era a guerra tribal que determinava isso.)” (A, p. 74, grifo nosso).

narrador, o nome original dessa personagem ficcional é Onika Dokui; ao tomar o poder, ela decide mudar seu nome para Baclay, com a seguinte justificativa: Baclay parce que cela faisait nègre noir afro-américain et, on a beau dire, être afro-américain au Liberia donnait un certain prestige, c’était mieux que d’être d’origine native, d’être nègre noire africaine indigène” (A, p. 106).104 A ironia desse comentário reside no fato de o personagem adotar um nome semelhante ao de seu inimigo para garantir certo prestígio, o que, mais uma vez, evidencia a falta de um sentido ideológico-político para a guerra.

Além da ironia quanto aos costumes e tradições, observamos também a subversão de outros elementos tipicamente associados à oralidade. Nas narrativas orais, a função fática se faz necessária pela presença física de interlocutores; em sua escrita, Kourouma cria um público imaginário e se dirige a ele à maneira de um griot. Alguns exemplos tirados dos romances supracitados ilustram esse recurso: “savez-vous ce qui advint ? (SI, p. 8), mais attention ! ” (SI, p. 149), “je vous l’ai déjà dit : pied la route signifie marcher” (A, p. 59)105. Apesar de recorrer a elementos da tradição oral, é possível perceber que a escrita de Kourouma está em sintonia com a análise feita por Glissant sobre as literaturas do “Diverso”, isto é, ao mesmo tempo em que ela apresenta elementos tradicionais, estes são trabalhados a partir de elementos da modernidade, como é o caso da ironia e da irreverência. O narrador Birahima se dirige a um interlocutor; no entanto, muitas vezes esse apelo ao seu público se faz de forma irreverente, usando inúmeros palavrões – como foi citado anteriormente - e como podemos ver no trecho a seguir: “moi non plus, je ne suis pas obligé de parler, de raconter ma chienne de vie, de fouiller dictionnaire sur dictionnaire. J’en ai marre ; je m’arrête ici pour aujourd’hui. Qu’on aille se faire foutre” (A, p. 95, grifos nossos).106

De maneira semelhante, a escrita de Kourouma subverte também o ritmo narrativo, emprestado à oralidade. No exemplo seguinte, verifica-se a repetição proposital de uma mesma estrutura, fazendo-nos pensar em um refrão que é relembrado constantemente. Nessa passagem, a repetição da expressão “ça tenait du miracle” está posta para reforçar os feitos de Marie-Béatrice. A personagem Marie-Béatrice é a madre

104 “Baclay porque esse nome parecia negro preto afro-americano e, por mais que se diga, ser afro-

americano na Libéria dava certo prestígio, era melhor que ser descendente de nativos, que ser negro, preto africano, nativo” (A, p. 109).

105“Eu já disse: pé na estrada significa andar” (A, p. 61).

106“Eu também não, não sou obrigado a falar, a contar essa minha vida cadela, a vasculhar dicionário

atrás de dicionário. Estou com o saco cheio; por hoje eu estou com o saco cheio. Para o inferno todo mundo!” (A, p. 98, grifos nossos).

superiora de uma grande instituição religiosa da Libéria. Com o início da guerra civil, sua instituição começou a ser pilhada constantemente por grupos guerrilheiros em busca de alimento ou de dinheiro. Insatisfeita e revoltada com a situação, Marie-Béatrice decide abandonar seus adereços santos e adotar como instrumento cotidiano uma kalachnikov para poder defender sua instituição dos ataques guerrilheiros.

Esse refrão, no entanto, traz consigo uma carga de ironia, pois sabemos que esse milagre ao qual o narrador faz alusão só pode acontecer pelo uso da força e das armas pela irmã Marie-Béatrice; em outras palavras, sabe-se que o fato de a instituição ainda existir não é um milagre, mas uma opção por transformá-lo em uma frente de batalha, com o uso de armas para sua proteção. O ritmo oral da narrativa está sendo usado para ironizar os feitos da irmã, como se pode observar na seguinte passagem:

Le fait que l’institution de Marie-Béatrice ait pu résister pendant quatre mois aux pillards était extraordinaire. Ça tenait du miracle. Nourrir une cinquantaine de personnes dans Monrovia pillée, abandonnée pendant quatre mois était extraordinaire. Ça tenait du miracle. Tout ce qu’avait réussi Marie-Béatrice pendant les quatre mois de siège était

extraordinaire. Ça tenait du miracle. Marie-Béatrice avait fait des actes miraculeux. Elle était une sainte, la sainte Marie-Béatrice (A, p. 141, grifos nossos).107

Os exemplos tirados do romance apontam para uma convivência do mito e da desmistificação, da tradição e da suspeita, da ingenuidade e da ironia. Além dessas dualidades verificadas no romance, há ainda uma questão linguística de grande interesse para a análise da obra Allah n’est pas obligé: a presença de quatro dicionários que servem de mediação para que o narrador possa circular entre duas línguas e duas culturas. A exploração das definições pretensamente retiradas dos dicionários revela a incapacidade da linguagem em reproduzir o real, conforme veremos na seção a seguir.

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 91-98)