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Personagens históricos e personagens ficcionais

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 40-49)

2. Construção político-identitária

2.1. Percepções do passado e do presente

2.1.3. Personagens históricos e personagens ficcionais

Através do mecanismo de imbricar os tempos narrativo e histórico, Kourouma adota duas estratégias: dar aos personagens nomes que correspondem à sua existência real e criar personagens fictícios. Para ilustrar essa estratégia, retomemos dois

personagens já citados: Taylor e Colonel Papa le bon. O primeiro personagem leva o mesmo nome de um dos presidentes da Libéria, Charles Taylor, que foi conhecido por saquear os cofres públicos, fugir para os Estados Unidos e depois retornar à Libéria para ocupar funções políticas estratégicas, enquanto que o segundo é um personagem ficcional. Na narrativa, porém, as referências ao real e ao ficcional estão imbricadas, em um jogo que provoca um duplo movimento: a ficcionalização da história e o efeito de real produzido pelos elementos ficcionais, como se nota nas citações a seguir:

Le colonel Papa le bon était le représentant du Front national patriotique,

en anglais National Patriotic Front (NPFL) à Zorzor. C’était le poste le plus avancé au nord du Liberia. Ça contrôlait pour le NPFL l’important trafic

venant de la Guinée. Ça percevait les droits de douane et sur veillait les entrées et sorties du Liberia. Walahé ! Le colonel Papa le bon était un grand

quelqu’un du Front national patriotique. Un homme important de la faction

de Taylor (A, pp. 64-65)29.

Nesse trecho, notamos a referência ao NPFL, uma das facções da guerra civil na Libéria, liderada por Charles Taylor. Encontramos também três referências espaciais, a Libéria, a Guiné e o vilarejo de Zorzor, localidades que existem no mapa. O principal personagem referido, no entanto, não tem uma referência externa real, sendo criação do autor. O Colonel Papa le bon terá uma grande importância no romance, pois a sua existência modifica diretamente o rumo da trajetória do protagonista, e muitas páginas lhes serão dedicadas, para contar a sua história, seu poder, suas atividades e, por fim, sua morte. Já o personagem Taylor não está envolvido diretamente com as ações do narrador Birahima, mas a sua história serve de pano de fundo para esclarecer a situação política real da Libéria.

Na referência a Taylor, o narrador relata rapidamente a sua trajetória, contando as suas negociatas na Libéria e o esvaziamento dos cofres públicos; em seguida, tomamos conhecimento de sua fuga para os Estados Unidos, onde foi preso. Tendo conseguido escapar, encontrou apoio na Líbia, junto a Kadhafi, onde aprendeu a técnica da guerrilha; finalmente, Taylor buscou apoio junto a Compaoré (Burkina Faso) e Houphouët-Boigny (Costa do Marfim), ganhando poder, armamento e soldados, para que voltasse à Libéria com o intuito de desestabilizar o governo de Samuel Doe. Mais

29 “O coronel Papai bonzinho era o representante da Frente Patriótica Nacional, em inglês National

Patriotic Front (NPFL) em Zorzor. Era o posto mais avançado ao norte da Libéria. Ele controlava para a NPFL o volumoso tráfico que vinha da Guiné. Ele recebia as taxas de alfândega e vigiava as entradas e saídas da Libéria. Walahê! O coronel Papai bonzinho era um figurão da Frente Patriótica Nacional. Um homem importante do partido de Taylor” (A, p. 67).

uma vez, o trecho referente a essa personalidade se aproxima do modo discursivo operado pela história; no entanto, o narrador insere, em seu discurso, elementos que mostram ao leitor que se trata de uma ficção.

Il s’est enfui en Libye où il s’est présenté à Kadhafi comme le chef intraitable de l’opposition au régime sanguinaire et dictatorial de Samuel Doe. Kadhafi le dictateur de Libye qui depuis longtemps cherchait à

déstabiliser Doe l’a embrassé sur la bouche. (...) Et ce n’est pas tout : il l’a

refilé à Compaoré, le dictateur du Burkina Faso, avec plein d’éloges comme

si c’était un homme recommandable. Compaoré, le dictateur du Burkina,

l’a recommandé à Houphouët-Boigny, le dictateur de la Côte-d’Ivoire, comme un enfant de choeur, un saint. Houphouët qui en voulait à Doe pour avoir tué son beau fils fut heureux de rencontrer Taylor et l’embrassa sur la bouche (A, pp. 65-66, grifos nossos)30.

Primeiramente, observamos elementos característicos do relato oral, como a expressão “ce n’est pas tout” e a repetição da expressão “et l’embrassa sur la bouche”. Em seguida, podemos notar que esse trecho é repleto de adjetivos, que apontam para um modo discursivo que não se quer totalmente objetivo, uma vez que os adjetivos carregam uma carga semântica subjetiva, com nuances que nos permitem classificar os substantivos como positivos ou negativos, levando-nos a um juízo de valor e não a uma neutralidade diante dos fatos. Ademais, nota-se a ironia do narrador em sua descrição dos regimes dos líderes inimigos, Taylor e Samuel Doe: o primeiro é caracterizado apenas positivamente – “plein d’éloges”, “recommendable”, “enfant de choeur”, “saint” – enquanto que o segundo é marcado por uma adjetivação negativa – “sanguinaire”, “dictatorial.

Essa operação de adotar um ponto de vista político para denegrir a imagem da oposição é repetida algumas vezes no romance; no entanto, a narrativa não adota sempre uma mesma perspectiva; com a fluidez diegética típica do estilo de Kourouma, o narrador toma a voz ora de Taylor, ora de Doe, e também a de Prince (grandes líderes da guerra) para justificar os próprios atos e denunciar os dos outros. No final, concluímos que o intuito de Kourouma é mostrar que todos os chefes de guerra adotam o mesmo discurso: salvar o povo, culpando as outras facções pela guerra; porém, no fundo, são todos igualmente responsáveis pela guerra, repetindo as mesmas atrocidades.

30“Ele fugiu para a Líbia onde se apresentou a Kadafi como chefe da oposição ao regime sanguinário e

ditatorial de Samuel Doe. Kadafi, o ditador da Líbia, que há muito tempo tentava desestabilizar Doe, beijou ele na boca (...) E isso não é tudo: ele despachou ele para Compaoré, o ditador do Burkina Fasso, com um monte de elogios como se fosse um homem recomendável. Compaoré, o ditador do Burkina, recomendou-o a Houphouët-Boigny, o ditador da Costa do Marfim, como se fosse um verdadeiro anjo, um santo. Houphouët, que tinha raiva de Doe por ele ter matado seu genro, ficou feliz por encontrar

Dessa maneira, Kourouma convoca diversos elementos históricos, porém, associa a eles componentes literários, de modo a proceder a uma ficcionalização da história, que mescla diversos pontos de vista, tempos e espaços.

Por outro lado, opera-se também o procedimento inverso: a criação de personagens imaginários, que estão de tal modo integrados à vida política do país, que se assemelham a personagens reais. Esse é o caso, por exemplo, do personagem Colonel Papa le bon, líder local da facção NPLF. O narrador conta a sua história, mostrando como ele se tornara chefe de guerra: ele foi também criança de rua, mas foi resgatado por um grupo de freiras que o enviaram aos Estados Unidos para estudar. Papa le bon decide se ordenar padre e voltar à Libéria; ao chegar à sua terra natal, ele se depara com crianças de rua, relembra a sua infância e decide ajudá-las. Entretanto, o líder Samuel Doe descobre a sua iniciativa, manda assassinos para atacá-lo e Papa le bon se vê obrigado a pedir auxílio a Taylor, que o nomeia responsável pela arrecadação das tarifas alfandegárias da região fronteiriça de Zorzor.

Como o seu nome indica, o personagem é descrito pelo narrador através de uma adjetivação positiva, o que se verifica nos fragmentos a seguir:

Le colonel Papa le bon dans sa majesté a fait un signe (A, p. 58, grifo nosso)31;

il est venu me caresser la tête comme un vrai père” (A, p. 58, grifo nosso)32;

il y avait une pension de jeunes filles que le colonel Papa le bon dans sa

grande bonté avait fait construire (A, p. 78, grifo nosso)33;

autrement, il sera pardonné par le colonel Papa le bon. Parce que le colonel Papa le bon avec sa canne pontificale est la bonté elle-même” (A, p. 81,

grifo nosso)34.

Todas essas referências ao personagem evidenciam o deslumbramento de Birahima diante do chefe de guerra, que se refere a ele através de palavras e expressões de cunho positivo.

O narrador descreve ainda, com detalhes, todas as tarefas realizadas por Papa le bon na região por ele controlada. Ele se ocupa de todos os domínios da vida da comunidade: no âmbito econômico, as taxas de alfândega; no aspecto religioso, a formação e os sermões; na instância jurídica, o julgamento de todos os condenados; no

31“O coronel Papai bonzinho, em toda sua majestade, fez um sinal” (A, p. 60, grifo nosso). 32“ele veio me fazer carinho na cabeça como um verdadeiro pai” (A, p. 60, grifo nosso).

33“Tinha uma pensão de meninas que o coronel Papai bonzinho em sua grande bondade tinha mandado

construir” (A, p. 81, grifo nosso).

34“Do contrário, ele seria perdoado pelo coronel Papai bonzinho. Porque o coronel Papai bonzinho com

âmbito burocrático, a assinatura dos papéis e documentos. Evidentemente, o Coronel lida com todos esses assuntos segundo a sua vontade e os seus próprios critérios, o que leva o narrador a resumir o seu papel da seguinte forma: “À Zorzor, le colonel Papa le bon avait le droit de vie et de mort sur tous les habitants. Il était le chef de la ville et de la région et surtout le coq de la ville. À faforo ! Walahé (au nom d’Allah!)” (A, p. 71, grifo nosso)35. Consequentemente, a atitude dos habitantes diante de seu poder é de submissão e dependência: “Tout le monde se leva et se décoiffa parce que c’était lui le chef, le patron des lieux (...) Papa le bon fit trois fois le tour des corps et vint s’asseoir.

Tout le monde s’est assis et a écouté comme des couillons au carré” (A, p. 61, grifos

nossos)36.

Diante de tal submissão, poderíamos nos questionar sobre o modo segundo o qual Papa le bon era capaz de legitimar o seu poder, a ponto de fazer com que todos o respeitassem incondicionalmente; certamente, o seu poder é agenciado pelo medo, mas também pela sua imagem:

Le colonel Papa le bon portait une mitre de cardinal. Le colonel Papa le bon

s’appuyait sur une canne pontificale, une canne ayant au bout une croix. Le colonel Papa le bon tenait à la main gauche la Bible. Pour couronner le tout, compléter le tableau, le colonel Papa le bon portait sur la soutane

blanche un kalachnikov en bandoulière. L’inséparable kalachnikov qu’il traînait nuit et jour et partout. Ça, c’est la guerre tribale qui voulait ça (A,

p. 57, grifos nossos)37.

Papa le bon jamais se distancia de sua arma, o que revela que, se necessário, o recurso à força é sempre possível. No entanto, além desse aspecto, ele legitima também o seu poder pela representação religiosa ostentada em seu modo de vestir, dotando-se de elementos que lhe garantem a autoridade religiosa, como o crucifixo, a Bíblia, a mitra de cardeal e a batina branca.

35“À Zorzor, o coronel Papai bonzinho tinha direito de vida e morte sobre todos os moradores. Ele era o

chefe da cidade e da região e sobretudo o verdadeiro galo do terreiro. Faforo! Walahê (em nome de Alá)!” (A, pp. 73-74, grifo nosso).

36“Todo mundo se levantou e tirou o chapéu porque ele era o chefe, o patrão do pedaço. (...) Papai

bonzinho deu três voltas no corpo e foi sentar. Todo mundo sentou e ficou ouvindo que nem uns babacas” (A, pp. 63-64, grifos nossos).

37 “O coronel Papai bonzinho usava uma mitra de cardeal. O coronel Papai bonzinho se apoiava numa bengala pontifical, uma bengala que tinha uma cruz na ponta. O coronel Papai bonzinho segurava na mão esquerda a Bíblia. Para coroar tudo isso, para completar o quadro, o coronel Papai bonzinho usava por cima da batina branca uma kalachnikov pendurada a tiracolo. A inseparável kalachnikov que ele arrastava dia e noite por todo lado. Isso, isso é a guerra tribal que determina” (A, p. 60, grifos nossos).

Além da arma e dos adereços religiosos, o narrador revela outro modo de legitimação do poder do personagem: o discurso. Enquanto líder religioso, Papa le bon é responsável também pelos rituais, nos quais ele procede a um sermão:

Ça portait sur la trahison, sur les fautes des autres chefs de guerre : Johnson, Koroma, Robert Sikié, Samuel Doe. Ça portait sur le martyre que

subissait le peuple libérien chez ULIMO (United Liberian Movement of Liberia), Mouvement uni de libération pour le Liberia, chez le LPC (le Liberian Peace Council) et chez NPFL-Koroma (A, p. 70, grifos nossos)38.

Através de seu discurso político travestido de discurso religioso, o Coronel persuade os habitantes da região a culpar os outros líderes de facção pela guerra, veiculando a ideia de que os seus atos e seu exército estavam apenas a serviço do bem comum.

A análise da construção e caracterização dos personagens Taylor e Colonel Papa le bon ilustram a estratégia empreendida por Kourouma ao longo de todo o romance, isto é, o jogo entre o real e o ficcional. Nos capítulos subsequentes, esse procedimento se repete e entram em cena diversos personagens com referência externa ao texto, como é o caso de Samuel Doe, Prince Johnson, Foday Sankoh e Johnny Koroma, e seus respectivos representantes locais, General Baclay, Marie-Béatrice, General Tieffi e Sourougou, personagens ficcionais.

Esse jogo entre referência ao real e criação ficcional funciona como se colocássemos um microscópio em alguma parte dos países em questão e compreendêssemos como a macrorrealidade incide sobre a microrrealidade. Em outras palavras, podemos dizer que o autor sai do plano da política internacional para mostrar como ela afeta os lugares e as pessoas em menor instância. Por meio do personagem Taylor, o narrador introduz elementos que permitem uma análise política da situação vigente no país, levando o leitor a ler, de forma crítica, a realidade macroscópica de alguns países africanos, situando os eventos narrados no espaço e no tempo histórico.

No que concerne à elaboração de um personagem fictício como o Colonel Papa le bon e tantos outros que serão analisados posteriormente, cabe ao autor uma tarefa diversa. Pois se Kourouma se alimenta de fontes históricas – como a condição de vida nos vilarejos dizimados, o meio através do qual os chefes locais legitimam o seu poder, as ações das crianças-soldados, o requinte de crueldade das mortes –, elas não são

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Era um tal de falar de traição, de todos os erros dos outros chefes de guerra : Johnson, Koroma, Robert Sikié, Samuel Doe. Era um tal de falar do martírio que sofria o povo liberiano com o ULIMO (United Liberation Movement for Democracy in Liberia), Movimento Unido de Libertação pela Democracia na Libéria e com o LPC (Liberian Peace Council), Conselho Liberiano de Paz e com a NPLF-Koroma. (A, p. 72, grifos nossos).

suficientes para dar conta de todos os pormenores da guerra. Para elaborar personagens que deem vida a essa microrrealidade, de modo que ela seja verossímil, é preciso nutrir- se de outras fontes. Por isso, o trabalho do autor opera também sobre a memória coletiva: os testemunhos que lhe são contados tornam-se a matéria prima para a caracterização dos personagens, dos lugares, das ações.

O testemunho em primeira pessoa tem caráter documental uma vez que se baseia no discurso de alguém que viu e que viveu a realidade sobre a qual escreve. O lugar do testemunho é valorizado, na medida em que se concebe a história como fruto de reconstruções do passado nas quais convivem diversos pontos de vista. O discurso histórico, muitas vezes, é construído a partir da perspectiva dos dominadores, e outras visões do passado são essenciais, na medida em que se percebe a necessidade de criar uma nova forma de lidar com os acontecimentos transcorridos. Em uma entrevista sobre a importância da memória na construção da história, o crítico Márcio Seligmann-Silva afirma o seguinte:

em um século de catástrofes com o genocídio armênio, Auschwitz, Hiroshima, os gulags de Kolima, as ditaduras sangrentas que marcaram a América Latina, o massacre dos Tutsis e tantos outros genocídios, novas modalidades de se relacionar com os mortos e com o passado precisavam ser desenvolvidas (SELIGMANN-SILVA, 2010).

Como afirmamos anteriormente, a reflexão sobre a história se tornou fundamental no âmbito da discussão identitária de diversos povos; é preciso, pois, compreendê-la para poder reconfigurá-la de modo a deslocar visões eurocêntricas e discursos de dominação ocidental em meio a povos que constituem a sua identidade no entrecruzamento, muitas vezes conflituoso, de culturas ocidentais e povos ancestrais. Nesse contexto, o testemunho passa a ocupar uma importante função, pois ele contribui para a elaboração de uma concepção histórica a partir de diversos pontos de vista, inclusive, daqueles que, em geral, não têm espaço nos discursos históricos oficiais.

Como afirma Paul Ricoeur, o testemunho é o ingresso da memória na vida pública (RICOEUR, 2010, p 139). Ao refletir sobre a relação entre história e memória, Ricoeur analisa de que modo as lembranças pessoais se articulam com o discurso histórico. As lembranças podem ser involuntárias, mas também resultado de uma evocação, de um esforço de memória; para que a matéria dessa recordação possa fazer parte de um arquivo, é preciso que ela passe de sua instância imagética para a fase declarativa. Assim, na medida em que as lembranças passam para o âmbito discursivo,

elas podem ganhar relevância histórica. No entanto, cabe observar que as recordações individuais ganham um sentido histórico na medida em que são consideradas dentro de um contexto social.

Em sua obra “A Memória Coletiva”, o sociólogo francês Maurice Halbwachs sustenta a teoria de que o mundo não é percebido de forma individual, mas a partir das representações coletivas. As nossas lembranças se confundem e se constroem não apenas a partir de nossas impressões, mas também daquilo que os outros nos dizem sobre nós mesmos. Segundo Halbwachs, não lembramos sozinhos, e é justamente essa teia de lembranças que forma a memória coletiva. Uma memória individual que temos de algum acontecimento ganha uma nova significação quando colocada sob o ponto de vista coletivo:

para que atinja realidade histórica atrás da imagem, ela [a lembrança] terá de sair de si mesma, terá de ser posta no ponto de vista de um grupo, para que se possa ver como tal fato marca uma data – porque entrou no círculo das preocupações, dos interesses e das paixões nacionais (HALBWACHS, 2003, p. 79-80).

Deparamo-nos, portanto, com a polaridade entre a memória individual – as lembranças pessoais e as impressões subjetivas – e a memória coletiva – que dá um sentido social à memória. Ricoeur, ao analisar a memória individual à luz da fenomenologia, e a memória coletiva à luz da sociologia, conclui sugerindo um intermediário entre os dois polos: a memória dos nossos próximos, ou seja, daquelas pessoas com as quais compartilhamos a nossa existência e com quem compartilhamos nossas visões do mundo: “portanto, não é apenas com a hipótese da polaridade entre memória individual e memória coletiva que se deve entrar no campo da história, mas com a de uma tríplice atribuição da memória: a si, aos próximos, aos outros.” (RICOEUR, 2010, p. 142).

No romance de Kourouma, a voz narrativa dá seu testemunho: o personagem Birahima começa o seu relato se apresentando e se propõe a contar, em primeira pessoa, a sua história, as suas memórias e as suas percepções relativas ao passado vivido. Esses testemunhos, no entanto, são ficcionalizados, pois não podemos atribuir a esse personagem uma referência na realidade externa aos romances.

Não se trata, portanto, de um testemunho no qual há uma coincidência entre o narrador e o autor – como é o caso de uma autobiografia. Aqui, se o autor escreve sobre uma realidade que não lhe é alheia, pois fala de sua terra e de eventos pelos quais ela

passou ou ainda passa, não se pode dizer que os fatos narrados tenham sido vividos em primeira pessoa. Como se trata de situações imaginárias, contadas por um narrador fictício, em um contexto cujo referente externo é de conhecimento de todos – as guerras -, é preciso que os relatos tenham caráter de verossimilhança para que façam sentido na construção do romance.

O conteúdo narrativo, por mais fictício ou metafórico que seja, dialoga sempre com a realidade; ele se baseia, portanto, na memória coletiva que um determinado povo

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 40-49)