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O dever de memória e a subversão da tradição

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 125-137)

3. Literatura menor

3.2. Minoridade etária: “destutela” e descolonização

3.2.3. O dever de memória e a subversão da tradição

De acordo com a seção anterior, verificamos que a minoridade etária se faz constantemente presente no romance, uma vez que Kourouma opta por focalizar as guerras tribais africanas a partir do prisma de uma criança. Essa criança não encarna um modelo de infância prototípica e, conforme analisamos, apresenta características particulares. Além de ser “o personagem mais célebre deste final de século” (A, p. 91), como diz o próprio narrador, a criança tem ainda uma função central no jogo entre realidade e ficção, entre história e memória, como veremos a partir de agora.

As crianças-soldados, movidas pelo desejo de sobreviver, engajam-se na guerra; uma vez enquadradas enquanto soldados, passam a usar armas, a usar de violência e crueldade em seus atos, não mais questionando o valor da vida e matando sempre que necessário for – ou mesmo sem necessidade alguma; acostumadas a esse modo de vida, e sem saber fazer nada diferente, passam a desejar ser soldados, para não ter que enfrentar a precariedade da guerra e da falta de recursos de seu país. Essa situação paradoxal das crianças-soldados, que são ao mesmo tempo reféns, vítimas e agentes da violência, revela o absurdo da guerra, que rouba a infância de suas próprias crianças em lutas cujas causas elas próprias desconhecem. As causas dessa guerra, na realidade, são fruto de eventos históricos complexos que envolvem a violenta colonização e a

problemática descolonização, que não foi capaz de eliminar antigas rivalidades, gerando novas disputas pelo poder.

Como vimos, a obra tem mais de um nível diegético e o limite entre eles não é claro. Na realidade, essas vozes narrativas estão intimamente ligadas ao tempo histórico, em que o nível extradiegético se pronuncia para esclarecer a conjuntura política, remontar ao passado para encontrar as causas da guerra, retomar eventos históricos, enfim, para ser um porta-voz da história. No entanto, a voz narrativa de Birahima manifesta-se constantemente para lembrar-nos do presente. Birahima interrompe as explicações e divagações acerca dos eventos passados para mostrar as duras consequências que eles originaram no tempo presente.

A obra de Kourouma está muito ligada à história, e a sua tarefa foi muitas vezes elogiada pelo fato de proceder a uma revisão do passado de modo a por em relevo uma visão de passado alternativa à perspectiva do dominador. Como vimos na seção anterior, neste que é seu último romance completo publicado em vida, Kourouma concede a voz a uma criança. Essa escolha nos fornece uma chave de leitura para a importância da história na obra de Kourouma: a história é entendida por ele por sua relação com o presente.

Jeanne-Marie Gagnebin, em seu livro “Lembrar escrever esquecer”, discute a importância e a finalidade da disciplina historiadora. Gagnebin concebe a história como uma luta contra o esquecimento; nesse sentido, a história responde a um dever de memória que consiste em não apagar eventos do passado, isto é, em prevenir que determinados eventos caiam no esquecimento.

A visão de Gagnebin está plenamente em sintonia com a reflexão de Walter Benjamin a respeito da história formulada em seu texto “Sobre o conceito de história”. Nesse ensaio, Benjamin afirma o seguinte: “articular historicamente o passado não significa ‘conhecê-lo como de fato foi’. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo” (BENJAMIN, 1985, p. 224). A história, concebida nesse sentido, não pode ser desvinculada do presente, pois a sua finalidade se relaciona justamente com o presente: “Entendo com isso que a verdade do passado remete mais a uma ética da ação presente que a uma problemática da adequação (pretensamente científica) entre ‘palavras’ e ‘fatos’” (GAGNEBIN, 2006, p. 39). Assim como discutimos no primeiro capítulo deste trabalho, Gagnebin reconhece a semelhança

da história com a ficção, visto que ambas lançam mão da escrita e recorrem à narração. Todavia, o que interessa a Gagnebin não é discutir a cientificidade da disciplina historiadora, mas compreender o sentido de se rever o passado, isto é, compreender a necessidade da rememoração.

A rememoração também significa uma atenção precisa ao presente, em particular a essas estranhas ressurgências do passado no presente, pois não se trata somente de não esquecer o passado, mas também de agir sobre o presente. A fidelidade ao passado, não sendo um fim em si, visa à transformação do presente. (GAGNEBIN, 2006, p. 55).

Nesse sentido, em um contexto como o da guerra, o dever de memória se torna ainda mais necessário, pois a guerra representa justamente uma “centelha de perigo”, de que fala Benjamin, que não deve ser esquecida para não ser repetida. Por outro lado, muitos daqueles que poderiam ajudar a compor a memória coletiva, perderam a sua vida nos conflitos, morrendo sem poder falar. Nesse sentido, o testemunho dos sobreviventes se torna crucial para que o historiador possa cumprir a sua tarefa de relatar o passado, alertando para as “centelhas de perigo” que ameaçam o presente.

Enquanto Homero escrevia para cantar a glória e o nome dos heróis e Heródoto, para não esquecer os grandes feitos deles, o historiador atual se vê confrontado com uma tarefa também essencial, mas sem glória: ele precisa transmitir o inenarrável, manter viva a memória dos sem-nome, ser fiel aos mortos que não puderam ser enterrados. (...) Tarefa altamente política: lutar contra o esquecimento e a denegação é também lutar contra a repetição do horror (que, infelizmente, se reproduz constantemente). Tarefa igualmente ética e, num sentido amplo, especificamente psíquica: as palavras do historiador ajudam a enterrar os mortos do passado e a cavar um túmulo para aqueles que dele foram privados (GAGNEBIN, 2006, p. 47).

A partir dessa concepção acerca da história, a figura da criança na obra de Kourouma se torna ainda mais interessante, uma vez que um dos elementos que ajudam a estruturar e a escrever a história é o testemunho. No romance Allah n’est pas obligé, a voz da criança enquanto narradora dá ao relato um teor de veracidade, uma vez que fala sobre o que ela viu e viveu. Nas primeiras páginas do romance, essa dimensão vem à tona, a partir da seguinte frase, retomada, aliás, na contra capa do livro: “Voilà ce que je suis; c’est pas un tableau réjouissant. Maintenant, après m’être presenté, je vais vraiment, vraiment conter ma vie de merde de damné” (A, p. 10, grifos nossos). O menino se propõe, pois, a contar a sua vida, o que faz com que seu relato adquira um teor de veracidade propiciado pelo seu testemunho ocular. Birahima, tendo visto e vivenciado a guerra, será capaz de relatar as experiências pelas quais passou, transmitindo informações que, muitas vezes, são ocultadas pelos meios de comunicação.

Além de se apresentar e de se disponibilizar a contar a sua vida, outros elementos de seu relato remetem a um testemunho, uma vez que o menino situa os eventos narrados temporalmente, precisando informações como as datas, por exemplo: “On était en juin 1993” (A, p. 47). Como vimos anteriormente, inúmeras são as referências a personagens com referência externa ao texto, como Taylor, Samuel Doe, Foday Sankoh e tantos outros nomes de líderes políticos dos países africanos. Desse modo, o relato de Birahima se articula diretamente com a história. Como a história é uma disciplina que tem a finalidade de relatar objetivamente os eventos passados, assim também somos levados a interpretar as palavras de Birahima, isto é, por sua relação direta com a realidade histórica.

O teor de veracidade de seu relato se verifica ainda pela riqueza de detalhes com que o menino conta eventos reais passados na África negra, como é o caso, por exemplo, da tomada de poder por parte de Samuel Doe, ou o eventos dos “manches longues et manches courtes” comandado por Foday Sankoh. Ao pesquisarmos a história da África em discursos históricos, encontramos esses eventos narrados pelo menino de forma surpreendentemente semelhante. Sabe-se que Birahima é um personagem ficcional e que as suas desventuras são fruto da criação literária de Kourouma; no entanto, a tomada de palavra do menino para dar testemunho de suas vivências na guerra tece um profundo jogo com o real e com a história.

Flávia Nascimento, tradutora do romance em português, investiga a figura de Birahima e acredita que a opção de centrar a narração em torno da criança não é fortuita: “por sinal, a representação do espaço africano pós-colonial – o das guerras tribais liberianas e serra-leonenses – encontra na criança-soldado em ação sua personagem mais vigorosa: uma personagem completamente verdadeira, evidentemente real e, no entanto, escandalosamente inconcebível” (NASCIMENTO, 2010, p. 61). Essa constatação dialoga bastante com um comentário, tecido pelo próprio escritor, Ahmadou Kourouma, em uma entrevista concedida a Thibault Le Renard e Comi M. Toulabor, ao falar dos ditadores africanos:

Les comportements des dictateurs africains sont tels que les gens ne les

croient pas ; ils pensent que c’est de la fiction. Leurs comportements

dépassent en effet souvent l’imagination. Les dictateurs africains se comportent dans la réalité comme dans mon roman. Nombre de faits et

que les lecteurs les prennent pour des inventions romanesques. C’est terrible! (KOUROUMA, 1999, p. 179).159

Do mesmo modo que Kourouma caracteriza as ações dos ditadores africanos como aparentemente ficcionais, a figura da criança-soldado parece ser inconcebível, conforme analisa Flávia Nascimento. Ambas parecem estar mais conformes à ficção do que à realidade, porém, ambas são reais e existiram/existem na história.

Assim como afirma Flávia Nascimento, a missão de Birahima é, portanto, altamente política: “Birahima aparece então como uma alegoria do escritor-testemunha, aquele que, implicado em seu tempo e no mundo que o rodeia, assume uma tarefa altamente política: lutar contra o esquecimento a fim de não permitir a repetição do horror” (NASCIMENTO, 2010, pp. 52-53). Essa tarefa tão complexa é, pois, delegada a uma criança, ao in-fans, que, etimologicamente, remete “[à]quele que não fala”. Ao longo de toda a narrativa, percebemos que Birahima é, ao contrário, aquele que fala, a voz do romance. Segundo Flávia Nascimento, o momento de sua tomada de palavra é justamente a sua passagem para a vida adulta, momento em que Birahima passa do estágio de phonè para logos.

É pois o momento em que se efetua, ao mesmo tempo, a passagem da infância para a vida adulta, da voz para a linguagem, do phonè para o logos

(Cf. Agamben, 2005, p.9-18), do estado de não fala, enfim – pois é preciso lembrar que o vocábulo latino in-fans quer dizer, etimologicamente, “aquele

que não fala” –, ao estado de tomada da palavra. (NASCIMENTO, 2010, p.

52).

De acordo com o pensamento de Giorgio Agamben, desenvolvido em sua obra Infância e História: destruição da experiência e origem da história (1978), citado por Flávia Nascimento, a infância se faz presente por sua relação com a experiência, sendo compreendida como uma “etapa da experiência” ou como a única forma autêntica de experiência, através da sua relação com a linguagem. Agamben se volta para a reflexão acerca da “expressão primeira” da experiência, o que estaria relacionado a uma origem, a um ponto de partida em que a “expressão humana seria ainda muda”, e a experiência consistiria precisamente na passagem da mudez à palavra, à voz, à linguagem, pois é apenas através da linguagem que o homem se constitui enquanto sujeito (cf. AGAMBEN, 2008, pp. 48-58). Somente através da linguagem o sujeito é capaz de se

159“Os comportamentos dos ditadores africanos são tais que as pessoas nem acreditam; elas pensam que

se trata de uma ficção. Seus comportamentos, de fato, ultrapassam frequentemente a imaginação. Os ditadores africanos se comportam na realidade como no meu romance. Inúmeros fatos e eventos que eu conto são verdadeiros. Mas eles são de tal forma impensáveis que as pessoas pensam que são invenções

constituir como “eu”, como um “sujeito linguístico” (AGAMBEN, 2008, p. 57). Nesse ponto reside a relação entre experiência e infância, isto é, o limite entre um momento em que o ser humano não fala, é mudo, e a sua tomada de voz, sua aquisição de linguagem. Nesse caso, Agamben se refere ao que prefere chamar de in-fante.

A constituição do sujeito na linguagem e através da linguagem é

precisamente a expropriação desta experiência “muda”, é, portanto, já sempre “palavra”. Uma experiência originária, portanto, longe de ser

algo subjetivo, não poderia ser nada além daquilo que, no homem, está antes do sujeito, vale dizer, antes da linguagem: uma experiência

“muda” no sentido literal do termo, uma in-fância do homem, da qual

a linguagem deveria, precisamente, marcar o limite. (AGAMBEN, 2008, p. 58).

O sujeito da linguagem é, portanto, o fundamento tanto da experiência quanto do conhecimento, e o problema da experiência é indissociável da linguagem: a experiência pura seria aquela que ainda é muda, e a constituição do sujeito através da linguagem é exatamente a expulsão dessa experiência muda. A linguagem marca, portanto, o limite dessa experiência pura, e a in-fância é o silêncio do sujeito, “um ‘fluxo de consciência’ intangível e irrefreável como fenômeno psíquico originário” (idem).

Agamben, no entanto, não concebe a infância como uma etapa cronológica, que precederia a linguagem e que terminaria no exato momento em que se começaria a falar: não se trata de um “paraíso que é perdido” no momento em que se adquire a linguagem, “mas coexiste com a linguagem, constitui-se, aliás, ela [a experiência, a infância que está aqui em questão] mesma na expropriação que a linguagem dela efetua, produzindo a cada vez o homem como sujeito” (AGAMBEN, 2008, p. 59). Trata-se de um movimento ininterrupto e que se repete a cada experiência do homem com a perda e a busca da linguagem.

Essa experiência com a linguagem se faz presente em qualquer criação artística e literária, na qual se convive constantemente com a perda da linguagem para poder atingir níveis outros de linguagem; trata-se de um trabalho de busca de novas linguagens para atingir o exigente desafio de dizer aquilo que não se é capaz de dizer, isto é, ir além das palavras, ser capaz de transmitir aquilo que não conseguimos recorrendo apenas a um tipo de linguagem, devendo envolver nessa tarefa todo o corpo, o gesto, o ritmo, o som, as imagens, isto é, um constante voltar à infância.

Birahima toma a palavra quando está em um caminhão conversando com seu primo Mamadou, após descobrir que sua tia falecera e após ter passado alguns anos

engajado como criança-soldado na guerra tribal; nesse momento, ele deixa de ser in- fans e passa para um estágio articulado da linguagem, assumindo a função de narrar, de dar voz a um relato. Assim, acontece uma morte metafórica da infância, que passa da experiência muda à fala. O testemunho ficcionalizado de Birahima representa a imensidade de sujeitos sem voz, as outras in-fans espalhadas pelo mundo, as inúmeras crianças-soldados que não podem falar.

O relato de Birahima, além de representar um jogo entre a realidade e a ficção, simboliza ainda a morte metafórica da infância (no sentido de in-fans), mas também testemunha sobre as inúmeras mortes, no sentido literal, encontradas no romance. O seu relato surge, portanto, no contexto da guerra como um grito contra a morte, isto é, como a voz de uma testemunha da realidade ao seu redor. Diante de tantas mortes concretas, Birahima representa o sobrevivente: aquele que poderia ter morrido no lugar de outro, mas ainda tem vida. Sabe-se que muitas vidas são eliminadas em contextos como esse e, não raro, os únicos registros de sua existência aparecem sob a forma de números; não se sabe nem o nome das vítimas de guerra, mas apenas o número, a quantidade.

O sobrevivente é, portanto, aquele que ainda pode falar, ainda pode dar o seu testemunho, no lugar daqueles que morreram sem falar. Como afirma Hannah Arendt, “sempre haverá um sobrevivente para contar a história” (Arendt apud Lyotard, p. 77), e, a essa sobrevivência, associa-se responsabilidade ética de falar por aqueles que morreram sem falar como uma forma de redimir-se de uma certa culpa por estar vivo enquanto o outro não está, por estar vivo no lugar do outro.

Além de cumprir essa função ética, o testemunho de Birahima estabelece um jogo muito íntimo entre realidade e ficção. Apesar de ser um personagem ficcional e de a literatura estabelecer um pacto ficcional com o leitor, somos levados a questionar se o seu relato não tem nenhum relação com a realidade. Como disse Kourouma, esses eventos mais parecem ficção do que realidade, no entanto, apesar de inconcebíveis, muitas vezes retratam eventos que efetivamente aconteceram e que só são conhecidos graças à voz das testemunhas. Desse modo, a memória dessas testemunhas tem a finalidade de compreender o passado, mas sempre guardando a sua relação com o presente. Como afirma, de forma bastante poética, Jeanne-Marie Gagnebin:

“(...) Nietzsche, Freud, Adorno e Ricoeur, cada um no seu contexto

específico, defendem um lembrar ativo: um trabalho de elaboração e de luto em relação ao passado, realizado por meio de um esforço de compreensão e

de esclarecimento — do passado e, também, do presente. Um trabalho que, certamente, lembra dos mortos, por piedade e fidelidade, mas também por

amor e atenção aos vivos” (GAGNEBIN, p. 105).

Quando pensamos em memória, pensamos também em tradição, em conservação de um patrimônio cultural comum. Ora, como vimos anteriormente, a tradição africana tem uma enorme importância na escrita de Kourouma, de modo que ele a convoca intensamente na sua construção literária. Todavia, sabemos que Kourouma, apesar de acreditar nos valores tradicionais africanos para compreensão da identidade, não tem um olhar ingênuo a seu respeito. Em sua obra, percebemos que ele também a questiona. Isto posto, podemos encarar a escolha de um personagem infantil para a função de narrador como uma subversão à tradição, visto que essa função geralmente é ocupada por alguém mais velho, dono de saber e experiência adquiridos no decorrer de uma longa vida.

Como vimos, a escrita de Kourouma é fortemente ancorada na tradição oral africana, em que o griot toma a palavra para compartilhar com sua comunidade o seu saber, fruto de sua experiência. No mundo retratado em Allah n’est pas obligé, a ordem está a tal ponto ameaçada que até mesmo a figura do narrador, do “conteur traditionnel” é colocada em xeque.

Essa subversão da tradição no modo de narrar se manifesta através de comentários feitos por Birahima, como os seguintes:

Voilà ce que j’avais à dire aujourd’hui. J’en ai marre ; je m’arrête aujourd’hui. Walahé ! Faforo (sexe de mon père) ! Gnamokodé (bâtard) !

(A, p. 45);

Moi non plus, je ne suis pas obligé de parler, de raconter ma chienne de vie,

de fouiller dictionnaire sur dictionnaire. J’en ai marre ; je m’arrête ici pour aujourd’hui. Qu’on aille se faire foutre ! (A, p. 95);

Aujourd’hui, ce 25 septembre 199… j’en ai marre. Marre de raconter ma

vie, marre de compiler les dictionnaires, marre de tout. Allez vous faire

foutre. Je me tais, je dis plus rien aujourd’hui… À gnamokodé (putain de ma

mère) ! À faforo (sexe de mon père) ! (A, p. 123).

Esses trechos revelam o modo como o narrador se direciona ao seu público, isto é, sem nenhuma decência e respeito. O menino faz uso, sem pudor, de palavrões, seja em idioma malinké, seja na língua francesa. É ele quem decide quando falar e quando parar de falar, porque não está com vontade. O fato de Kourouma convocar uma criança para o lugar da narração encena um mundo que, tendo perdido seus referenciais, tem dificuldade em compreender a sua própria identidade.

Em um artigo de Amadou Koné, a respeito da tradição nas obras de Kourouma, ele faz os seguintes questionamentos:

No que diz respeito à tradição, a obra de Kourouma coloca questões fundamentais. Como a cultura tradicional influencia o comportamento, as mais diversas e mais cruciais escolhas do Negro-Africano? Ela dá respostas satisfatórias às questões que surgem da nova situação criada pela colonização e pelas independências? Ela contém os recursos eficazes para resolver os problemas que se apresentam aos Africanos dessa época que se estende do período colonial à época pós-colonial? (KONÉ, 2004, pp. 42- 43)160.

Essas questões levantadas por Amadou Koné são cruciais para compreender a obra de Kourouma, dada a importância da tradição evocada pelo autor em seus romances. As referências às etnias, às religiões tradicionais africanas, ao uso de fétiches e grigri, são muito numerosas ao longo do romance, além da influência linguística e literária, herdada da oralidade, elementos que foram analisados na seção anterior.

Yacouba, personagem que diz ser o portador da tradição, fornece uma pista da visão de Kourouma acerca da tradição. Yacouba, que, na realidade se chama Tiécoura, é descrito da seguinte forma: Tiécoura était multiplicateur de billets et aussi marabout

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 125-137)