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Infância roubada

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 119-125)

3. Literatura menor

3.2. Minoridade etária: “destutela” e descolonização

3.2.2. Infância roubada

Diante do cenário encontrado pelas crianças em meio à guerra, não lhes resta outra opção senão reproduzir o caos generalizado observado em torno delas. Assim, a única lei das crianças-soldados passa a ser a da sobrevivência, que é regida pelo princípio da predação universal, simbolizada no romance através da seguinte frase: “Allah ne laisse jamais vide une bouche qu’il a créée”147

. Essa frase é repetida algumas vezes pelo narrador, que a emprega para justificar a pilhagem dos vilarejos por onde ele e as outras crianças-soldados passam, aterrorizando e massacrando a população. Birahima explica de modo bastante objetivo a tarefa de uma criança-soldado: “Dans toutes les guerres tribales et au Liberia, les enfants-soldats, les smallsoldiers ou children-soldiers ne sont pas payés. Ils tuent les habitants et emportent tout ce qui est bon à prendre” (A, p. 49, grifo nosso)148. Essa elucidação por parte do menino deixa claro que a justificativa para as suas ações é a sobrevivência, que consiste em usufruir de tudo o que encontrar.

Ao analisar as características das crianças-soldados, Xavier Garnier resume da seguinte forma o princípio que rege as suas leis: “Esse é o princípio da economia da predação: de um lado, a generosidade do criador, do outro, a avidez das criaturas” (GARNIER, 2004, p. 28)149. Dando prosseguimento à sua análise, Garnier acredita que as crianças são o modelo desse sistema, pois elas são capazes de pegar aquilo que encontram na rua, sem malícia alguma, ou mesmo de receber um presente e não agradecer. Para as crianças, não se trata de uma ideologia política a ser defendida, ou de um novo sistema a ser implantado; trata-se de um jogo infantil, assim como outros. No entanto, esse jogo toma proporções incomensuráveis uma vez que são introduzidas as

147“Alá nunca deixa vazia uma boca por ele criada” (A, p. 95).

148“Em todas as guerras tribais na Libéria, as crianças-soldados, os samll-soldiers ou children-soldiers,

não são pagas. Elas matam os habitantes e carregam tudo que dá para pegar” (A, p. 52, grifo nosso).

149“Tel est le principe de l’économie de prédation : d’un côté la générosité du créateur, de l’autre l’avidité

armas de fogo: “As crianças-soldados não são crianças que embarcaram nos assuntos dos grandes, mas crianças em cujo jogo os grandes se intrometeram, emprestando-lhes as armas de fogo” (GARNIER, 2004, p. 28)150.

Quando se acrescentam as armas, as kalachnikov abundantemente citadas no romance, o jogo passa a ter consequências muito mais drásticas; para as crianças, as kalach muitas vezes são consideradas do ponto de vista lúdico, como uma recompensa, um prêmio merecido: “On avait des lits, des tenues de parachutistes neuves, des kalach neufs. Walahé !” (A, pp. 77-78)151. Assim como acontece com os brinquedos, as crianças passam a usar as armas sem limites e atirar torna-se, portanto, uma tarefa corriqueira: “Et puis les enfants-soldats se sont alignés et ils ont tiré avec les kalach. Ils ne savent faire que ça. Tirer, tirer” (A, p. 64, grifo nosso)152. O efeito desse jogo acaba por fazer com que as armas sejam destituídas de significado, não mais representando um meio de acabar com vidas humanas, mas constituindo parte de um jogo: o jogo da sobrevivência.

Assim, assistimos no romance a uma banalização generalizada da morte, consequência de uma banalização da vida. Como as crianças sabem que suas vidas não valem nada e que elas podem morrer a qualquer momento, o ato de tirar a vida dos outros se torna também corriqueiro. Cabe observar que o uso da arma de fogo intensifica ainda mais essa banalização, dada a facilidade de matar que ela possibilita. Em tempos em que os combates eram feitos homem a homem, a morte geralmente era mais lenta, mais difícil de ser atingida. Ademais, esse tipo de combate possibilitava o contato pessoal com o adversário, o que podia também colocar em jogo a dimensão humana do inimigo e introduzir algum tipo de sentimento de solidariedade ou de compaixão pelo seu semelhante. Com o uso das armas de fogo, ao contrário, o inimigo deixa de ter um rosto, o que faz com que o combate se torne mais frio, desumano, covarde. Outra dimensão que faz com que a morte seja banalizada é, justamente, a falta de um inimigo claramente identificado. As crianças não sabem nem mesmo contra quem elas lutam. Com medo, todos acabam se tornando seus inimigos, conforme será comentado num trecho logo adiante.

150“Les enfants-soldats ne sont pas des enfants embarqués dans des affaires de grands, mais des enfants

aux jeux desquels les grands se sont joints, en leur prêtant leurs armes à feu” (GARNIER, 2004, p. 28).

151“Tinha cama, uniformes de pára-quedistas novinhos, kalachs novinhas. Walahé” (A, p. 80).

152“E depois as crianças-soldados fizeram uma fila e deram tiros com as kalachs. Elas só sabem fazer

Para ilustrar essa relação entre a lei da predação universal e as consequências desastrosas de se introduzirem verdadeiras armas no jogo, tomemos como exemplo uma única cena, em que as crianças-soldados pilham um vilarejo, em busca de alimentos para matar sua fome:

On commença à fouiller les cases du village. Une à une. Bien à fond. Les habitants avaient fui en entendant les rafales nourries que nous avions tirées. Nous avions faim, il nous fallait à manger. (...) Nous prenions tout ce qui était bon à grignoter. Allah ne laisse jamais vide une bouche qu’il a

créée (A, p. 92, grifo nosso)153.

Vemos novamente a repetição da frase “Allah ne laisse jamais vide une bouche qu’il a créée”, que serve sempre como uma justificativa para qualquer tipo de ação. Até esse momento, porém, as ações se resumem a pilhar para não morrer de fome. Em seguida, as crianças-soldados descobrem que havia duas crianças na casa, que haviam sido deixadas por seus pais na hora de sua fuga. A cena que se segue ultrapassa em muito o limite da luta pela sobrevivência e atinge um nível de crueldade extremo, resultante do uso das armas sem nenhum limite.

Nous fouillions dans les coins et les recoins. Alors que nous croyions qu’il n’y avait personne, absolument personne, à notre surprise nous avons

découvert sous des branchages deux enfants mignons que leur mère n’avait pas pu emmener avec elle dans sa fuite éperdue. (...) Il y avait parmi les soldats-enfants une fille unique appelée Fati. Fati était comme toutes les filles-soldats, méchante, trop méchante. (...) Ils avaient six ans: c’étaient des jumeaux. Ils avaient peur. Ils ne pouvaient rien comprendre à rien. Fati a voulu les effrayer. Elle a voulu tirer en l’air mais, comme elle était dans les vapeurs, elle les a bien mitraillés avec son kalachnikov. L’un était mort, l’autre était blessé (A, pp. 92-93, grifo nosso)154.

Essa cena resume todas as características apontadas acima a respeito das crianças-soldados, evidenciando a sua luta pela sobrevivência através da predação universal, pois elas buscavam desesperadamente alguma comida; em seguida, o uso das armas e suas terríveis consequências; a evidência de que, por causa do medo, todos haviam se tornado inimigos, inclusive duas crianças indefesas; finalmente, detectamos a

153“E a gente começou a vasculhar as cabas da aldeia. Uma a uma. Sem deixar passar nada. Os habitantes

tinham fugido ao ouvirem as rajadas prolongadas do nosso tiroteio. A gente estava com fome e precisava comer. (...) A gente passava a mão em tudo que era bom embolsar. Alá nunca deixa vazia uma boca por ele criada” (A, p. 95, grifo nosso).

154“A gente estava vasculhando em tudo que era canto recanto. A gente pensava que não tinha ninguém

lá, absolutamente ninguém, mas para nossa surpresa a gente descobriu escondidas nuns galhos duas crianças bonitinhas que a mãe não tinha tido tempo de carregar na fuga esvairada. (...) Havia entre os soldados-criançasuma filha única, chamada Fati. Fati era que nem todas as meninas-soldados, malvada, malvada que só ela. (...) Elas deviam ter seis anos: eram gêmeas. E estavam com medo. Elas não entendiam nada de nada. Fati quis botar medo nelas. Elas quis atirar para cima, mas como estava viajando com o haxixe, ela metrallhou as duas com a kalachnikov. Uma mor reu, a outra ficou ferida” (A, p. 96, grifo nosso).

consequente banalização da morte, que faz com que não se questione mais o direito à vida de nenhuma criatura humana, nem mesmo quando ela é inofensiva.

Garnier aposta também na falta de tutela como explicação para o fenômeno das crianças-soldados e para a violência de seus atos:

Os jogos de criança, com sua violência latente, são bastante comoventes quando eles acontecem sob a tutela parental, mas se tornam muito mais inquietantes quando perdem o controle. (...) Será muito difícil encontrar em

Allah n’est pas obligé uma instância tutelar adulta. (GARNIER, 2004, p.

28)155.

A análise de Garnier evidencia a dificuldade de se encontrar uma tutela adulta no romance. Como vimos, nem a família, nem a escola, nem o Estado são capazes de ocupar essa função e as crianças passam a não ter outra opção senão aderir à guerra. O que observamos no romance é uma radicalização dessa situação, que chega a ponto de as crianças não conceberem outra alternativa senão essa; ao contrário, elas passam a desejar o caos para poder se beneficiar dele, refletindo, assim, a postura de personagens como Yacouba, um mercenário de guerra. É o que constatamos a partir de trechos como o seguinte:

La situation générale était désastreuse, elle ne peut être pire que ce qu’elle était. Walahé ! Donc elle était bonne pour nous. Faforo ! Nous, Yacouba, le bandit boiteux, le féticheur multiplicateur de billets, et moi, Birahima,

l’enfant de la rue sans peur ni reproche, l’enfant-soldat. Gnamokodé ! Nous avons été appelés, nous avons pris du service aussitôt (A, p. 202, grifos nossos)156.

Neste fragmento notamos que o narrador se torna ávido pelo caos, pela situação desastrosa de seu país, pois apenas dessa forma ele encontraria uma ocupação, isto é, um modo de sobreviver. No momento em que o menino profere essa frase, o poder estava nas mãos dos Kamajor, dos caçadores tradicionais, que não empregavam crianças em suas facções. Desse modo, sem ocupação, o menino se confronta com a verdadeira miséria e a precariedade da guerra:

Les chasseurs professionnels et traditionnels, les kamajors, n’avaient pas

besoin de soldats-enfants. Leur code leur interdisait d’utiliser des enfants à la guerre. Pour participer à la guerre à leur côté, il fallait être initié comme chasseur. De sorte que, pour la première fois, nous (Yacouba et moi) étions

155Les jeux d’enfants, avec leur violence latente, sont bien attendrissants lorsqu’ils ont lieu sous la tutelle

parentale, mais ils deviennent beaucoup plus inquiétants une fois hors controle. (...) On aura beaucoup de mal à trouver dans Allah n’est pas obligé une instance tutélaire adulte. (GARNIER, 2004, p. 28).

156“A situação geral era desastrosa, ela não podia ficar pior do que estava. Walahá! Portanto ela era boa

para a gente. Faforo! A gente, Yacuba, o bandido manco, feiticeiro multiplicador de notas de dinheiro, e eu, Birahima, o menino de rua sem eira nem beira, a criança-soldado. Gnamokodê! Nós fomos chamados,

confrontés à la réalité, à la précarité de la guerre tribale (A, p. 194, grifo nosso)157.

Esse comentário, além de pôr em relevo a precariedade encontrada durante a guerra tribal, deixa claro que, na verdade, as crianças não desejam realmente ser soldados. Apesar de Birahima fazer comentários como o seguinte: “Être un soldat-enfant, Walahé!, avait des avantages. On était un privilegié” (A, p. 81)158, sabemos que ele não se sente, de fato, um privilegiado. Na sua apresentação, ele próprio diz que contará a sua vida de “merda de desgraçado”. Na realidade, ele busca incansavelmente a guerra e afirma que quer ser uma criança-soldado, justamente, para escapar à precariedade da guerra, isto é, à fome, à miséria, à insegurança, à violência.

Essa infância representada por Kourouma em sua obra revela um profundo desajustamento da realidade retratada pelo autor, consequência de uma série de eventos que mergulharam a África em uma grande crise política e econômica, mas também ética e moral. Nesse sentido, a criança é profundamente simbólica, na medida em que ela representa, justamente, a fragilidade. Como diria Jeanne-Marie Gagnebin, ao pensar sobre o que tanto nos intriga a respeito da infância:

[a infância] contém a experiência essencial ao homem de seu desajustamento em relação ao mundo... [ela] é o signo sempre presente de que a humanidade não repousa somente sobre sua força e seu poder, mas também, de maneira mais secreta, mas tão essencial, sobre suas faltas e suas fraquezas (GAGNEBIN, 2005, p. 180).

No entanto, essa minoridade etária não é representada apenas pela imagem da criança, mas também ecoa na produção de Kourouma através da minoridade das recém- formadas nações africanas. Como é possível detectar em sua obra, essas nações, assim como as crianças, ainda vivem em um estado de muita instabilidade e fragilidade, buscando caminhos para encarar o seu passado, resolver seus problemas presentes e vislumbrar um futuro diferente.

No que diz respeito tanto às crianças quanto às nações africanas, detectamos um problema relativo à tutela e à sua consequente “destutela”: ambas passaram por um processo complexo e problemático de tutela (no caso das crianças, por parte da família, da escola e do Estado; no caso das nações, por parte da “mainmise” ocidental); desse

157 “Os caçadores profissionais e tradicionais, os kamajors, não precisavam de soldados-crianças. O

código deles proibia a utilização de crianças na guerra. Para participar da guerra ao lado deles, era preciso ser iniciado como caçador. De modo que, pel primeira vez, nós (Yacuba e eu) estávamos confrontados com a realidade, com a precariedade da guerra tribal” (A, p. 198, grifo nosso).

modo, evidentemente o processo de “destutela” das nações africanas não será menos complexo e, se não chegar a alcançar uma verdadeira emancipação, continuará em seu estado “mancus” (apontado por Lyotard): permanecerá o estado de falta.

Esse estado de falta é verificado nas nações africanas que, incorporando um modelo europeu de organização política e social, não levaram em conta as suas próprias especificidades e os limites para adotar tal modelo. Falta, pois, encontrar uma via que leve em consideração as características específicas da realidade africana, e que permita resgatar do modelo europeu aquilo que for positivo e não reproduzir seus vícios.

A respeito da minoridade no sentido político, econômico, social, isto é, em seu sentido mais usual, geralmente associado à marginalidade, o historiador Joseph Ki- Zerbo se posiciona e sugere a seguinte reflexão:

Não convém que nos posicionemos demasiado em relação aos outros e concebamos a marginalização em função do centro. O centro está em nós mesmos. Eu diria que, em primeiro lugar, seria necessário, como alternativa, um projeto coletivo: quem somos nós? Onde queremos ir? Desde que somos independentes, ainda não respondemos a estas perguntas (KI-ZERBO, 2009, pp. 157-158).

Ki-Zerbo aposta, pois, em uma concepção que não coloque em relevo a marginalização da África em relação aos outros continentes; ao contrário, aposta que as perspectivas positivas para os problemas da África devem levar em conta a própria africanidade, através do questionamento e da compreensão de sua identidade. Sensível a questionamentos como estes, a literatura não está alheia a esse movimento e reflete a busca pela compreensão de sua identidade, esfacelada por tantos eventos históricos cruéis.

Essa necessária reflexão acerca da identidade se torna essencial para responder às exigências africanas no mundo contemporâneo. Para tanto, é preciso levar em consideração dois elementos extremamente importantes: a história e a tradição. Como vimos ao longo deste trabalho, a compreensão da identidade passa por uma compreensão do passado; além disso, a resposta à necessária pergunta “quem somos nós?” leva em conta em conta um retorno à origem, à compreensão de suas tradições para detectar os elementos tradicionais capazes de responder às problemáticas atuais. Kourouma aposta na tradição para compreender e afirmar a sua identidade; por outro lado, isso não significa que ela também não seja posta à prova ou questionada, como veremos adiante.

Essas duas noções – a história e a tradição – são onipresentes na obra de Kourouma; todavia, no romance Allah n’est pas obligé, há um elemento a mais, que joga de forma direta com essas questões: a criança. O personagem infantil da obra Allah n’est pas obligé toma a palavra para pensar a sua história e o seu presente, dando testemunho de suas experiências em meio à guerra. Desse modo, o narrador cumpre o seu dever de memória, fazendo da revisão do passado um constante alerta sobre o presente.

No que diz respeito à tradição, o fato de a voz narrativa ser concedida a uma criança inverte a lógica da narração tradicional, que geralmente é delegada a alguém mais velho, mais sábio, mais experiente. A subversão da tradição implícita no ato de delegar a tarefa de narrar a uma criança revela a necessidade de ativar o espírito crítico em relação às tradições, para que elas não sejam deturpadas em favor de benefícios pessoais, conforme veremos na seção a seguir.

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 119-125)