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Os dicionários: jogo com o real

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 98-103)

3. Literatura menor

3.1. Desterritorialização da língua

3.1.3. Os dicionários: jogo com o real

Além da desterritorialização da língua e da convivência do mito com a desmistificação, há um elemento do romance Allah n’est pas obligé que merece uma atenção especial: a presença de um instrumento usado pelo menino-soldado para contar

107“O fato de a instituição de Maria Beatriz ter podido resistir durante quatro meses aos saqueadores era

extraordinário. Parecia milagre. Alimentar umas cinquenta pessoas naquela Monróvia saqueada, abandonada, durante quatro meses era extraordinário. Parecia milagre. Tudo o que Maria Beatriz tinha conseguido fazer durante os quatro meses daquele cerco era extraordinário. Parecia milagre. Maria Beatriz tinha realizado atos milagrosos. Ela era uma santa, a santa Maria Beatriz” (A, p. 145, grifos nossos).

sua vida, isto é, os quatro dicionários aos quais ele recorre para poder se fazer compreender por todo mundo. O menino se depara com o problema do idioma da escrita, que é semelhante àquele encontrado por todo escritor dito francófono. De um modo geral, ao escrever em francês em vez de recorrer à sua língua materna, os autores francófonos africanos se dirigem a um universo numericamente mais vasto; por outro lado, eles acabam por excluir muitos africanos que, por não falarem o francês, não poderiam ter acesso à sua obra. Sabe-se que o francês é o idioma oficial de muitos países africanos, porém, por problemas ligados à precariedade do sistema educacional, muitos africanos não dominam essa língua oficial de seu país. Essa problemática da escolha do público, diretamente associada à opção do idioma de escrita, é simbolizada no romance pela presença dos dicionários, que têm o objetivo neutralizar essa questão, ao inserir explicações das palavras que não seriam acessíveis a um grupo ou a outro.

Ao colocar, pois, as questões linguísticas no centro do romance, percebemos que a dificuldade reside no fato de que, ao transitar entre duas línguas e, sobretudo, entre duas culturas, é difícil atingir a verdade. É o que constata o crítico Jean-Claude Blanchère em um artigo acerca da linguagem na obra de Kourouma: “o verdadeiro problema que se apresenta no romance é a capacidade da linguagem de atingir a verdade das coisas, quando se trata de passar de um universo linguístico a outro, de uma cultura a outra”.108

Ao introduzir, na narrativa, parênteses explicativos, o narrador, dotado de um instrumento de autoridade e de legitimidade – os dicionários –, se dá o direito de comentar e ressignificar as palavras que são ditas. Em alguns momentos, o dicionário cumpre a função prometida pelo narrador, isto é, mediar realidades culturais e linguísticas distintas, como podemos observar nos fragmentos a seguir, além dos inúmeros já citados acima:

Autour du foyer, des canaris. (Canari signifie, d’après l’Inventaire des particularités lexicales, vase en terre cuite de fabrication artisanale. (A, p. 13);109

(...) le conducetur de moto et le mec qui faisait le faro avec le kalachnikov derrière la moto. (Le mot faro n’existe pas dans le Petit Robert, mais ça se

108 « le véritable problème posé dans le roman est donc celui de la capacité du langage à atteindre la vérité

des choses, lorsqu’il s’agit de passer d’un univers linguistique à un autre, d’une culture à une autre. » (J.-

C. BLACHÈRE, 1999, p. 138).

109“Em volta da fogueira, canaris. (Canari significa, segundo o Inventário das particularidades lexicais,

trouve dans Inventaire des particularités lexicales du français en Afrique noire. Ça veut dire faire le malin (A, p. 51).110

Em outros momentos, porém, o narrador joga com o sentido das palavras, introduzindo explicações de teor subjetivo, retirando a neutralidade da definição e colocando-a no plano do comentário que se pretende neutro, mas que acaba por emitir uma opinião acerca daquilo que está sendo narrado:

Et la CDEAO a demandé au Nigeria de faire application de l’ingérence humanitaire au Libéria. (Ingérence humanitaire, c’est le droit qu’on donne à des États d’envoyer des soldats dans un autre État pour aller tuer des

pauvres innocents chez eux, dans leur propre pays, dans leur propre village, dans leur propre case, dans leur propre natte.) (A, pp. 129-130, grifo nosso). 111

Nessa passagem, o narrador faz referência à ECOMOG, isto é, às tropas de interposição, cuja maioria dos soldados era proveniente da Nigéria. Essa sigla significa Economic Community of West African States Monitoring Group (Grupo de Monitoramento do Cessar-Fogo da Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental) e, como o nome indica, o seu objetivo inicial era garantir que os países em guerra civil respeitassem o acordo de cessar fogo para que se instalasse a paz.

O trecho supracitado ilustra um comentário que não se limita a traduzir ou a explicar o significado de uma palavra; nesse fragmento, o narrador deixa clara a sua opinião em relação a um acontecimento histórico, isto é, à decisão de enviar um grupo militar com o objetivo de garantir a paz. Ao estender a definição de “ingerência humanitária”, o narrador manifesta a sua posição política quanto à interferência de um país nos conflitos de outro: ele associa ao envio dos soldados o direito de matar inocentes, o que retira a neutralidade do comentário, ao impregná-lo de aspectos negativos. Segundo o narrador, a ingerência humanitária não se resume a um acordo político entre as nações, em que a mais forte se dispõe a ajudar a parte mais fraca; na prática, essa intervenção militar vai muito além de acordos internacionais, afetando a vida pessoal e íntima de cada pessoa. Essa invasão e violação da intimidade é reforçada textualmente pelo recurso à gradação, que parte do mais amplo (pays), indo cada vez ao

110“(...) o motorista e o jirigote que estava de butuca com kalachnikov na garupa. (A palavra jirigote não

está no Petit Robert, mas encontra-se no Inventário das particularidades lexicais do francês da África

Negra). Quer dizerbancar o espertalhão” (A, pp. 53-54).

111“E a CDEAO tinha pedido à Nigéria que aplicasse a ingerência humanitária na Libéria. (Ingerência

humanitária é o direito dado aos Estado de enviar soldados a outro Estado para irem matar pobres inocentes em sua própria terra, seu próprio país, sua própria aldeia, sua própria cabana, na própria esteira em que eles se sentam)” (A, p. 134, grifo nosso).

mais próximo, até chegar ao lugar sobre o qual se dorme (natte), que é um símbolo da intimidade.

Outro fragmento em que o narrador joga com a definição do dicionário é o seguinte: “Le patron associé est souvent un Libanais et on comprend qu’il soit souvent assassiné. Oui, c’est bien qu’on les assassine affreusement, ce sont des vampires. (Les vampires sont des gens qui s’enrichissent du travail d’autrui d’après le Petit Robert.)” (A, p. 110, grifo nosso).112 Ao falar dos “patrons associés”, proprietários das regiões auríferas que concedem a alguém o direito de explorar o ouro mediante um pagamento, o narrador os associa a um “vampiro”. No dicionário Petit Robert, há um significado que faz menção ao sentido figurado da palavra “vampire”, evidenciando o aspecto da avareza. Todavia, no trecho em questão, o narrador aplica o termo ao fato de o “patron associé” se aproveitar do trabalho dos outros para enriquecer. Há uma manipulação na definição supostamente feita pelo dicionário Petit Robert para adequá-lo ao discurso do narrador.

Em outra passagem, o narrador põe em questão a própria função da tradução; apesar de vislumbrar na tradução uma possível solução de trânsito entre as línguas e culturas, ele reconhece as suas limitações e decide colocar em questão o método adotado por si mesmo para jogar com o plurilinguismo: ironizar o dicionário, tecendo o seguinte comentário: “C’était un centre de rééducation. (Dans le Petit Robert, rééducation signifie action de rééduquer, c’est-à-dire la rééducation. Walahé ! Parfois le Petit Robert aussi se fout du monde.)” (A, p. 69, grifo nosso). 113

Kourouma insere, pois, a linguagem no centro da discussão, propondo um jogo linguístico que está intimamente associado ao jogo que ele faz com o real. Em um artigo a respeito da noção de desterritorialização linguística concebida por Deleuze e Guattari, Karl Eric Schollhammer reflete sobre a relação entre esse conceito e a representação da realidade. Ao pensar sobre a função de uma escrita desterritorializada, Schollhammer afirma o seguinte: “em vez de negar e criticar a realidade dialeticamente, desterritorializa-a numa aposta de alegre afirmação que a leva ao seu limite de evidência

112“O patrão associado geralmente é um libanês e é fácil entender por que muitas vezes ele é assassinado.

É isso mesmo, bem-feito que eles sejam assassinados cruelmente, eles são verdadeiros vampiros. (Vampiros são pessoas que enriquecem com o trabalho alheio, segundo o Petit Robert.)” (A, p. 112, grifo nosso).

113 “Era um centro de reeducação. (No Petit Robert, reeducação significa ação de reeducar, isto é,

reeducação. Walahê! De vez em quando o Petit Robert tira uma com a cara da gente.)” (A, p. 71, grifo nosso).

e redundância.” (SCHOLLHAMMER, 2001, p. 62). Assim procede Kourouma nos fragmentos citados acima: ele não nega os procedimentos que descreve, mas os afirma de modo a explorar a sua evidência e redundância. No comentário relativo às tropas de interposição, o narrador não adota uma postura de questionar essa medida; ao contrário, ele explica as suas ações de modo a torná-las absurdas.

Assim, a linguagem se torna um personagem do romance, uma vez que ela desafia o real, na medida em que não é capaz de reproduzi-lo. Conforme comenta Lise Gauvin, em uma análise do romance Allah n’est pas obligé,

o verdadeiro protagonista dessa história é a própria linguagem, suas extensões, seus limites, seu aspecto às vezes aleatório, arbitrário, de um lado e, do outro, coercitivo, fascista. Uma linguagem portadora de todas as ambiguidades sobre as quais se funda o que designamos como civilização.114

Essa ambiguidade inerente à linguagem, sobretudo quando se trata de um contexto plurilíngue e pluricultural põe em questão a própria função da linguagem e a sua capacidade de expressar o real. Desse modo, quanto mais se procura explicar as palavras, mais se acaba por relativizá-las, o que acarreta o seu descrédito. Tudo não passa de um mero jogo com a linguagem, e, ao mesmo tempo em que a mediação entre as culturas é necessária, ela é também impossível de ser feita de forma neutra e de expressar uma única e exclusiva verdade. Aliás, a relação entre o discurso e a verdade, nas obras de Kourouma, é polêmica: em um mundo de disputa pelo poder e de guerras, os discursos se tornam vazios e acabam por não corresponderem a um desejo de verdade, sendo expressamente falaciosos e mentirosos. O mesmo discurso que promete a paz – como vimos com o exemplo da ingerência humanitária – é aquele que acaba por matar e perseguir as pessoas em seu próprio país, sua própria aldeia, sua própria cabana, sua própria esteira.

Após refletir sobre o sentido de “minoridade literária” e sobre a desterritorialização da língua na obra de Kourouma, abordaremos outra dimensão da “minoridade” presente no romance: a minoridade etária. Evidentemente, essa noção remete necessariamente à importância da infância no romance, inclusive enquanto voz narrativa. Todavia, há ainda outro elemento a ser levado em conta, no que diz respeito à minoridade etária: as recém-formadas nações africanas. Tanto as crianças quanto as

114

« Le véritable protagoniste de ce récit est le langage lui-même, ses extensions, ses limites, son aspect à

la fois aléatoire, arbitraire, d’une part, et, d’autre part, coercitif, voire fasciste. Un langage porteur de

toutes ambigüités sur lesquelles se fonde ce que l’on désigne comme civilisation » (GAUVIN, 2007, p. 100).

nações africanas apresentam uma problemática relativa à noção de tutela e da consequente “destutela”, conforme analisaremos na seção a seguir.

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 98-103)