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3. Literatura menor

3.1. Desterritorialização da língua

3.1.1. A oralidade

Entre a maioria dos povos africanos, a herança literária se ancora fortemente na oralidade e a base de transmissão dos conhecimentos e das experiências era essencialmente oral. A forte presença da oralidade relaciona-se, de certo modo, com a ausência de registro escrito de muitas línguas africanas. Entretanto, não se trata apenas da relação com a escrita, pois, mesmo onde ela existia, a oralidade manteve a sua importância, por ser um meio de conservação dos saberes ancestrais de um povo,

82“Eles lançaram contra a perna direita de minha mamãe um feitiço ruim, um korotê (significa, segundo o

Inventário das particularidades lexicais, veneno que age a distância sobre uma pessoa visada), um djibo

(significa feitiço de influência maléfica) muito forte, muito poderoso” (A, pp. 23-24, grifo nosso).

83“Casser la langue, cela signifie, pour les uns et les autres, la travailler dans tous les sens jusqu’à faire

éclater les frontières qui la séparent d’avec des états de langues plus anciens, ou encore la resémantiser et l’irriguer de l’intérieur par la mémoire d’autres langues” (GAUVIN, 2004, p. 341).

veiculados através da palavra. Em um livro que reúne diversas noções caras à literatura francófona, intitulado “Vocabulaire des études francophones”, organizado por Michel Beniamino e Lise Gauvin, há um artigo referente à questão da oralidade, escrita pelo crítico Jean Derive. De acordo com Derive,

Essa noção oral de cultura implica a existência de um sistema antropológico de comunicação verbal no qual são tradicionalmente transmitidos oralmente os valores de um patrimônio conservados em uma série de repertórios que existem apenas na memória dos interessados. 84

A forte influência da oralidade nas línguas e literaturas africanas pressupõe uma lógica diversa às línguas escritas, que, segundo Kourouma, são “planificadas”. A oralidade está ligada a outros elementos externos à língua, como, por exemplo, o gesto.

L'oralité n'est pas que la parole parlée, mais aussi la parole retenue, le silence. Elle n'est pas seulement la parole et le silence, mais aussi le geste. (...) L'objectif recherché par le créateur dans la tradition négroafricaine est de favoriser la participation par l'émotion. Il y parvient en usant du rythme, de l'image et du symbole comme procédés littéraires (KOUROUMA, 1997, p. 116).85

Na cultura africana, de base oral, a função da literatura está muito ligada à transmissão da herança cultural, de valores e tradições. O griot, encarregado de manter viva a memória da sociedade, sobretudo no que diz respeito aos valores e tradições, ocupa, portanto, uma posição fundamental da sociedade. A obra de Kourouma, impregnada de influências da cultura africana, traça um jogo com a oralidade, o que faz com que a sua escrita seja permeada por estratégias da linguagem típicas do registro oral. Evidentemente, não se deve presumir que a sua obra seja fruto de um relato imediato e espontâneo, assim como o de um griot; na realidade, existe um trabalho prévio da língua, com o intuito de explorar esteticamente as marcas de oralidade.

Ao constatar que a oralidade pode ser uma chave de leitura para obras de escritores como Kourouma, Jean Derive alerta que não se trata de uma oralidade espontânea, decorrente de um determinismo cultural; ao contrário, trata-se de um recurso consciente, com a finalidade de responder a demandas estéticas:

84 “Cette notion orale de culture orale implique l’existence d’un système anthropologique de

communication verbale où sont traditionnellement transmises oralement les valeurs d’un patrimoine conservées dans une série de répertoires qui n’ont d’existence que dans la mémoire des intéressés”

(DERIVE, 2005, p. 138)

85“A oralidade não é apenas a palavra falada, mas também a palavra retida, o silêncio. Não se trata

somente da palavra e do silêncio, mas também do gesto. (...) O objetivo do criador na tradição negroafricana é favorecer a participação através da emoção. Ele consegue isso usando o ritmo, a imagem e o símbolo como procedimentos literários.”

Não se pode nunca esquecer que não se trata de uma oralidade natural e espontânea, marca do determinismo cultural de um escritor que não poderia escrever de outra forma. Trata-se, na realidade, de um oralidade fingida e muito sabiamente reconstruída, em toda consciência, por escritores que sabem se dirigir a um público francófono exógeno, assim como àquele de seu próprio território. 86

No que diz respeito ao trabalho de Kourouma com a língua, pode-se verificar que ele convoca propositalmente para o seu texto elementos da oralidade, na busca de um modo de expressão africano, ainda que escrito em francês. Logo, é possível elencar diversas características formais de sua escrita que se assemelham a estratégias de uma literatura oral, como é o caso, por exemplo, do ritmo da narrativa. Através da repetição de palavras, de termos ou de frases inteiras, verificamos uma estrutura narrativa que se assemelha a um refrão, elemento típico da tradição oral, por facilitar a memorização. Em Allah n’est pas obligé, Kourouma se serve desse recurso para dar ênfase a uma ideia, como é o caso da repetição de palavrões, recorrendo a eles tanto em francês, quanto em malinké: “Walahé (au nom d’Allah)! A faforo (cul de mon père)! Gnamokodé (bâtard de bâtardise)” (A, p. 95).

Além da repetição de vocábulos, verificamos no romance uma grande recorrência de expressões que são repetidas reiteradas vezes no mesmo trecho:

C’était un affranchi, c’est comme ça on appelle un ancien esclave libéré, d’après Larousse. C’était un donson ba, c’est comme ça on appelle un maître chasseur qui a déjà tué un fauve noir et un génie malfaisa nt, d’après

Inventaire des particularités lexicales. C’était un cafre, c’est comme ça on

appelle un homme qui refuse la religion musulmane et qui est plein de fétiches, d’après Inventaire des particularités lexicales (A, pp.13-14, grifos nossos).

Na passagem acima, chama-nos a atenção a construção das frases, que apresenta uma mesma estrutura repetida três vezes, como é possível notar através das partes grifadas. O narrador caracteriza um personagem atribuindo-lhes três classificações: “affranchi”, “donson ba” e “cafre”; para explicar o significado de cada uma delas, ele recorre a uma mesma estrutura frasal, modificando apenas as informações necessárias. Além da anáfora utilizada pelo narrador, observamos ainda a aliteração, a partir da repetição do som /s/, nas palavras “c’était”, “c’est” e “ça”. Desse modo, o seu relato nos remete à oralidade, por gerar um efeito musical, assemelhando-se a um refrão.

86 “Il ne faut jamais oublier qu’il ne s’agit pas d’une oralité naturelle et spontanée, marque du

déterminisme culturel d’un écrivain qui ne pourrait faire autrement. Plutôt d’une oralité feinte et très

savamment reconstruite, en toute conscience, par des écrivains qui savent s’adresser à un public francophone exogène tout autant qu’à celui de leur propre territoire” (DERIVE, 2005, p. 142).

Observemos outro fragmento em que o ritmo da narrativa merece uma atenção especial:

Ma tante Mahan vivait au Liberia loin de la route dans la forêt après une

rivière. Elle s’était réfugiée là-bas avec son second mari parce que son premier mari, le père de mon cousin Mamadou, était un maître chasseur. Un maître chasseur qui criait, injuriait, menaçait avec le couteau et le fusil.

C’est ce qu’on appelle un violent ; le maître chasseur, le papa de Mamadou, était un gros violent. Ma tante a fait avec le maître chasseur ma cousine Férima et mon cousin Mamadou. Le nom du maître chasseur, le père de Mamadou, était Morifing. Mais tellement Morifing injuriait, frappait,

menaçait ma tante, tellement et tellement qu’un jour ma tante est partie ;

elle a fui. Partout dans le monde une femme ne doit pas quitter le lit de son mari même si le mari injurie, frappe et menace la femme. Elle a toujours tort (A, p. 31, grifos nossos).

Nesse trecho, o ritmo da narrativa é significativo, mais uma vez, pela repetição de palavras e expressões: a expressão “maître chasseur” é repetida cinco vezes e as sequências compostas pelos verbos “crier”, “injurier”, “frapper” e “menacer” são repetidas três vezes. Como esse parágrafo apresenta uma grande quantidade de nomes de personagens – a tia, seu segundo marido, o “maître chasseur” (Morifing), o “cousin Mamadou”, e a “cousine Férima” –, o narrador evita o emprego de pronomes pessoais para fazer menção a eles, evitando, desse modo, a confusão de nomes.

Em um relato oral, pressupõe-se que o público acompanhe a narrativa, e deve-se também despertar a sua atenção para que ele se envolva com os eventos narrados. A repetição, portanto, cumpre essa dupla função, ao evitar que o público se perca e ao reforçar as ideias, dando maior intensidade ao relato. Na passagem acima, a decisão de repetir a expressão “maître chasseur” não é fortuita, uma vez que o objetivo desse parágrafo é colocar em evidência as suas ações. A repetição dessa expressão e da sequência de verbos serve, pois, para dar intensidade à violência do seu modo de agir e de tratar a sua esposa.

Outro trecho do relato, que se estende por mais de três páginas, desperta muita atenção quanto ao ritmo que a narrativa adquire.

Nous n’avons même pas beaucoup fait pied la route, même pas un kilomètre: tout à coup à gauche, une chouette a fait un gros froufrou et est sortie des herbes et a disparu dans la nuit. J’ai sauté de peur et j’ai crié «

maman ! » et je me suis accroché aux jambes de Tiécoura. Tiécoura qui est un homme sans peur ni reproche a récité une des trop puissantes sourates

qu’il connaît par coeur. (...) Il s’est assis et a récité trois autres sourates fortes du Coran et trois terribles prières de sorcier indigène (A, pp. 42-43, grifos nossos).

Ao longo das páginas que se seguem, o mesmo ritual acontece outras duas vezes e a estrutura do relato permanece muito semelhante, com repetições de trechos inteiros. Entretanto, no que diz respeito a todas as quantidades presentes no fragmento, podemos verificar que esse número aumenta seguindo uma certa proporção. A primeira estrutura grifada na citação, ao acontecer novamente, aumenta de proporção da seguinte forma: “même pas un kilomètre” / “même pas cinq kilomètres” / “même pas dix kilomètres”. Na segunda expressão grifada, notamos o aparecimento de uma coruja; ao decorrer da narração, esse evento também se intensifica com o aumento do número de corujas: “une chouette” / “une deuxième chouette” / “une troisième chouette”.

O terceiro fragmento que adquire maior proporção à medida que o relato avança é o seguinte: “J’ai sauté de peur et j’ai crié « maman ! »”; nas vezes que se seguem, o menino se sente da mesma forma e dá o mesmo grito, porém de modo mais intenso: “J’ai tellement eu peur et peurque j’ai crié deuxfois « maman ! »” / “J’ai tellement eu peur et peur et peurque j’ai crié trois fois « maman ! »”. O procedimento se repete ainda com a última estrutura grifada na citação acima: da primeira vez, ele recita “trois autres sourates fortes du Coran et trois terribles prières de sorcier indigène”; em seguida, ele recita “six sourates fortes du Coran et six grosses prières de sorcier indigène”, até que, finalmente, ele recita “neuf autres sourates fortes du Coran et neuf grosses prières de sorcier indigène”.

À medida que a narrativa prossegue, os eventos tornam-se maiores e mais intensos, com uma gradação que varia de acordo com proporções regulares. A leitura dessas páginas do livro nos faz pensar numa cantiga de criança, em que a repetição é central para a memorização da canção; além disso, a amplificação, e não a diversificação dos eventos, constitui a matéria prima da narração. Essas citações ilustram um modo de narrar que se ancora em bases outras, dando ao romance um estilo narrativo diverso, por sua semelhança com um conto ou uma canção.

Somando-se ao ritmo da narrativa, o recurso ao provérbio e ao ditado constitui outro elemento de aproximação à oralidade. Além de o provérbio ser típico da linguagem oral, ele tem uma função didática, ao transmitir uma moral, um ensinamento, sendo também característico do gênero épico e das narrativas orais. Em seu estudo sobre a obra de Kourouma, Mufutau Adebowale Tijani elenca uma série de provérbios

encontrados em seus romances. No livro Les soleils des indépendances, ele destaca os seguintes provérbios:

Excité comme un grillon affolé (SI, p. 14);

Impoli à flairer comme un bouc les fesses de sa maman…(SI, p. 108);

Lesclave appartient à son maître; mais le maître des rêves de l’esclave est

l’esclave(SI, p. 145).

Em Allah n’est pas obligé o recurso aos provérbios também se faz fortemente presente, como se pode verificar através da lista a seguir:

Le genou ne porte jamais le chapeau quand la tête est sur le cou (A, p. 9);87

Il faut toujours remercier l’arbre à karité sous lequel on a ramassé beaucoup de bons fruits pendant la bonne saison (A, p. 14);88

Un enfant n’abandonne pas la case de sa maman à cause des odeurs d’un pet (A, p. 16); 89

Un pet sorti des fesses ne se rattrape jamais (A, p. 26);90

Le chien n’abandonne jamais sa façon éhontée de s’asseoir (A, p. 144);91

On suit l’éléphant dans la brousse pour ne pas être mouillé par la rosée(A, p. 163).92

Através de uma comparação ou de uma metáfora, os ditados veiculam um ensinamento que emana da sabedoria popular, recorrendo, muitas vezes, a uma comparação com a natureza – como é o caso da referência à árvore, ao cachorro, ao elefante, à selva – para justificar um modo de comportamento a ser adotado pelas pessoas, ou para explicar eventos ou realidades que acontecem no mundo.

Além dessas listas de provérbios encontradas ao longo desses dois romances, cabe observar ainda que o narrador se serve de frases semelhantes a ditos populares ao se referir a alguém mais velho ou mais sábio que ele próprio. Com bastante frequência, ao usar o discurso indireto, o narrador introduz a fala de outro personagem, de modo que o seu dizer se assemelhe a um provérbio, por parecer uma verdade absoluta. Em outras palavras, a fala de alguns personagens aparece em alguns momentos para expressar uma sabedoria popular proveniente de sua experiência, ao estilo de um provérbio, como podemos observar nos trechos a seguir: Yacouba continuait à penser, et il le disait, que Allah dans son immense bonté ne laisse jamais vide une bouche qu’il

87“O joelho nunca usa chapéu quando a cabeça está no lugar” (A, p. 11).

88 “Sempre se deve mostrar gratidão à árvore-da-manteiga da qual colhemos boas frutas durante a

estação” (A, p. 17).

89“Uma criança não abandona cabana de sua mamãe por causa do cheiro de um peido” (A, p. 18) 90“Um peido que escapou não pode ser pego de volta” (A, p. 28).

91“O cão vagabundo nunca muda sua maneira desavergonhada de se coçar” (A, p. 148).

a créée” (A, p. 41)93 e “Balla m’expliquait que cela n’avait pas importance et n’intéressait personne de connaître sa date et son jour de naissance vu que nous sommes tous nés un jour ou un autre” (A, p. 18)94.

Além do ritmo da narrativa e do uso de provérbios, é possível verificar ainda a presença de outros elementos característicos das narrativas orais na obra de Kourouma, mencionados por ele próprio em um trecho supracitado; trata-se da alusão às imagens, para que o público possa visualizar aquilo que está sendo narrado e, desse modo, envolver-se e emocionar-se com o conteúdo narrativo. Essas imagens se tornam mais intensas e chocantes pelo fato de o narrador convocar os sentidos para descrevê-las, recorrendo ao campo da visão, da audição, do olfato e do tato.

Uma imagem muito usada por Kourouma, e que também se faz presente em seus romances, é o sangue. Ele está presente em inúmeras circunstâncias: no universo feminino, nos sacrifícios, na guerra. Em Les soleils des indépendances, há uma cena intensa, em que a imagem do sangue é bastante significativa, gerando uma forte carga emotiva. Nesse romance, a infertilidade de Salimata, a esposa do protagonista, causa muita infelicidade para o casal, que não consegue ter filhos; para tentar resolver seu problema, a mulher vai consultar um marabout, que lhe diz que seria necessário sacrificar um animal para que Alá se compadecesse de sua situação. A cena do sacrifício é repleta de sensualidade e a presença dos corpos de Salimata e do marabout se torna central, o que pode ser percebido pela quantidade de partes do corpo mencionadas ao longo da descrição.

Salimata s’était stabilisée, disons-le, dans une position carrément provocante : les seins se découvraient, descendaient et se redécouvraient ;

les hanches se décolllaient, s’ouvraient noires, pimentées et profondes e se

rouvraient. Des vapeurs érotiques inopportunes faillirent boucher

l’inspiration du marabout. Sacrilège ! (SI, p. 72, grifos nossos).

O caráter erótico da cena é reforçado ainda mais pela escolha das partes do corpo descritas, isto é, “seins” e “hanches”, e os adjetivos a elas associados, “noires”, “pimentées”, “profondes”. Além disso, podemos notar que a cena é carregada de movimentos que dão um ritmo à descrição de modo a nos fazer imaginar a cena e os movimentos do corpo. Os verbos escolhidos para marcar essa movimentação corporal

93“Yacuba continuava pensando, e dizia isso, que Alá em sua imensa bondade nunca deixa vazia uma

boca por ele criada” (A, p. 43).

94“Balla me explicava que isso não tinha importância e que não interessava a ninguém saber a data e o

são também de um caráter sensual: “se découvraient”, “descendaient”, “se redécouvraient”, “se décollaient”, “s’ouvraient”, “se rouvraient”. Através dessa escolha verbal, é possível perceber que a narrativa ganha um ritmo, que, por sua vez, está em consonância com os movimentos do corpo de Salimata, fazendo com que o texto se movimente na mesma direção em que a imagem que ele produz.

Essa descrição se desenrola no exato momento em que um galo está sendo sacrificado. Nesse momento, o marabout empunha uma faca para concluir o sacrifício: “brûlant et brillant, pétrifiant comme celui de l’excieuse” (SI, p. 73). Essa faca tem o poder de ativar a memória de Salimata e a faz lembrar-se de sua excisão. No momento em que o marabout apunhala o animal, ele morre, fazendo seu sangue escorrer: “le sang gicla, le sang de l’excision, le sang du viol” (SI, p. 74). Para Salimata, portanto, o sangue jorrado pela morte do animal remete ao sangue de sua excisão e de seu estupro.

Elle: l’essoufflement et les vertiges qui l’assourdissaient, l’étreignaient, et

les couleurs qui se superposaient : le vert et le jaune dans des vapeurs

rouges, le tout rouge ; la douleur et les roulements de ventre, les chants

dans l’aurore ; le champ de l’excision au pied des montagnes aux sommets vaporeux, le soleil sortant tout rouge, tout noyé dans le sang, le viol, la nuit et les lampes brillantes et éteintes et fumantes et les cris et les jambes piétinées, contusionnées, les oreilles meurtries, les pleurs et les cris et le

pillage... (SI, p. 74, grifos nossos).

As palavras “sang”, “excision” e “viol”, que já tinham aparecido inúmeras vezes em outros fragmentos do romance, retornam e se tornam centrais. O vermelho do sangue traz à mente da personagem uma infinidade de sensações, que são expressas pelo narrador através da justaposição de substantivos, marcada, inclusive, por um uso exaustivo do conectivo de adição “e”. A relação de Salimata com o sangue é tão íntima e intensa que é capaz de fazê-la resgatar de sua memória o estupro do qual fora vítima, a violência, o calor, a pilhagem, o choro e tantos outros dramas que vivera em sua vida. Além disso, a justaposição dos substantivos garante à descrição (que geralmente é marcada por adjetivos) um ritmo semelhante ao da narrativa oral, em que as palavras são ditas à medida que vêm à mente, sem obrigatoriamente formarem períodos complexos e coesos.

Assim como no universo de Salimata, o sangue também se faz muito presente na vida do menino-soldado Birahima, em Allah n’est pas obligé. Nesse contexto, o sangue se torna uma metáfora para evocar a linha tênue entre a vida e a morte, uma vez que a violência da guerra transforma a existência e a sobrevivência em constantes conquistas.

O sangue, tão marcante por seu cheiro, sua cor e a violência que representa, está associado, na cena a seguir, a outros elementos que convocam os sentidos.

Vint un instant, un moment de silence annonçant l’orage . Et la forêt environnante a commencè à cracher tralala...tralala...tralala... de la

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 81-91)