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Retratos da descolonização

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 112-119)

3. Literatura menor

3.2. Minoridade etária: “destutela” e descolonização

3.2.1. Retratos da descolonização

Após analisar a época retratada em Allah n’est pas obligé – final do século XX – à luz da disciplina historiadora e do ensaio de Memmi, investigaremos mais detalhadamente como Kourouma encena esse mesmo período em sua obra, investigando em que medida esse estágio de “destutela” em relação ao Ocidente foi verificado e em que medida o Estado é capaz de representar uma instância tutelar para os cidadãos, de modo especial, para as crianças.

Como vimos nas análises relativas aos personagens do romance, muitos deles representam os chamados chefes de guerra, líderes de facções, independentemente de serem entidades ficcionais ou de encontrarem uma referência externa ao texto. Os personagens da obra de Kourouma encarnam características muito semelhantes às detectadas por Memmi. O Colonel Papa le bon, por exemplo, desfruta de um poder ilimitado: “À Zorzor, le colonel Papa le bon avait le droit de vie et de mort sur tous les habitants. Il était le chef de la ville et de la région et surtout le coq de la ville. À faforo ! Walahé (au nom d’Allah) !” (A, p. 71, grifo nosso)129.

A respeito do poder irrestrito dos líderes políticos, Memmi afirmou o seguinte: “a consequência desse poder ilimitado é a possibilidade de uma iniquidade sem limites” (MEMMI, 2007, p. 84). Essa constatação se verifica no romance, uma vez que a consequência da falta de limites para o poder do Colonel Papa le bon é uma justiça arbitrária, o que significa, na realidade, uma ausência completa de justiça. Durante a

129“Em Zorzor, o coronel Papai bonzinho tinha direito de vida e morte sobre todos os moradores. Ele era

estada de Birahima na facção de Papa le bon, o menino presencia um julgamento, para se descobrir e punir o responsável pelo assassinato de uma menina. Papa le bon presidiu o tribunal e recorreu ao seguinte recurso para descobrir o assassino: “Un couteau fut placé dans un réchaud aux charbons ardents. La lame du couteau devint incandescente. Les accusés ouvrirent la bouche, se tirèrent la langue” (A, p. 80)130. Aquele que vacilasse diante da faca incandescente seria o responsável e deveria ser punido. “Mais quand avec la lame le colonel Papa le bon se dirigea vers Tête brûlée, le commandant Tête brûlée recula et courut pour sortir de l’église (...) C’était lui le responsable, c’était lui qui avait tué la pauvre Fati” (A, p. 81)131. Os chefes de guerra, donos de um poder ilimitado, poderiam recorrer aos meios que desejassem para aplicar a justiça.

Em diversos outros trechos do romance, fica evidente que não há limites para a ilegalidade, e a luta pela liberdade se dá de modo extremamente violento. É o que ocorre no golpe dado por Samuel Doe, na Libéria, acontecimento que já analisamos no primeiro capítulo. Nesse evento, Doe organizou um complô contra os afro-americanos que detinham o poder e, através das armas e em nome da liberdade, instaurou uma nova ditadura, legitimada pela força e pela opressão:

Après la réussite du complot, les deux révoltés allèrent avec leurs partisans tirer du lit, au petit matin, tous les notables, tous les sénateurs afro- américains. (...) Au lever du jour, devant la presse internationale, les

fusillèrent comme des lapins. Puis les comploteurs retournèrent dans la ville. Dans la ville, ils massacrèrent les femmes et les enfants des fusillés et firent une grande fête avec plein de boucan, plein de fantasia, a vec plein de soûlerie, etc (A, p. 98, grifos nossos) 132.

Vemos acima um golpe de Estado, por parte do Sargento Doe, que foi sucedido de um ato de extrema violência para eliminar seus inimigos políticos. No entanto, fuzilar os líderes políticos não foi suficiente, e os responsáveis pelo complô acabaram por massacrar também os habitantes das cidades, civis, inclusive, mulheres e crianças. Para que o golpe de Estado obtivesse sucesso, Samuel Doe havia se aliado a Thomas

130 “Uma faca foi colocada num fogareiro cheio de carvões ardentes. A lâmina da faca tornou-se

incandescente. Os acusados abriram a boca, puseram a língua para fora” (A, p. 83).

131“Mas quando a lâmina do coronel Papai bonzinho dirigiu-se para Cabeça Queimada, o comandante

Cabeça Queimada recuou e saiu da igreja correndo. (...) Era ele o responsável, era ele que tinha matado a pobre Fati” (A, p. 83).

132“Depois so sucesso do complô, os dois revoltados foram com os partidários deles tirar da cama, de

madrugada, todas as personalidades, todos os senadores afro-americanos. (...) Quando nasceu o dia, eles os fuzilaram como coelhos, diante de toda a imprensa internacional. Depois os autores do complô voltaram para a cidade. Na cidade, eles massacraram as mulheres e os filhos dos fuzilados e fizeram uma grande festa na maior algazarra, numa euforia sem controle, na maior bebedeira e assim por diante” (A, p. 100, grifos nossos).

Quionkpa; entretanto, não havia lugar para os dois no poder e Doe se deu conta de que, para se manter no comando, era preciso eliminar Quionkpa. A solução por ele encontrada foi mudar o status da situação política, isto é, propor uma passagem da ditadura para a democracia:

Pour résoudre ces problèmes, Samuel Doe inventa un stratagème garanti.

(Stratagème signifie ruse, d’après mon dictionnaire le Petit Robert.) C’était simple ; il suffisait d’y penser. C’était le coup de la démocratie. La démocratie, la voix populaire, la volonté du peuple souverain. Et tout et

tout… (A, p. 100, grifo nosso)133.

Para poder garantir ao seu governo uma imagem de democracia, era preciso deixar o seu cargo militar e se tornar um civil. Para tanto, era preciso também adotar um discurso bastante convincente, que lhe atestasse legitimidade capaz de assegurar sua autoridade:

« J’ai été obligé de prendre le pouvoirpar les armes parce qu’il y avait trop d’injustice dans ce pays. Maintenant que l’égalité existe pour tout le monde et que la justice est revenue, l’armée va cesser de commander le pays.

L’armée remet la gestion du pays aux civils, au peuple souverain. Et pour

commencer, moi, solennellement, je renonce à mon statut de militaire, je renonce à ma tenue de militaire, à mon revolver. Je deviens un civil. » (A, p. 100, grifos nossos)134.

Para veicular a imagem de um sistema democrático, era necessário votar uma constituição e, em seguida, convocar eleições. Muitos países africanos tentaram realizar essa transição para a democracia através da proclamação da República. Todavia, o que se observou foi que muitos desses dirigentes acabaram por permanecer décadas no poder, o que revela que a democracia não aconteceu, de fato. Conforme observa J. Isawa Elaigwu, em seu capítulo escrito para a Histoire Générale de l’Afrique, “não era fácil, para pessoas educadas em uma cultura política colonial autoritária, realizar a transição para a democracia parlamentar, com seus valores de participação, de conciliação com a oposição política, e de tolerância”.135 É exatamente isso que

133 “Para resolver esses problemas, Samuel Doe inventou um estratagema garantido. (Estratagema

singnifica artimanha, segundo o meu dicionário Petit Robert. Coisa simples, bastava lembrar-se dela. Era o golpe da democracia. A democracia, a voz popular, a vontade do povo soberano. Etcetera e tal...” (A, p. 102, grifo nosso).

134“- Fui obrigado a tomar o poder pelas armas porque há injustiça demais nesse país. Agora que a

igualdade existe para todo mundo e que a justiça está de volta, o exército vai parar de comandar o país. O exército entrega de volta aos civis, ao povo soberano a gestão do país. E para começar, eu, solenemente, renuncio a meu estatuto de militar, eu renuncio a meu uniforme de militar, a meu revólver. Eu me torno um civil” (A, p. 102, grifos nossos).

135“il n’était pas facile, pour des gens éduqués dans une culture politique coloniale autoritaire, d’effectuer

la transition vers la démocratie parlementaire et ses valeurs de participation, de compromis avec les opposants politiques et de tolérance” (ELAIGWU, 1998, p. 473).

observamos através dos inúmeros eventos políticos mencionados por Kourouma em suas obras.

Nesse mesmo evento em que Samuel Doe se propõe a instaurar uma democracia na Libéria, vemos o seguinte comentário do narrador de Allah n’est pas obligé a respeito do processo eleitoral: “Et la constitution fut un dimanche matin votée à 99,99 % des votants. À 99,99 % parce que 100 % ça faisait pas très sérieux. Ça faisait ouya- ouya” (A, p. 101, grifo nosso)136. Após a aprovação da constituição, na semana seguinte: “on vota pour lui [Samuel Doe] à 99,99 % des votants en présence des observateurs internationaux. À 99,99 % parce que 100 % ça faisait ouya- ouya ; ça faisait jaser” (idem, grifo nosso)137. O narrador não explicita os meios através dos quais ele conseguira 99,99% dos votos; no entanto, a ironia de seu comentário deixa claro que o processo eleitoral não era digno de credibilidade alguma, colocando em questão a possibilidade de democracia na Libéria após tal processo.

O romance Allah n’est pas obligé retrata bastante a situação política da Libéria, porém, a partir do quinto capítulo, em que Birahima parte para uma facção da Serra Leoa, o contexto político deixa de ser o da Libéria e passa a ser o desse outro país. Ao representar a configuração política de Serra Leoa, o narrador tece um comentário que poderia resumir a situação de vários países africanos, isto é, uma sucessão de golpes de Estado em que os líderes que assumiam o poder gozavam de amplos poderes até serem vítimas de um novo golpe de Estado e serem eliminados pelo grupo sucessor:

Quand le dictateur détenteur du pouvoir devenait trop pourri, trop riche, un militaire par un coup d’État le remplaçait. S’il n’était pas assassiné, le remplacé sans demander son reste s’enfuyait comme un voleur avec le

pognon. Ce remplaçant devenait à son tour très pourri, trop riche, un autre par un autre coup d’État le remplaçait et, s’il n’était pas assassiné, il s’enfuyait avec le liriki (liriki signifie fric). Ainsi de suite (A, p. 163, grifos nossos)138.

Assim como aconteceu na Libéria, o processo eleitoral de Serra Leoa não foi digno de credibilidade alguma. Nesse caso, porém, a força foi empregada concretamente

136“E num domingo de manhã, a constituição foi aprovada numa votação com 99,99% dos eleitores,

porque 100% já seria demais e não pareceria sério. Dava impressão de uya-uya” (A, p. 103, grifo nosso).

137“ (...) 99,99% dos eleitores votaram nele [em Samuel Doe] na presença de observadores internacionais.

99,99% porque 100% também já seria demais e daria a impressão de uya -uya” (idem, grifo nosso).

138“Quando o ditador detentor do poder tornava-se podre demais, rico demais, um militar o substituía,

por meio de um golpe de Estado. Se ele não era assassinado, o substituído dava no pé que nem um ladrão que foge com a bufunfa. Aquele que o substituía, por sua vez, tornava-se podre demais, rico demais, então outro, através de outro golpe de Estado, o substituía e, se ele não fosse assassinado, fugia com o liriki (liriki significa grana). E assim por diante” (A, p. 168, grifos nossos).

para manipular o resultado das eleições, em um evento de caráter extremamente cruel. Trata-se do lema empreendido por Foday Sankoh: “Pas de bras, pas d’élections” (A, p. 168)139, que consistia em cortar os braços das pessoas para que elas não pudessem votar.

Il faut couper les mains au maximum de personnes, au maximum de citoyens sierraléonais. (...) On procéda aux « manches courtes » et aux «

manches longues ». Les « manches courtes », c’est quand on ampute les

avant-bras du patient au coude ; les « manches longues », c’est lorsqu’on ampute les deux bras au poignet (A, pp. 168-169, grifos nossos) 140.

Os fragmentos supracitados, além de retratarem a ausência de leis, a extrema crueldade dos atos políticos e a instabilidade desses países, são profundamente reveladores também de outro enorme problema comum a todas essas realidades: a corrupção. Os trechos “s’enfuyait comme un voleur avec le pognon” (idem), “il s’enfuyait avec le liriki (liriki signifie fric)” (idem) mostram as verdadeiras intenções dos líderes políticos: isto é, beneficiar-se do dinheiro público para garantir seus interesses pessoais. Como constatamos ao longo do romance, a corrupção é onipresente e se verifica não apenas nas altas instâncias de poder, mas em todo e qualquer âmbito social, político e econômico.

A corrupção não apenas paralisa a vida política, mas ameaça seriamente a economia, uma vez que os recursos naturais que o país possui, muitas vezes, são explorados ou traficados pelos chefes de guerra. É o que acontece, por exemplo, com os royalties da borracha, na Libéria, que vão diretamente para dois líderes guerrilheiros: Taylor e Samuel Doe.

La Compagnie américaine de caoutchouc était la plus grande plantation

d’Afrique. Elle couvrait d’un tenant près de cent kilomètres carrés. En fait,

tout le sudest du pays appartenait à la compagnie. Elle payait plein de royalties. (Royalties signifie redevance due au propriétaire d’un brevet ou

d’un sol sur lequel sont exploitées des richesses.) Les royalties étaient partagées entre les deux anciennes factions, la bande à Taylor et la bande à Samuel Doe(A, pp. 152-153 grifo nosso).141

Nas regiões de fronteira, espaço onde se passa o romance, há ainda outro modo de corrupção amplamente difundida: o controle aduaneiro. Muitas vezes dominado por

139“Sem braços, nada de eleições” (A, p 172).

140“Ele [Foday Sankoh] manda cortar as mãos do maior número de pessoas, do máximo possível de

cidadãos leoneses. (...) Procederam às mangas curtas e às mangas compridas. Mangas curtas é quando se amputa os antebraços do paciente na altura do cotovelo; mangas compridas é quando se amputa na altra

do punho.” (A, pp. 172-173, grifos nossos).

141“A Companhia Americana de Borracha era a maior plantação da África. Ela cobria um enorme terreno

de quase cem quilômetros quadrados. Na verdade, todo o sudeste do país pertencia à companhia. Ela pagava um monte de royalties. (Royalties significa débito que se tem para com o proprietário de uma patente ou de um solo sobre o qual são exploradas certas riquezas.) Os royalties eram divididos entre as duas antigas facções, o bando de Taylor e o bando de Samuel Doe” (A, p. 157, grifo nosso).

chefes de guerra locais, o controle da alfândega gera uma grande quantidade de dinheiro, por exemplo, ao permitir o contrabando. Desse modo, ambas as partes corruptoras se beneficiam, e a consequência é, de um lado, o enriquecimento dos líderes guerrilheiros e, de outro, o contrabando, por exemplo, de armas de fogo. O controle alfandegário encontra uma forma de se enriquecer, pois estabelece um valor aleatório, de acordo com o seu interesse, para as mercadorias que passam pela fronteira. Essa prática também se faz presente no romance, como vemos no seguinte trecho: “On arrive au camp retranché du colonel Papa le bon. Patrons du convoi descendent, ça rentre chez le colonel Papa le bon. Tout est déballé, pesé ou estimé. Les taxes des douanes sont calculées selon la valeur” (A, p. 53)142.

Não poderíamos deixar de mencionar o tráfico de diamantes, muito frequentemente associado a esses países da África Negra, visto que a região em questão é uma das mais ricas em diamantes no mundo. No entanto, as minas diamantíferas, frequentemente, estão nas mãos de chefes de guerra que usam o dinheiro da exploração dos metais para comprar armamentos e financiar as suas guerras. Tanto em sua passagem na Libéria, quanto em Serra Leoa, o narrador comenta essa situação. Na Libéria, as minas de ouro estavam sob o domínio da facção ULIMO, chefiada por Samuel Doe:

Parce que ULIMO avait beaucoup de dollars a méricains. Il avait beaucoup de dollars parce qu’il exploitait beaucoup de mines. (Exploiter, c’est tirer

profit d’une chose, d’après mon Larousse.) ULIMO exploitait des mines

d’or, de diamants et d’autres métaux précieux(A, p. 77, grifos nossos).143

Na Serra Leoa, quem detinha as minas diamantíferas era Foday Sankoh, o mesmo que promovera o supracitado episódio dos “manchots”:

Ce qu’il [Foday Sankoh] demande d’abord c’est l’expulsion du représentant de l’ONU, sa bête noire depuis le Congo. (Bête noire signifie personne

qu’on déteste le plus.) Il ne lâchera pas les mines de diamants et d’or qu’il

tient tant que le représentant de l’ONU résidera en Sierra Leone (A, p. 167, grifo nosso)144.

142“A gente chega no campo entricheirado do coronel Papai bonzinho. Os chefes do comboio descem, os

caras entram no campo do coronel Papai bonzinho. Tudo é aberto, pesado e avalisado. As taxas de

alfâdega são calculadas de acordo com o valor” (A, p. 55).

143“Porque o ULIMO tinha muitos dólares americanos. Tinha muitos dólares porque explorava muitas

minas. (Explorar é tirar proveito de uma coisa, segundo meu Larousse). O ULIMO explora va as minas de outro, de diamantes e de outros metais preciosos” (A, p. 80, grifos nossos).

144“O que ele [Foday Sankoh] pede primeiro é a expulsão do representante da ONU, seu mais execrado

inimigo desde o Congo. (Execrado significa o que mais se detesta e odeia.) Ele não vai largar as minas de diamante e ouro que ele tem nas mãos enquanto o representante da ONU continuar residindo em Serra Leoa” (A, p. 171, grifo nosso).

Donos das principais riquezas do país, esses chefes de guerra – os “bandits de grand chemin” segundo o narrador – acabam por representar uma autoridade maior que os líderes políticos eleitos, submetendo-os ao seu poder e influenciando as decisões políticas internas e externas do país; esse é o caso, por exemplo, da determinação de Foday Sankoh em expulsar os representantes da ONU da Serra Leoa, verificada no fragmento acima.

Apesar de essa situação ser de conhecimento geral, os líderes políticos encontram enormes dificuldades em lutar contra o tráfico, porém, sem sucesso: “Le general reconnaît lui-même, en août 1985, qu’il « ne possède pas les moyens d’éliminer le trafic de diamants ». C’est-à-dire la corruption” (A, p. 164, grifo nosso)145. Em outros trechos do romance, o narrador evoca a corrupção e comenta as tentativas de eliminá-la do cenário político; no entanto, todas parecem em vão:

La corruption continuait à sévir sous le colonel Juxton et ça n’a pas tardé.

Le 19 avril 1968, le colonel Juxton est renversé par un complot de sous- officiers qui créèrent un mouvement révolutionnaire anticorruption (ACRM).

Anticorruption ! (Rien que cela, Walahé !) Cela n’arrêta pas la corruption.

(A, p. 163, grifos nossos)146.

Após esse retorno às análises da conjuntura política e econômica dentro do romance, podemos concluir que, conforme observou Albert Memmi, reinavam nesses países da África negra a corrupção, a fome, a desigualdade. No entanto, esse cenário político é encontrado em inúmeros países do mundo, em todas as épocas da história; o que mais choca na realidade retratada por Kourouma é a carga de violência associada aos eventos políticos, nos quais os líderes políticos recorrem constantemente à força para legitimar sua autoridade. Palavras como “fusiller”, “massacrer”, “couper”, “amputer”, “tirer”, “assassiner”, observadas nos diversos fragmentos citados acima, são recorrentes ao longo de todo o romance, e empregados com grande naturalidade.

Evidentemente, esse Estado representado por Kourouma não é capaz de ser tutor de nenhum cidadão, muito menos das crianças, que acabam sendo as vítimas mais fáceis do sistema. A situação de guerra gera uma instabilidade generalizada, que acaba por eliminar também as outras instâncias tutoras da infância, como a família e a escola;

145“O general reconhece, ele próprio, em agosto de 1985, que ‘ele não dispõe dos meios para eliminar o

tráfico de diamantes’. Isto é, a corrupção” (A, p. 168, grifo nosso).

146“A corrupção continuava a causar estragos sob o governo do coronel Juxton, e a coisa não tardou. No

dia 19 de abril de 1968, o coronel Juxton foi derrubado por um complô de sub-oficiais que criaram um movimento anticorrupção (ACRM). Anticorrupção! (Nada mais, nada menos, Walahê!) Isso não deteve a corrupção” (A, p. 167, grifos nossos).

visto que o Estado não se ocupa da tutela das crianças, a única opção que lhes resta é se tornar criança-soldado, pois esse caminho representa um meio de sobreviver à guerra e ao caos. Na próxima seção, investigaremos as características específicas dessa infância não-prototípica retratada no romance.

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 112-119)