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O nacional e outras instâncias identitárias

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 61-68)

2. Construção político-identitária

2.2. Relações entre identidade e alteridade

2.2.2. O nacional e outras instâncias identitárias

Após analisar como Kourouma concebe e encena a nação em suas obras escritas anteriormente, investigaremos como estão presentes as referências à nação no romance

Allah n’est pas obligé. A visão de Kourouma acerca dessa questão não se tornou mais otimista, como podemos concluir a partir das citações a seguir.

As primeiras referências às nações africanas, tecidas desde as primeiras páginas do livro, mostram-nos o modo como se refere a países como a Guiné, a Costa do Marfim, a Gâmbia, a Serra Leoa, o Senegal: “on n’est pas fichu de gagner l’argent facilement comme agent de l’État dans une république foutue et corrompue comme en Guinée, en Côte-d’Ivoire, etc., etc.” (A, p. 8, grifos nossos)54; “C’est la sorte de nègres noirs africains indigènes qui sont nombreux au nord de la Côte-d’Ivoire, en Guinée et dans d’autres republiques bananières et foutues comme Gambie, Sierra Leone et Sénégal là-bas, etc.” (A, p. 8) (grifos nossos)55. Ao mencionar as repúblicas africanas, os adjetivos a elas associados são de caráter extremamente negativos, senão grosseiros. Ao longo de todo o romance, esses mesmos adjetivos aparecem inúmeras vezes associados a substantivos como república, nação ou país.

Somando-se às citações anteriores, há, ao longo do relato do menino-soldado, um questionamento pungente a respeito de seu destino em um contexto que não lhe oferece solução alguma: “Et quand on n’a plus personne sur terre, ni père ni mère ni frère ni soeur, et qu’on est petit, un petit mignon dans un pays foutu et barbare où tout le monde s’égorge, que fait-on?” (A, p. 94)56. Essa frase de Birahima é extremamente impactante, pois ela resume a condição em que ele vive, explicitando a razão pela qual ele se vê obrigado a se tornar criança-soldado. Mais uma vez, depreendemos a mesma carga negativa expressa pelos adjetivos “foutu” e “barbare”.

Em alguns trechos, surpreendemo-nos com adjetivos de nuance positiva associados às nações, como é o caso das seguintes citações:

Et comme il fallait un seul chef, un seul et unique chef d’État, Samuel Doe se proclama président et chef incontesté et incontestable de la République

unitaire et démocratique du Liberia indépendant depuis 1860 (A, p. 98, grifos nossos)57;

54“a gente não é capaz de ganhar dinheiro fácil como funcionário do Estado numa república miserável e

corrompida como a Guiné, a Costa do Marfim, etc., etc.” (A, p. 10).

55“É o tipo de pretos negros africanos nativos que são numerosos ao norte da Costa do Marfim, na Guiné

e em outras repúblicas de bananas estropiadas como a Gâmbia, a Serra Leoa e o Senegal, lá praqueles

lados, etc.” (A, pp. 10-11).

56“E quando a gente não tem mais ninguém nessa terra, nem pai, nem mãe, nem irmã, e a que a gente é

pequeno, um garotinho bonitinho num país desgraçado e bárbaro onde todo mundo é degolado, o que é

que a gente faz?” (A, p. 97).

57“E como era preciso apenas um chefe, um único chefe de Estado, Samuel Doe proclamou-se presidente

e chefe inconteste e incontestável da República unitária e democrática da Libéria indepedente desde

Aussi tout guérillero qui arrive chez lui est-il enfermé et reste-t-il enfermé :

on l’oblige à jurer qu’il combattra jusqu’à la mort le chef de guerre qui

voudra se présenter au suffrage universel ; le chef de guerre qui voudra être président ; le chef de guerre qui voudra commander le Liberia, la patrie

bien-aimée libérée (A, p. 131, grifo nosso)58.

Nesses trechos, de cunho evidentemente irônico, empregam-se os adjetivos “unitaire”, “démocratique” e “bien aimeé”, todos de nuance positiva, que representam um determinado ideário de pátria. Para compreender o uso desses atributos, cabe observar que eles estão associados a políticos, o que sugere que o seu emprego tece uma intertextualidade com discursos políticos, que são proferidos para convencer as massas, o que explica o seu forte caráter apelativo. Nesse contexto, usam-se vocábulos positivos em relação à nação, pois eles estão atrelados à imagem positiva que se deseja passar da mesma. Retomando o fragmento supracitado, muito emblemático da obra de Kourouma, “en politique, le vrai et le mensonge portent le même pagne” (SI, p. 157), podemos concluir que a verdade que se veicula nos discursos políticos, aos olhos de Kourouma, tem o mesmo valor que uma mentira. Nesse caso, os adjetivos “unitaire”, “démocratique” e “bien aimeé” são falaciosos e se aplicam apenas a discursos políticos vazios.

Na verdade, a ironia explícita do uso desses adjetivos torna-se evidente a partir da análise do restante da citação: os adjetivos “unitaire” e “démocratique” estão vinculados à política de Samuel Doe, que é questionada o tempo todo e descrita por seu caráter ditatorial e arbitrário. Além disso, na própria citação, o sentido de “democrático” é desconstruído, uma vez que “Samuel Doe se proclama président”, pondo em xeque todo o sentido da democracia, o que nos leva a crer que o seu governo, na realidade, era tirânico desde a sua instauração.

Na segunda citação, temos um procedimento semelhante: o uso do adjetivo “bien aimée” é absolutamente irônico, o que pode ser visto pelo restante da citação. Nota-se, mais uma vez, a falta de liberdade e o modo segundo o qual o governo está organizado: sob imposição, através da força e da ameaça da morte, num sistema de eleição em que o candidato é um “chefe de guerra”. O cidadão que deve lutar pela sua pátria “bem amada” é o mesmo ao qual se associam palavras como “enfermé”, “obligé”,

58“E também todo guerrilheiro que chega até ele é preso e permanece preso; ele é obrigado a jurar que vai

combater até a morte o chefe de guerra que quiser se apresentar ao sufrágio universal; o chefe de guerra que quiser ser presidente, o chefe de guerra que quiser comandar a Libéria, a pátria liberada bem-amada” (A, p. 135, grifo nosso).

“combat” e “mort”, isto é, não há liberdade alguma em se lutar pela pátria, o que faz com que o adjetivo “bien aimée” destoe completamente do contexto em que está inserido, significando, portanto, o oposto de seu conteúdo.

Em suma, podemos observar que a instância nacional é amplamente questionada ao longo do romance e denunciada por ser uma concepção falida desde o seu nascimento, por não prezar por seus princípios básicos, como a democracia e a liberdade; essas características estão presentes apenas nos discursos, mas não se verificam na realidade. A busca da identidade não está, pois, associada a critérios nacionais, o que não significa que ela não esteja presente; como vimos, há outras instâncias identitárias às quais os personagens se filiam. Ao invés de pautar a sua identidade coletiva a partir de um recorte nacional, o narrador leva em conta, de modo muito mais recorrente, a instância étnica como referencial identitário. Essa instância abarca fatores raciais, culturais e também linguísticos, uma vez que a sua língua materna é homônima à sua etnia. Esse referencial será central para a compreensão identitária do protagonista do romance, mas também terá grande impacto em questões políticas na região da África em questão.

No que se refere ao narrador Birahima, em diversos momentos, ele reafirma a sua pertença à etnia malinké, frisando a sua importância no seu modo de falar, nos seus costumes e em eventos de sua vida. Ele justifica, desde o início de seu relato, o uso de palavras de sua língua malinké, e ao longo de todo o romance, ele mescla vocábulos dessa língua e da língua francesa, convocando elementos e paisagens típicos de sua cultura, fato que se pode verificar no exemplo a seguir e que será analisado detalhadamente no próximo capítulo.

J’emploie les mots malinkés comme faforo! (Faforo signifie sexe de mon père ou du père de ton père.) Comme gnamokodé ! (Gnamokodé ! signifie

bâtard ou bâtardise.) Comme Walahé ! (Walahé ! signifie Au nom d’Allah.) Les Malinkés, c’est ma race à moi (A, p. 8, grifo nosso)59.

Ele explica eventos de sua vida com base em tradições, leis e princípios de sua etnia, como vemos nos exemplos a seguir. “C’est à mon oncle Issa que devait appartenir maman après le décès de mon père, c’est lui qui devait automatiquement

59“Eu uso as palavras da língua malinquê que nem faforo! (Faforo! Significa caralho do meu pai ou do

teu pai). Que nem gnamokodê! (Gnamokodê! Significa filho-da-puta ou puta-que-pariu). Que nem Walahê! (Walahê significa Em nome de Alá). Os malinquês, essa é minha raça” (A, p. 10, grifo nosso).

marier ma mère. C’est cela la coutume des Malinkés” (A, p. 27)60. Ao se tomar uma importante decisão na vida do menino, no momento de decidir quem seria a sua tutora após a morte de sua mãe, os critérios usados também se vinculam às leis e costumes dos malinkés:

Ils ont décidé, en raison des lois de la famille chez les Malinkés, que ma tante était devenue, après la mort de ma maman, ma seconde mère. La

seconde mère est appelée aussi tutrice. C’était ma tante, ma tutrice, qui devait me nourrir et m’habiller et avait seule le droit de me frapper, injurier

et bien m’éduquer. (A, pp. 32-33, grifo nosso)61.

Outro fato importante na infância do menino foi a sua circuncisão e a sua iniciação, que ele descreve com poucos detalhes, para não desrespeitar a ordem de não revelar o que acontecera nesse momento àqueles que ainda não foram iniciados. Mais uma vez, a lei que o menino está seguindo é aquela dos malinkés: “Ça fait très mal. Mais c’est cela la loi chez les malinkés” (A, p. 34, grifo nosso). 62

Além dessas referências à cultura malinké no que diz respeito à vida e à visão do menino, podemos também depreender do romance a importância das divisões dos grupos segundo critérios raciais e étnicos na construção política desses países. O romance Allah n’est pas obligé retrata um importante capítulo da história da Libéria, que pode ser considerado uma causa da guerra tribal: a inimizade entre os chamados “nègres noirs afro-américains” e os “natives”. A categoria de “nègre noir africain indigène” também é usada inúmeras vezes pelo narrador e ele se associa frequentemente a ela; como analisamos anteriormente, essa instância leva em conta fatores raciais, a partir do uso das palavras “nègre” e “noir”, mas também considera as origens do continente africano. Através da fala do narrador, é possível concluir que essa classificação é maior do que a categoria étnica, pois envolve diversos grupos étnicos, como os malinkés, os krahns, os gyos, os guéré.

Les habitants étaient des Yacous et des Gyos. Les Yacous et les Gyos,

c’étaient les noms des nègres noirs africains indigènes de la région du pays. Les Yacous et les Gyos étaient les ennemis héréditaires des Guérés et des

60“Era ao meu tio Issa que mamãe devia pertencer depois do falecimento de meu pai, com ele é que devia

automaticamente se casar minha mãe. Esse é o costume dos malinquês” (A, p. 29).

61“Eles decidiram, em razão das leis de família próprias dos malinquês, que minha tia tinha se tornado,

depois da morte de minha mãe, minha segunda mãe. A segunda mãe também é chamada de tutora. Era minha tia, minha tutora, que devia me alimentar, me vestir e só a ela cabia o direito de me bater, xingar e

educar bem” (A, pp. 34-35, grifo nosso).

Krahns. Guéré et Krahn sont les noms d’autres nègres noirs africains indigènes d’une autre région du foutu Liberia (A, p. 71)63.

Como se pode ver, todos esses grupos citados pelo narrador estão englobados dentro da classificação de “nègre noir africain indigène”, apesar de serem inimigos.

No evento histórico em questão, que envolve o líder político Samuel Doe, a oposição se dá entre os “nègres noirs africains indigènes” et os “nègres noirs afro- américains”:

Lui, sergent Doe, et certains de ses camarades ont eu marre de l’arrogance

et du mépris des nègres noirs afro-américains appelés Congos à l’égard des natives du Liberia. Les natives, c’est les nègres noirs africains indigènes du pays. Ils sont à distinguer des nègres noirs afro-américains, les descendants des esclaves libérés (A, p. 97)64.

Para tirar do poder os “nègres noirs afro-américains” que, segundo o narrador, adotavam uma postura colonialista diante dos nativos, o sargento Samuel Doe, da etnia krahn, e Thomas Quionkpa, da etnia gyo, juntaram-se e planejaram um golpe de estado, que foi bem-sucedido, provocando a morte dos líderes que estavam até então no poder, através de um fuzilamento de uma tremenda violência. Após essa conquista dos nativos surge, portanto, um impasse: não era possível dividir o poder entre duas pessoas, o que levou Samuel Doe a se proclamar presidente e a tomar atitudes para eliminar Thomas Quionkpa da cena política.

Evidentemente, essa traição por parte de Doe não foi bem aceita por Thomas Quionkpa, que planejou um complô contra ele, dando início a uma enorme disputa entre as suas respectivas etnias: Avec des officiers, des cadres gyos comme lui, Thomas Quionkpa monta effectivement un vrai complot” (A, p. 101, grifo nosso)65. Primeiramente, Quionkpa é derrotado e Doe triunfa: Voilà Samuel Doe heureux et triomphant, le seul chef, entouré des seuls cadres de son ethnie krahn. La République

63 “Os habitantes eram yacus e gyos. Yacus e gyos eram nomes de negros pretos africanos nativos

daquela região do país. Os yacus e os gyos eram inimigos hereditários dos guerês e dos krahns. Guerê e krahn são nomes de outros negros pretos africanos nativos de outra região da Libéria desgraçada” (A, p. 73).

64“Ele, sargento Doe, e alguns de seus camaradas ficaram cheios da arrogânciae do desprezo dos negros

afro-americanos chamados de congos em relação aos nativos da Libéria. Os nativos são os negros pretos africanos originários do país. Eles deviam ser diferenciados dos negros pretos afro-americanos, os

descendentes dos escravos alforriados” (A, p. 99).

65“Com oficiais e altos funcionários gyos que nem ele, Thomas Quionkpa montou, de fato, um verdadeiro

de Liberia devint un État krahn totalement krahn. Cela ne dura guère” (A, p. 102, grifos nossos)66.

Essa disputa se prolonga e tem como consequência muitos massacres, com mortes extremamente violentas, dando origem à guerra tribal na qual o país mergulha durante muitos anos.

Les soldats du renfort tombèrent dans un guet-apens, ils furent tous massacrés, tous tués, tous émasculés et leurs armes récupérées. Les cadres gyos, les mutins, avaient des armes, beaucoup d’armes. C’est pourquoi on dit, les historiens disent que la guerre tribale arriva au Liberia ce soir de Noël 1989 (A, pp.102-103)67.

A guerra tribal, cenário do romance em questão, é explicada sob uma perspectiva histórica, como vimos acima, mas ela é onipresente na vida dos personagens, sobretudo do protagonista. Podemos observar o quanto essa rivalidade entre as etnias se torna a causa de muitos conflitos, obrigando um grupo a fugir constantemente do outro para não ser massacrado. Encontrar a tia do menino, objetivo perseguido pelo personagem desde o segundo capítulo do livro, torna-se uma tarefa impossível, pois ela está constamente sob a ameaça das tribos inimigas; em um primeiro ataque, seu marido é morto e, mais adiante, ela própria se torna vítima, impossibilitando, para sempre, o encontro entre o menino e sua tia, como vemos no trecho a seguir:

C’est les Krahns, dit-il. Ils n’aiment pas les Mandingos. Ils veulent pas voir

des Mandingos au Liberia. Les Krahns sont arrivés. Ils lui ont écrasé la tête; ils lui ont arraché la langue et le cul. La langue et le sexe pour rendre les fétiches plus forts. Sa femme, la bonne Mahan, a vu ça, elle a vite couru

et s’est cachée (...) (A, p. 126, grifo nosso)68.

Após considerar esses exemplos tirados do romance Allah n’est pas obligé, podemos concluir que o fundamento da identidade coletiva não se pauta em critérios nacionais; ao contrário, as nações são vistas com grande desconfiança, por representarem um modelo de organização que não foi capaz de solucionar os problemas políticos e econômicos e, sobretudo, de garantir uma convivência pacífica entre povos

66“E lá estava Samuel Doe feliz e triunfante, chefe único, rodeado apenas pelos altos funcionários de sua

etnia krahn. A República da Libéria tornou-se um estado krahn, totalmente krahn. Isso não durou quase

nada” (A, p. 104, grifos nossos).

67“Os soldados enviados como reforço caíram numa armadilha, foram todos massacrados, mortos, todos

eles castrados e as armas deles recolhidas. Os funcionários gyos, os amotinados, tinham muitas, muitas armas. Por isso se diz que a guerra tribal chegou na Libéria naquela noite de Natal de 1989” (A, p. 105).

68 “- Foram os krahns – disse ele. Eles não gostam dos mandingos. Eles não querem mais saber de

mandingos na Libéria. Os krahns chegaram. Eles esmagaram a cabeça dele; eles arrancaram a língua e o pau dele. A língua e o sexo, que é para poder fazer os feitiços mais fortes. A mulher dele, a boa Mahan,

diferentes. A pretensa unidade nacional, que funcionou em diversos países europeus séculos antes, não foi capaz de eliminar antigas rivalidades entre etnias e, sobretudo, sobrepor-se aos interesses de pequenos grupos, sedentos de poder, prestígio e dinheiro.

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 61-68)