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A voz, o tempo e o espaço

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 34-40)

2. Construção político-identitária

2.1. Percepções do passado e do presente

2.1.2. A voz, o tempo e o espaço

Somando-se aos fatores analisados acima, poderíamos ainda elucidar a distinção entre o discurso literário e o discurso histórico investigando outros traços característicos de textos literários. Para estudar mais detalhadamente a estrutura adotada por Kourouma na tessitura do romance Allah n’est pas obligé, aprofundaremos elementos como o tempo, a voz narrativa e a construção dos personagens. As reflexões acerca desses aspectos serão elaboradas à luz das considerações de Gérard Genette, que auxilia a compreensão de elementos narrativos, como a voz, o tempo e o espaço.

As quatro primeiras páginas do romance constam da apresentação de um personagem que narra em primeira pessoa; é impossível, pois, menosprezar a presença desse narrador que, desde o início, postula a sua personalidade revelando o seu desejo de busca e de compreensão de sua própria identidade. O narrador se impõe, portanto, como um elemento central para a construção da narrativa, exigindo uma análise particular, tendo em vista a sua necessidade de tomada de consciência identitária. Em sua apresentação, o narrador, Birahima, fornece diversas informações sobre si, levando- nos a construir uma identidade formada a partir de seu julgamento sobre si mesmo. “M’appelle Birahima. Suis p’tit nègre. Pas parce que suis black et gosse. Non ! Mais suis petit nègre parce que je parle mal le français” (A, p. 7)20. Nas primeiras linhas do texto, Birahima faz questão de justificar seu modo de falar, estabelecendo como forte elemento identitário o fato de não dominar a língua francesa; o domínio desse idioma pressupõe o acesso à escolarização, direito do qual ele não desfrutou. Outras instâncias de sua identidade serão apresentadas pelo narrador e serão analisadas na próxima seção. Visto que se trata de ficção, vale lembrar que o papel do narrador é também um papel fictício; não se pode confundir a figura desse narrador fictício com a do autor. Sabemos que Ahmadou Kourouma escreveu esse livro para responder a uma demanda de meninos-soldados do Djibuti, que lhe pediram para falar da vida deles, o que está escrito na dedicatória do romance: “Aux enfants de Djibouti: c’est à votre demande que ce livre a été écrit” (A, p. 5)21. Por mais que Kourouma conheça muito bem a realidade sobre a qual escreve, a partir do momento em que se dá voz ao narrador, não podemos

20“Meu nome é Birahima. Sou um neguinho. Não porque sou black e moleque. Não! Mas sou neguinho

porque falo mal francês” (A, p. 9).

confundir o “eu” do narrador com o “eu” do autor; analogamente, o “aqui” e “agora” se referem ao tempo da narração e não ao tempo da escrita do romance.

Vemos, portanto, que há um “eu” que toma a palavra desde o início da narração e podemos atribuir essa voz ao personagem Birahima. Contudo, após uma leitura mais profunda do romance, é possível detectar a presença de outro narrador, ou seja, de um outro nível narrativo, como o denomina Genette. No nível extradiegético, situa-se outro “eu” que narra a história, mas que não se apresenta e não faz questão de ser identificado. Esse narrador extradiegético se retira diversas vezes da sua posição de narrador e dá voz a Birahima que, na verdade, situa-se no nível diegético. Produz-se, pois, uma narração dentro da narração primeira; há um “eu” narrado por um outro “eu”: um narrador historicamente consciente que dá voz a uma criança.

É possível fazer essa análise, uma vez que sabemos que Birahima é uma criança e que, apesar de ver e viver diversas realidades que extrapolam o universo infantil, ele tem, no máximo, doze anos. Ao longo da narração, há o relato de diversos acontecimentos históricos que são narrados a partir de uma consciência crítica e histórica que não pode ser atribuída a uma criança de doze anos, por mais madura que seja. Nesses momentos, o narrador extradiegético retoma a palavra para situar historicamente os relatos de Birahima. Evidentemente, a linha que separa esses dois níveis diegéticos não é claramente delimitada, e essas duas vozes se confundem e se entremeiam; porém, de um modo geral, o jogo narrativo se dá quando a narração passa de uma macrorrealidade – a história de países da África, sua situação política e econômica – a uma microrrealidade – as aventuras de Birahima, seus pensamentos, suas percepções, seus relatos.

Retomando o que dissemos anteriormente, o livro tem início com a apresentação do narrador, em primeira pessoa; nesse momento, encontram-se o início e o fim da história, pois, ao final do romance, chegamos ao ponto de partida da narrativa: o momento em que Birahima se apresenta e conta as suas memórias, o que nos remete ao início do livro. No final do romance, o tempo da narração encontra o tempo da história e, por poucas linhas, o tempo verbal utilizado é o presente, pois se trata do grau zero da narrativa, que, por definição, é justamente o momento de isotopia temporal entre a narração e a história. Após esse breve momento, o tempo da narração é posterior ao da história, que passa a ser contada no passado.

A marcação e a medida dessas anacronias narrativas (...) postulam implicitamente a existência de uma espécie de grau zero que seria um estado de perfeita coincidência temporal entre a narração e a história.22

O lugar da narração é um carro dentro do qual o narrador concluiu a sua viagem em busca de sua tia – busca, inclusive, frustrada, visto que sua tia acabara de morrer no momento em que ele chegou à sua aldeia. No final do romance, portanto, temos exatamente o início das memórias de Birahima, momento em que ele relata a sua infância, a morte de sua mãe, a sua viagem à procura da tia – familiar que se tornaria sua tutora após ele ter ficado órfão – e, finalmente, como se tornara menino-soldado, participando ativamente da guerra tribal. O lugar da história, porém, não é único; ao contrário, a história se passa em diversos lugares, começando na aldeia natal de Birahima e seguindo o percurso do narrador, em países fronteiriços da África, durante a sua viagem.

A duração da narrativa e a duração da história também não são idênticas. Ao final do romance, o narrador fornece indicações bem precisas do intervalo de tempo de uma e de outra. A duração da narração é bastante curta, de apenas alguns dias, ao longo de uma viagem que Birahima, Yacouba e seu primo Mamadou fazem em direção a Abidjan: “J’ai continué à conter mes salades pendant plusieurs jours” (A, p. 222, grifo nosso).23 Por outro lado, a duração da história é mais longa; ela inclui os anos da infância de Birahima e, sobretudo, os três anos vividos em meio à guerra tribal, como nos indica o fragmento a seguir: “La tante Mahan était la malheureuse que nous cherchions, nous aussi, depuis plus de trois ans dans ce Liberia de la guerre tribale” (A, p. 209, grifo nosso).24

O tempo da narrativa, em alguns momentos, é bem marcado, com a referência temporal exata, o que aponta para uma aproximação com a história visando a situar os eventos ficcionais em um tempo histórico. No entanto, o tempo da narrativa não é sempre linear, pois é permeado de voltas ao passado e saltos para o futuro, nem sempre claramente datados. Em alguns momentos, o narrador opta por não situar claramente as suas ações no tempo, deixando bem clara essa opção: “Aujourd’hui, ce 25 septembre

22“Le repérage et la mesure des ces anachronies narratives (...) postulent implicitement l’existence d’une

sorte de degré zéro qui serait un état de parfaite coïncidence temporelle entre récit et histoire” (GENETTE, 1972, p. 79).

23“Eu continuei a contar minhas bobagens durante vários dias” (A, p. 225, grifo nosso).

24“A tia Mahan era a infeliz que a gente estava procurando, a gente também, há mais de três anos,

199…” (A, p. 128)25. Essa citação revela que as ações contadas pelo narrador poderiam ter acontecido em qualquer ano da década de noventa e que a data não é relevante para aquele trecho da narrativa.

Essas estratégias narrativas são típicas de um texto ficcional que, inclusive, não deixa de lançar mão da magia para explicar seus eventos. Os feitiços e os rituais são parte constitutiva do romance e, com frequência, são usados para justificar eventos históricos, mudanças no destino dos personagens. Muitas mortes acontecem por causa dos “fétiches”, como é o caso do Colonel Papa le bon, um chefe de guerra (o que será analisado mais detalhadamente a seguir); a explicação sobre a sua morte repousa no desrespeito aos “fétiches”.

Les balles ont traversé le colonel Papa le bon malgré les fétiches de

Yacouba. Yacouba a expliqué: le colonel avait transgressé des interdits

attachés aux fétiches. D’abord, on fait pas l’amour avec un grigri.

Secundo, après avoir fait l’amour, on se lave avant de nouer des grigris.

Alors que le colonel Papa le bon faisait l’amour en pagaille et dans tous les

sens sans avoir le temps de se laver. Et puis il y avait une autre raison. Le colonel n’avait pas fait le sacrifice de deux boeufs écrit dans son destin.

S’il avait fait le sacrifice de deux boeufs, il ne se serait jamais aventuré seul

dans la prison. Le sacrifice de deux boeufs aurait empêché la circonstance

(A, p. 85, grifos nossos)26.

Após essa breve análise a respeito da voz, do tempo e do espaço da narrativa, podemos notar que há uma relativa flexibilidade quanto a esses elementos; em outras palavras, é possível detectar que o leitor atravessa, sem aviso, universos temporais e diegéticos que se transformam e se mesclam a todo instante. A voz de Birahima, narrador diegético, mescla-se com a voz do narrador extradiegético, sem que o leitor possa delimitar claramente onde isso começa e até onde vai. O tempo da narrativa percorre movimentos diversos, sendo linear, em determinados momentos, cíclico, em outros, e também passando por saltos entre passado e presente. Como diz a pesquisadora Aurélia Mouzet a respeito do modo de narrar empreendido por Kourouma, “o realismo mágico da obra autoriza, de fato, os deslizamentos espaciais e temporais

25“Hoje, nesse dia 25 de setembro de 199...” (A, p. 131).

26“As balas atravessaram o coronel Papai bonzinho apesar dos feitiços de Yacuba. Yacuba explicou: o

coronel tinha transgredido as proibições que iam junto com os feitiços. Primeiro, não se transa com um grigri no corpo. Segundo, depois de ter transado, é preciso se lavar muito bem antes de pendurar de novo os grigris. Ao passo que o coronel Papai bonzinho, quando transava, era na maior confusão e de qualquer jeito, sem ter tempo de se lavar. E depois tinha outra razão. O coronel não tinha sacrificado os dois bois como estava escrito no destino dele. Se ele tivesse sacrificado aqueles dois bois, ele jamais teria se aventurado daquele jeito na prisão. O sacrifício dos dois bois teria impedido aquelas circunstâncias (A, pp. 87-88, grifos nossos).

mais variados, permitindo, assim, que o leitor viaje entre realidade e supra-realidade diegéticas” 27. Para ilustrar essa afirmação, cabe mergulhar mais a fundo no romance e verificar como se articulam o tempo e a construção dos personagens.

No primeiro capítulo, temos um panorama da infância do protagonista e o tempo da narrativa, de um modo geral, segue de maneira linear, acompanhando o crescimento do menino, junto à sua mãe, evoluindo segundo a doença da mãe, até chegar à sua morte, deixando o menino órfão. Entretanto, alguns comentários e explicações relativos à juventude da mãe são feitos, o que acarreta numa volta ao passado, para melhor situar o presente da narrativa.

Um dos grandes impactos na vida do menino é a doença da mãe, que não lhe permite andar, e que torna o ambiente da casa bastante pesado, com cheiros característicos e rastros da doença – o pus, o sangue –, elementos que marcaram profundamente os anos iniciais da vida do protagonista. Para tentar compreender a origem dessa doença, é preciso voltar ao passado, a eventos vividos pela mãe no passado, sobretudo a sua excisão. A morte da mãe e a consequente orfandade do menino, cujo pai era extremamente ausente, constituem um conflito inicial que justificará o resto do romance, isto é, o seu engajamento na guerra tribal, como se pode compreender a partir da seguinte citação: “Quand on n’a pas de père, de mère, de frère, de soeur, de tante, d’oncle, quand on n’a pas rien du tout, le mieux est de devenir un enfant-soldat, c’est pour ceux qui n’ont plus rien à foutre sur terre et dans le ciel

d’Allah” (pp. 118-119, grifos nossos)28.

Logo, o primeiro capítulo é constituído pela narração da infância de Birahima, que é permeada por eventos e personagens fictícios, sem referência externa; trata-se de uma microrrealidade, em que a narrativa ficcional ainda não é determinada por eventos políticos externos. A partir de então, inicia-se a trajetória do menino em meio à guerra tribal, quando a história do menino encontra a História, o que exige uma intensa relação entre passado e presente, uma vez que o presente de cada personagem é decorrência do passado do país.

27“le réalisme magique à l’oeuvre autorise en effet les glissements spatio-temporels les plus variés et

permet ainsi au lecteur de voyager entre réalité et supra-réalité diégétiques” (MOUZET, 2013, p. 43).

28“Quando a gente não tem pai, mãe, irmão, irmã, tia, tio, quando a gente não tem mais coisa nenhuma, o

melhor é se tornar uma criança-soldado. Ser criança-soldado é para os que não têm mais nada o que procurar na terra o no céu de Alá” (A, p. 121, grifos nossos).

Daí em diante, o romance passa a ter uma estrutura cíclica, marcada por eventos que se assemelham e que se repetem ao longo do tempo. A passagem do menino pelas diversas facções da guerra segue uma estrutura semelhante, que se repete a cada mudança de grupo ao qual ele se filia. Primeiramente, temos a apresentação do chefe de guerra local, responsável pela região em que se encontra o protagonista: trata-se de um personagem ficcional, que é o representante do líder de uma facção. Em segundo lugar, temos a apresentação desse grande líder, que é um personagem cuja referência existe na realidade. Em seguida, há a descrição das atividades realizadas pelo chefe local, bem como a forma segundo a qual ele garante o seu poder. Em quarto lugar, encontramos a descrição espacial da região comandada pelo chefe de guerra.

Após contextualizar os personagens fictícios, históricos e o espaço, o narrador conta as cenas que vira com seus próprios olhos, a sua experiência vivida em meio à guerra. Para justificar a mudança dos rumos do personagem, surge um elemento ou um novo personagem que desestabiliza a estrutura até então estabelecida e obriga o protagonista a mudar de lugar e a se juntar a uma nova facção, que mudará os nomes dos sujeitos e dos espaços, porém não será capaz de alterar a condição do menino. A justificativa para as mudanças espaciais reside na esperança de encontrar a sua tia, busca eternamente frustrada uma vez que Birahima chega aos novos vilarejos ou cidades junto com a guerra tribal, fazendo com que a sua tia fuja da localidade em que encontrava e se instale em outro, sem que o objetivo do menino seja alcançado.

Ao longo de suas desventuras, o menino passa por seis facções de guerra, isto é, a NPFL (Front National Patriotique du Libéria), a ULIMO (Mouvement uni de libération pour le Libéria), a facção de Prince Johson, a RUF (Front révolutionnaire uni), a facção de Johnny Koroma e a facção de El Hadji Koroma. Os três primeiros são grupos guerrilheiros da Libéria, enquanto que os três últimos atuam na Serra Leoa. A estrutura da narrativa é bastante semelhante em cada passagem do menino pelas facções, e a organização segue, de modo global, o esquema apresentado no parágrafo acima.

Na primeira facção, temos como chefe local o Colonel Papa le bon (personagem ficcional), como líder do grupo, Taylor (personagem histórico) e como cenário, Zorzor (pequeno vilarejo na fronteira entre a Libéria e a Guiné). Na parte referente à ULIMO, a estrutura é a mesma: temos, respectivamente, o General Baclay, o líder Samuel Doe e o

vilarejo de Sanniquelie (outro pequeno vilarejo entre a Libéria e a Guiné). Na terceira facção, a estrutura é semelhante e temos, respectivamente, a freira Marie-Béatrice, o líder Prince Johnson e a cidade de Monróvia (capital da Libéria). No RUF, o personagem ficcional que comanda a facção é o General Tieffi, o líder que encontra uma referência externa ao texto é Foday Sankoh e o vilarejo em que se passa a ação é Mile-Thirty-Eight (um checkpoint a trinta e oito milhas de Freetown, capital da Serra Leoa). Na quinta facção, temos como personagem ficcional o chefe de guerra Sourougou, como personagem histórico o líder Johnny Koroma e como cenário a capital de Serra Leoa, Freetown. Na sexta e última facção, as descrições são muito breves, pois há poucas ações na passagem de Birahima por esta facção.

Essa estrutura cíclica mergulha o romance – e o protagonista – em um jogo temporal, em que se misturam e entremeiam o tempo da narrativa e o tempo histórico, e que possibilita diversas interpretações: uma delas leva em conta o ritmo da narrativa, que será analisado mais adiante; esse ritmo tem características específicas, mas, em suma, implica um avanço da narrativa que não se baseia no acréscimo de informações, mas na sua repetição, que tem por efeito enfatizar o seu impacto. Ademais, o movimento cíclico da narrativa revela a impossibilidade do protagonista de se afastar da guerra, fazendo com que ele seja sempre obrigado a reintegrar uma nova facção.

A repetição da estrutura da narrativa na passagem do menino pelas diversas facções evidencia a semelhança entre as diversas facções e seus líderes; em outras palavras, podemos dizer que, apesar de os chefes de guerra se declararem partidários de ideologias opostas, a sua atuação e legitimação do poder acaba sendo a mesma e, em todos os casos, incapaz de oferecer ao país uma solução para os conflitos. Enfim, os líderes e as ideologias podem mudar de nome, mas a situação permanece sempre a mesma. Birahima percorre diversas facções, com promessas diversas, porém todas acabam por dar continuidade à mesma realidade: à guerra, à violência, à arbitrariedade e ao exército de crianças na linha de frente dos combates.

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 34-40)