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A fronteira setentrional

No documento HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA (páginas 174-178)

Durante muito tempo, houve o hábito de se olhar a zona subsaariana com aquilo que se pode chamar “os óculos do Islã”, ou seja, a ver a sua história exclusivamente pelos olhos da sociedade muçulmana estabelecida na África do Norte, de onde provém a maioria das nossas fontes escritas. É indiscutível que o período muçulmano e a nova situação que ele instaura no Magreb representam uma importante etapa para o conhecimento da zona subsaariana. O estudo dos povos do Sudão inscreve -se, antes, neste quadro, pois que a cultura e a sociedade árabe -muçulmana veiculam representações que condicionam as suas relações com o Sudão. Estes são materiais não negligenciáveis para a história e as fon- tes árabes gozam de uma consideração favorável, fortalecido pelo prestígio do escrito tão estimado junto às “pessoas do Livro”. Porém, fazendo um leve recuo em relação a esta postura muito difundida, constatamos que o conhecimento do Sudão e dos seus povos é, em larga escala, orientado e determinado pelas preocupações do mundo muçulmano oriental e magrebino.

A tendência a definir o “país dos negros” a partir do Norte da África é muito antiga; ela mergulha as suas raízes na Antiguidade onde “o mundo conhe- cido”, gravitando em torno da bacia mediterrânea, polariza toda a geografia do mundo. Esta estrutura não evoluiria fundamentalmente durante o período islâmico. Ademais, esta predominância do Norte no tocante ao conhecimento da África Subsaariana, ao menos até o século IX/XV, reflete -se em numerosos trabalhos contemporâneos que não são, entretanto, obra de apóstolos do difusio- nismo. Esta situação teve como consequência provocar um desequilíbrio entre a abundância dos escritos sobre a circulação trans -saariana antiga e medieval e as consideráveis lacunas que caracterizam o conhecimento dos povos negros

desta mesma época. Contudo, esta constatação aparenta ser precisamente uma razão suficiente para examinar o ambiente setentrional do Sudão que toca, por intermédio do meio saariano, o mundo berbere.

Os berberes desempenharam um importante papel no Oeste africano, do ponto de vista dos movimentos populacionais. Desde a Pré -História, eles inter- vieram constantemente no quadro do Saara, até as suas bordas meridionais. Atribui -se a alguns destes antigos ocupantes do deserto do Fezzān, os gara- mantes, um papel de ativos intermediários entre a província África e o “país dos negros”, na época romana10.

Jamais realmente incluídos na zona controlada pelas sucessivas hegemonias da África do Norte, dos cartagineses até Bizâncio, os berberes viram as suas pos- sibilidades de mobilidade, em direção ao deserto, fortalecidas pala multiplicação dos dromedários. O seu espírito de independência, quer se tenha manifestado no passado pela criação de reinos e domínios sedentários bem ao Norte ou pela constituição de grandes confederações nômades, nas margens do deserto ou no próprio Saara, conduziu -os a manifestarem uma duradoura oposição ao novo poder árabe; esta oposição expressa -se através de diversos movimentos de resistência, mas, sobretudo, pela acolhida favorável que reservaram à doutrina heterodoxa do kharidjismo11.

Foram precisamente os principados e os centros controlados pelos kharidjitas que tiveram a iniciativa no referente às relações comerciais com o Sudão, desde o final do século II/VIII. Os djabal nafūsa, wargla, tāhert e sidjilmāsa estiveram, por várias razões, engajados em tais iniciativas12.

No Oeste, os berberes reuniram -se em uma vasta confederação que al -Fazārī (século II/VIII) denomina Estado de Anbiyā, provavelmente formado pelos grupos massūfa, lamtūna e djuddāla13. Al -Ya’kūbī classifica -os entre os sanhādja,

cujo papel era importante em todo Saara Ocidental. Este vasto conjunto encontrar -se -ia, no Sul, em contato com a área controlada por Gana. Outro grupo de berberes justapõe -se ao “país dos negros”, os hawwāra, cujo habitat de origem era a Tripolitânia. Para escaparem da conquista, eles se movimentam para o Oeste e, pelo Magreb, participam dos diferentes levantes dirigidos contra o poder árabe. No século II/VIII, eles aderem ao kharidjismo. Após a última

10 Conferir R. C. C. LAW, 1967a, 1967b.

11 Consultar a seguir, o capítulo 3, e mais adiante o capítulo 10. 12 Consultar mais adiante o capítulo 11.

revolta kharidjita de Abū Yazīd14, da qual eles tomam parte, eles se dispersam

rumo ao Oeste e para o Leste, ao passo que alguns fogem para o Sul. A sua presença é assinalada nesta época no Fezzān.

Os hawwāra estão igualmente presentes no Hoggar. O parentesco da deno- minação hawwāra com o topônimo do Hoggar em si consiste em uma indicação. O historiador dos berberes, Ibn Khaldūn, precisa que uma fração dos hawwāra atravessou as areias para se instalar ao lado dos lamta portadores de véu que habitavam perto da cidade de Kāw - Kāw (Gao), no “país dos negros”15.

Os sanhādja desempenham um ativo papel no tráfico trans -saariano que utiliza a via ocidental; assim se explica, finalmente, a cristalização, em um lugar já ocupado há muito tempo e que toma então o nome de Awdāghust, de um centro de comércio brevemente dominado pelos lamtūna e habitado, nos sécu- los III -IV/IX -X, pelos berberes da região, por negros e comerciantes vindos do Norte. Awdāghust está interligada por uma rota com Sidjmāsa, o grande porto caravaneiro do Tafilālet, no Sul do Marrocos.

No Leste, os berberes ibaditas desempenham um papel análogo no tráfico que tem como destino Ifrīkiya ou a Tripolitânia. Eles participam do tráfico de escravos negros originários do país dos zaghāwa, no Kānem. Zawīla, a capital dos berberes, funciona como uma placa giratória, um entreposto de escravos destinados a serem enviados rumo ao Norte.

Al -Ya’kūbī, evocando este comércio, não demonstra real emoção pelo fato de estes muçulmanos ibaditas praticarem o tráfico de negros “pagãos”; ele manifesta somente leve espanto ao saber que “os reis do Sudão vendem assim sudaneses sem razão ou sem o motivo da guerra16”. O tráfico aparece assim não como

uma necessidade ocasional dos agentes deste tráfico, mas como uma atividade econômica estável, submetida às exigências do mercado magrebino e medi- terrâneo, em outros termos, às leis da oferta e da procura. Assim, os berberes ibaditas, dissidentes em matéria religiosa em razão da sua adesão às doutrinas kharidjitas, estão perfeitamente integrados ao mundo muçulmano no plano econômico. Fortalecidos pela sua posição privilegiada, em relação ao Sudão, eles são as correias de transmissão de um conjunto árabe -berbere que se estende até o Saara Meridional.

14 Consultar mais adiante o capítulo 12.

15 Ibn KHALDūN, 1925 -1926, p. 9; J. M. CUOQ, 1975, pp. 42, 48. Igualmente consultar mais adiante os capítulos 11 e 15.

16 Al -YA’KūBī, 1962, p. 9; J. M. CUOQ, 1975, pp. 42 e 48. Igualmente consultar mais adiante os capítulos 11 e 15.

Em meio aos grupos berberes do Saara, um posto especial cabe aos tuaregues, embora eles não sejam por nós conhecidos sob este nome senão mais tardiamente. A sua zona de deslocamento geográfico é relativamente próxima o “país dos negros”. Eles estão reunidos em várias confederações e ocupam um território estendido da região de Ghadāmes, no Saara Setentrional, até o Níger, e mais além, os pontos fortes do seu habitat situam -se nas montanhas do Hoggar, no Aïr e no Adrār, dos ifoghas. Eles lograram preservar aspectos fundamentais da sua cultura, em que pese pertencerem à religião muçulmana; assim procede no tocante à sua língua, o tamashegh, à sua escritura, o tifinagh, bem como às suas estruturas sociais, carac- terizadas por uma divisão em classes de guerreiros, mestres religiosos, tributários, escravos e artesãos. Eles se atribuem, em seus mitos fundadores, uma ascendência que igualmente indica uma indiscutível personalidade cultural. Segundo as suas tradições orais, os tuaregues descenderiam de Tin Hinan, uma mulher originária do Tafilālet. Esta rainha, ancestral dos nobres kel rela, teria chegado ao Hoggar em um camelo branco, acompanhada da sua serviçal Takamat, ancestral dos Dag- -Ghali. As escavações realizadas em 1929 e 1933, em um monumento funerário de Abalessa, a Oeste do Hoggar, aparentam confirmar estas tradições. Estas escavações permitiram descobrir um importante conjunto de objetos datados do século IV da era cristã, sugerindo igualmente a existência de uma antiga rota interligando o Sul marroquino e o Hoggar, em uma época na qual o camelo era rei17.

Com efeito, os tuaregues representam, no plano antropológico, um elemento intermediário entre o mundo saariano e o Sudão. Eles se classificam em dois grupos: aqueles que habitam no Tassili -n -Ajjer e no Norte Hoggar ou aque- les do Sul, os awellimiden e os kel wi do Aïr, mestiçados com as populações negras haussas. Nestas condições, é provável que os povos negros tenham exer- cido influências culturais junto aos tuaregues. H. T. Norris nota em seu meio o emprego da adivinhação chamada tachchelt (a vípara); durante esta prática, o réptil é interrogado através de certas fórmulas18. Igualmente, a serpente intervém

em muitas outras circunstâncias; a sua função protetora ou o seu surgimento em sonhos, como mensageira do infortúnio, conferem -lhe um significado ambíguo. O autor sugere, a partir de uma comparação com a vizinha lenda reportada por Al -Bakrī e atribuída ao povo zāfkāwa do Sudão, que tenha havido contatos culturais entre os tuaregues e Gana19.

17 M. REYGASSE, 1940; 1959, pp. 88 -108; M. GAST, 1972; consultar igualmente UNESCO, História

Geral da África, vol. II, capítulo 20.

18 H. T. NORRIS, 1972, pp. 8 -9. 19 Al -BAKRī, 1911, p. 173; 1913, p. 330.

Existem populações negras no Saara, no deserto oriental e central, e sobre- tudo no Oeste: estes últimos, os harātīn, constituem geralmente uma parte da população dos oásis do Sul marroquino e da Mauritânia. A sua origem ainda é discutida: foram classificados como berberes negros20. Atualmente, as

novas abordagens relativas ao povoamento antigo do Saara oferecem novas elucidações. Este problema não pode, portanto, ser abordado à margem de um estudo integral sobre o papel do meio saariano na formação dos povos do Oeste africano. Há, efetivamente, sérios indícios que levam a pensar que eles seriam os “órgãos -testemunhos” de populações negras cujo movimento rumo ao Sul remonta a tempos remotos.

Tentativas de integração dos povos

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