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O comércio muçulmano

No documento HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA (páginas 53-56)

Nós mostramos acima a importância da posição ocupada pelo Império Islâ- mico nas relações entre os continentes, tampouco aqui retomaremos as questões

15 Conferir principalmente D. S. RICHARDS (org.), 1970; M. MOLLAT, 1971; Colóquio de Saint- -Denis, 1972; H. N. CHITTICK e R. I. ROTBERG (org.), 1975; UNESCO, 1980.

ligadas aos diferentes fatores que contribuíram para assegurar -lhe a supremacia nos domínios econômicos, comercial, da navegação etc.

Contrariamente ao Mediterrâneo, o Oceano Índico foi por via de regra uma zona de paz. Tão longe quanto recuemos no tempo, as relações comerciais entre os povos do oceano, conquanto não tenham sido igualmente favoráveis a todas as partes, não foram contudo senão raramente perturbadas por guer- ras. Os interesses econômicos permanentes aparentam ter predominado em detrimento das ambições políticas passageiras e os imperativos econômicos aparentam ter vencido as rivalidades entre Estados. Na bacia mediterrânea, no início da Idade Média, as potências muçulmana e cristã estavam engajadas em uma luta incessante e, embora os contatos comerciais não tenham jamais sido totalmente interrompidos, o estado de guerra não era, de modo geral, propício aos intercâmbios. Em contrapartida, a expansão do Islã no Oceano Índico não teve nenhuma incidência sobre as atividades comerciais dos árabes e persas, em razão do cuidado dos mercadores em não comprometerem os laços comerciais com um excessivo proselitismo.

Contudo, isso não significa que as relações com o Oceano Índico tenham sido idílicas. Além do tráfico de escravos, gerador de frequentes enfrentamentos e de violências, a pirataria causava sérios problemas, em larga escala e durante todo o período estudado, sem jamais – devemos sublinhar – atingir as dimensões que ela tomara no Mediterrâneo, onde era exacerbada e até fortalecida pelos antagonismos religiosos.

Outros fatores negativos viriam perturbar as atividades outrora sempre prós- peras dos muçulmanos. Na segunda metade do século IX, dois acontecimen- tos afetaram profundamente o comércio no Oceano Índico. O primeiro foi a grande revolta dos zandj na região sul do Iraque e do Golfo Árabo -Pérsico, entre 252/866 e 270/88317. Alguns dos mais importantes portos – Basra, Ubulla, Aba-

dan – foram devastados e Bagdá teve a sua ligação cortada com o mar. Aque- les dentre os mercadores residentes nas cidades, sobreviventes aos massacres, refugiaram -se no interior das terras ou em outros portos e muitas embarcações foram perdidas. O comércio marítimo foi interrompido nesta região durante mais de quinze anos, por falta de capitais, mercadorias e navios.

Quase simultaneamente, um segundo golpe foi dado no comércio muçul- mano quando as tropas do rebelde chinês Huang Ch’ao saquearam Cantão em 265/878, massacrando um número considerável de comerciantes estrangeiros,

sobretudo originários dos países muçulmanos. Aparentemente, todavia, certo número dentre eles teve a sua vida salva, pois que o autor a quem devemos o relato deste desastre nota que os rebeldes pressionaram os capitães árabes, afe- taram os mercadores com taxas ilegais e apropriaram -se dos seus bens18.

Duas calamidades desta ordem não poderiam deixar de atingir a navegação comercial muçulmana. Os portos situados na extremidade do Golfo Pérsico conheceram um período de declínio e, mais a Leste, os muçulmanos preferiram doravante fazer escala em Kalah (na costa oeste da península malaia), porto à época ligado ao Império Śrīvijāya em Sumatra (conferir mais adiante p. 48), e ali encontrar seus homólogos chineses.

A despeito das catástrofes do século IX e das tendências monopolizadoras dos soberanos de Śrīvijāya, o comércio muçulmano desenvolveu -se progressi- vamente e recobrou lentamente a sua importância passada. Os desastres ocor- ridos no século X – o saqueio de Basra pelos karmates da Arábia Oriental em 308/920, o incêndio de toda a frota de Oman, em 330/942, pelo soberano de Basra, por ela sitiada, ou ainda o terremoto que destruiu Sīrāf, em 366/977 – sequer lograram interromper o tráfego dos navios muçulmanos nas rotas do Oceano Índico.

No século seguinte, o declínio do califado abássida no Oriente Médio e a simultânea ascensão dos fatímidas na África do Norte marcaram um ponto capi- tal de inflexão para o comércio muçulmano. A secular concorrência entre a rota com destino ao Golfo Pérsico e aquela do Mar Vermelho chegou então ao seu fim e a segunda dentre elas, durante muitos séculos de papel menos relevante no tocante ao comércio no Oceano Índico, suplantou definitivamente a primeira.

Até o momento, interessamo -nos pelo papel desempenhado pelos árabes e persas muçulmanos no conjunto de relações estabelecidas no Oceano Índico. Falta -nos agora examinar a posição que ocuparam outros povos – africanos, indianos, indonésios e chineses. Em que medidas eles tomaram parte nestas relações? Os aportes culturais e materiais dos três últimos dentre eles para a África, teriam eles resultado de contatos diretos ou indiretos?

Todas estas questões remetem a este outro problema: não seríamos nós leva- dos a superestimar o papel desempenhado pelos muçulmanos no Oceano Índico pelo simples fato de a maior parte dos testemunhos e documentos dos quais dispomos se reportar às suas atividades? Somente um minucioso estudo de todos estes elementos de informação disponíveis poderia permitir -nos chegar a uma

conclusão; de imediato, a descoberta de certos fatos e aspectos novos ajuda -nos a melhor compreendermos o papel dos povos não -muçulmanos no Oceano Índico. Esta reavaliação todavia não aparenta recolocar em questão a tese da preponderância global dos muçulmanos nesta região.

Não cabe espanto em razão desta supremacia do comércio muçulmano não ter nada de fortuita: ela é o reflexo do dinamismo de toda a estrutura socioeconômica do mundo muçulmano à época, assim como da sua situação geográfica favorável, no cruzamento dos continentes. Nenhuma das áreas culturais do Velho Mundo pôde, como vimos, manter nesta época contatos duráveis com todas as demais; a área islâmica foi a única que construiu uma verdadeira rede comercial entre con- tinentes. Eis que o período compreendido entre os séculos VII e XI corresponde precisamente ao momento no qual este comércio com outros continentes atingia o seu pleno desenvolvimento ou, ao menos, a sua maior expansão.

No documento HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA (páginas 53-56)