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A sharī’a e o fikh

No documento HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA (páginas 77-81)

O islã não é somente uma religião, trata -se de um modo de vida completo que abarca todas as esferas da existência humana. O islã está repleto de conselhos

5 Para uma análise da postura do Islã frente à escravatura, conferir mais adiante o capítulo 26.

6 O célebre pensador egípcio Muhammad ‘Abduh – falecido em 1323/1905 – estimava, com base na interpretação destes versos, que o Corão praticamente impunha a monogamia. Consultar R. LEVY, 1957, p. 101.

apropriados a todas as circunstâncias da vida: individuais e sociais, materiais e morais, econômicas e políticas, nacionais e internacionais7.

A sharī’a é o código de conduta detalhado; ela compreende os preceitos que regem o ritual do culto, as normas de conduta e as regras de vida. Ela consiste em leis que prescrevem e autorizam, dando conta do verdadeiro e do falso. Embora todos os profetas tenham a mesma dīn (fé religiosa), cada qual oferecia uma sharī’a diferente que era adaptada às condições do seu tempo e ao seu povo. Maomé, como último dos profetas, trouxe o código final que deveria aplicar- -se ao conjunto da humanidade para todos os tempos vindouros. As sharī’a precedentes estavam portanto revogadas para darem lugar à sharī’a completa de Maomé.

As fontes da sharī’a islâmica são o Corão e o hadīth, palavras e atos do profeta Maomé, reportados e transmitidos pelos seus companheiros. Milhares de hadīth foram estudados em detalhes e reunidos por eruditos sob forma de coletâneas da tradição; os mais famosos dentre eles são aqueles de al -Bukhārī (falecido em 256/870) e de Abū Muslim (falecido em 261/875). O conteúdo da tradição profética é chamado sunna, ou seja, “a conduta e os atos de Maomé”.

A ciência que codifica e explica as prescrições da sharī’a chama -se fikh e os sábios versados em seu conhecimento são denominados fakīh (plural árabe:

fukahā’) ou “doutores da lei”; o fikh é a ciência muçulmana por excelência e os fukahā’ são considerados como sábios (‘ulamā’, singular: ‘ālim).

Após a grande conquista que colocou sob o seu império muitos países onde prevaleciam condições econômicas e sociais diversas, herdadas de tempos pre- gressos, a comunidade muçulmana confrontou -se por conseguinte a numerosos problemas. Outros mais foram suscitados pela criação de um Estado muito dife- rente da comunidade original de Medina, além de mais complexo. Haja vista que o Corão não se ocupa senão raramente de casos particulares e expõe sobretudo os grandes princípios que devem reger a vida dos muçulmanos, rapidamente surgiram certas questões colocadas para a comunidade muçulmana as quais não encontravam resposta no Livro Santo e tampouco nos hadīth do Profeta. Assim sendo, duas fontes suplementares foram anexadas à lei islâmica. Primeiramente o raciocínio por analogia (kiyā), consistente em comparar o caso para o qual se busca uma solução com outro caso análogo, já esmiuçado com base no Corão ou em um hadīth específico. Em segundo lugar, a solução de um problema pode igualmente ser obtida pelo consenso de vários eminentes doutores da lei (idjmā’).

Entre os séculos II/VIII e III/IX, eminentes jurisconsultos codificaram em um sistema coerente todo o direito muçulmano dos diversos centros intelectuais do mundo muçulmano, em particular Medina e Bagdá. Os diversos passos por eles seguidos para levar a cabo essa enorme tarefa originaram quatro escolas jurídicas com nomes de seus fundadores a quem foi também concedido o título honorífico de imame.

Estas quatro madhāhib são o malikismo, o shafismo, o hanafismo e o hanba- lismo. Todas as quatro são perfeitamente ortodoxas (sunitas) e não diferem senão em detalhes; é impróprio falar de seitas a propósito destas escolas. Ao codifica- rem o direito, os seus criadores basearam -se nos princípios enunciados acima, acrescentando alguns outros. Unânime e totalmente de acordo em respeito aos textos do Corão e sobre os hadīth julgados por todos os sábios muçulmanos como os mais autênticos, cada imame apoiou -se segundo as suas preferências pessoais (aquilo que denominamos idjtihād) prioritariamente em um ou outro dentre os princípios da sua escola.

Após diversas codificações das suas respectivas zonas de influência, segundo o curso da história, cada uma destas escolas encontra atualmente os seus adeptos em zonas geográficas bem determinadas: o hanafismo predomina nas regiões que estiveram sob domínio das dinastias turcas, ou seja, na Turquia, na Síria, no Iraque, na Ásia Central, na Índia Setentrional, bem como no Paquistão; o

madhhab shafita é praticado principalmente no litoral do Oceano Índico, desde

o Sul da Arábia e da África do Leste até a Indonésia; o malikismo rapidamente implantou -se na África do Norte, na Espanha muçulmana e no Sudão Central e Ocidental. A última escola, o hanbalismo, outrora com numerosos adeptos na Síria e no Iraque, está atualmente praticamente confinado à Arábia Saudita.

As diferenças entre as diversas madhāhib não são fundamentais; elas dizem respeito, sobretudo, a detalhes do ritual e aspectos menores da lei. Um dos traços fundamentais da lei islâmica consiste na apreciação que ela confere a todas as ações e relações humanas, em função dos seguintes conceitos: o que é obrigatório (wādjib), recomendado (mandūb), indiferente (mubāh), repreensível ou desaprovado (makrūh) e proibido (mahzūr). O conjunto do direito islâmico está impregnado de considerações religiosas e éticas, tais como a interdição do interesse usurário ou, de modo geral, do enriquecimento injustificado, a interdi- ção dos jogos com apostas em dinheiro e outras formas de especulação baseadas na sorte, a preocupação com a igualdade entre as duas partes contratantes e o zelo pela justa medida, enfim o horror pelos extremos.

Outra característica que distingue o fikh dos outros sistemas jurídicos: ele foi elaborado e desenvolvido por juristas privados; ele não é o prolongamento

de um sistema pré -existente, foi ele próprio que criou o direito. O Estado não desempenhou o papel de legislador, ele não promulgou leis e, por muito tempo, não houve nenhum código jurídico que emanasse de órgãos do Estado. Em lugar disso, as leis eram inscritas em obras doutrinárias que possuíam força de lei e serviam como referência para as decisões jurídicas.

Fiel aos seus princípios e à sua consciência, o islã, na qualidade de estru- tura religiosa, jamais produziu a mais simples forma de organização externa, nem espécie alguma de hierarquia. Não há clericato nem igreja. Cada qual é o seu próprio pastor e não há intermediário entre crédulo e Deus. Deste modo, embora o idjmā’ (consenso dos doutores da lei) fosse reconhecido como base válida da doutrina, não existia nem conselho nem cúria para promulgar estas decisões.

O consenso era obtido de modo informal, quer fosse pelo assentimento tácito daqueles que estavam qualificados para expressarem as suas opiniões, quer fosse ao final de uma controvérsia escrita que se prolongava por vezes longamente, antes que uma maioria chegasse a um acordo. Assim prosseguiu em todas as esferas a elaboração da doutrina islâmica, sob o impulso de alguns eminentes e brilhantes pensadores, inspirados pela célebre palavra do Profeta: “Busca da ciência, do berço ao túmulo”.

Entretanto, os ‘ulamā’, em seu anseio de elaborar preceitos islâmicos aplicá- veis aos menores detalhes do culto e da vida cotidiana, passaram a se preocupar em demasia com o aspecto formal de lei divina, sem mais deixar suficiente espaço para a devoção pessoal. Houve então uma reação contra o intelectu- alismo e o formalismo, tomando a forma do misticismo islâmico, o sufismo8.

Uma forte tendência ao ascetismo e ao misticismo surgia desde logo muito nitidamente junto aos primeiros muçulmanos e numerosos grandes místicos, antes dos séculos VI e XII, desempenharam um papel ativo no fortalecimento da fé islâmica. Em contrapartida, alguns adeptos do sufismo tinham tendência a negligenciar as obrigações prescritas pela sharī’a, julgando -se dispensados dos deveres de todo muçulmano. No século V/XI, o grande teólogo al -Ghazālī (falecido em 505/1111) integrou o sufismo à religião ortodoxa, sublinhando simultaneamente a necessidade de uma abordagem pessoal de Deus e o dever de se conformar aos preceitos da sharī’a, ambos elementos inseparáveis da vida religiosa muçulmana. Pouco tempo após, os sufistas começaram a se organizar em associações ou fraternidades místicas (em árabe turuk, singular: tarīka), em

torno de diversos mestres espirituais, chamados mashāyikh. A mais antiga destas

turuk é a Kadirīyya, fundada em Bagdá por ‘Abd al ‑Kadīr al ‑Djīlānī (falecido em

561/1166), ganhando adeptos em diversos países muçulmanos. Com o passar do tempo, estas turuk se multiplicaram, tanto e de tal modo, a ponto de pratica- mente todo muçulmano pertencer a tal ou qual fraternidade e tomar parte nos exercícios místicos denominados dhikr (invocação ou ladainha).

Relativamente a estas fraternidades, respeitáveis e reconhecidas, convém distinguir o culto dos santos, chamados “marabutos” no Magreb. Numerosos dentre estes marabutos exploraram a credulidade de muçulmanos inocentes, pretendendo realizar milagres, preparando todo tipo de amuletos e talismãs e gabando -se por terem pretenso acesso direto a Deus e, por conseguinte, a possibilidade de desempenharem o papel de intercessores. Similar postura é tão pouco islâmica quanto o possível, pois que todo muçulmano é o seu pró- prio sacerdote. Somente Deus pode ser venerado e Ele deve ser alcançado sem intermediário. O islã torna o homem inteiramente independente de todos os seres, salvo de Deus. Do ponto de vista do autêntico islã, o culto de “santos” é o produto de uma excrescência parasitária.

No documento HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA (páginas 77-81)