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O mundo islâmico e a África

No documento HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA (páginas 36-41)

Vejamos agora qual foi o impacto do mundo muçulmano e da sua civili- zação sobre a África e os povos africanos. Nós abordaremos, em um primeiro momento, as regiões do continente africano que se encontraram assimiladas ao Império Muçulmano ao final da primeira onda de conquistas, a saber, o Egito e a África do Norte, antes de nos interessarmos pelas regiões que sofreram, de um modo ou de outro, a influência do Islã ou dos povos muçulmanos, sem terem sido politicamente anexadas a nenhum dos grandes Estados islâmicos da época.

A história do Egito islâmico entre o século VII e o final do século XI é aquela, fascinante, de uma importante província, embora relativamente afastada do califado, transformada em centro do potente império dos fatímidas, origi- nalmente simples celeiro, posteriormente principal entreposto comercial entre o Mediterrâneo e o Oceano Índico, espécie de primo pobre do mundo muçulmano no plano das atividades intelectuais, transformada em um dos grandes centros culturais árabes. Em múltiplas ocasiões, o Egito exerceu influência no destino de outras partes da África; ele foi o ponto de partida da conquista árabe do Magreb, no século VII, em seguida da invasão hilālī, no século XI. A primeira teve como efeito islamizar a África do Norte e a segunda arabizá -la. Foi a partir do Egito que os beduínos árabes iniciaram o seu movimento rumo ao Sul e penetraram

progressivamente na Núbia, abrindo deste modo a via para o declínio dos seus reinos cristãos e para a arabização do Sudão nilótico. Embora o Egito tenha cessado, durante este período, de ser uma terra cristã e a maioria da sua popula- ção se tenha convertido ao islã, o patriarcado de Alexandria continuava a con- trolar as igrejas monofisistas da Núbia e da Etiópia, constituindo -se em alguns momentos no instrumento da política egípcia nestes países.

Não se deve perder de vista o fato do Egito ser o destino final de elevado número de escravos negros da África que foram importados da Núbia (segundo o célebre tratado [bakt]), da Etiópia e do Sudão ocidental e central. Em meio a esta triste mercadoria humana, havia um certo Kāfūr que finalmente tornar- -se -ia o verdadeiro chefe do país. Outros, aos milhares, tornar -se -iam militares, exercendo considerável influência em matéria de política interna. Contudo, em sua maioria eles foram empregados em tarefas modestas e subalternas.

Seria necessário aguardar os séculos XII e XIII para que o Egito realmente desempenhasse um papel de primeira ordem, colocando -se como campeão do islã frente aos cruzados ocidentais e aos invasores mongóis; todavia, ele não seria capaz de fazê -lo sem a consolidação política e econômica dos séculos precedentes.

No Magreb, os conquistadores árabes enfrentaram a tenaz resistência dos berberes e somente ao final do século VII lograram submeter as principais regiões. A maioria dos berberes converteu -se então ao islã e, malgrado o ressen- timento que lhes inspirava a dominação política árabe, eles tornaram -se ardentes partidários da nova fé, contribuindo para propagá -la do outro lado do estreito de Gibraltar e além do Saara. Os guerreiros berberes compunham a grande parte dos exércitos muçulmanos que conquistaram a Espanha sob os omíadas, como as tropas aglábidas que arrancaram a Sicília dos bizantinos e as forças fatímidas que conduziram vitoriosas campanhas no Egito e na Síria.

A África do Norte ocupava uma posição -chave no mundo muçulmano, polí- tica e economicamente. Precisamente do Magreb lançou -se a conquista da Espanha e da Sicília, cujas repercussões são conhecidas na história do Mediter- râneo Ocidental e da Europa.

O Magreb foi um importante elo entre várias civilizações, constituindo -se como campo de retransmissão para diversas influências que circulavam nos dois sentidos. Sob o domínio muçulmano, esta região da África esteve nova- mente ligada a uma economia de importância mundial, na órbita da qual ela desempenhou um papel de primeiro plano. No curso do período estudado, ela conheceu um novo crescimento demográfico, uma considerável urbanização e uma retomada da prosperidade econômica e social.

Do ponto de vista religioso, os berberes exerceram uma dupla influência. Antes de tudo, as suas tradições democráticas e igualitárias levaram -nos muito cedo a aderirem àquelas das seitas do islã que pregavam estes princípios. Embora o kharidjisme berbere tenha sido esmagado após um florescimento que durou vários séculos e conquanto não tenha sobrevivido senão em algumas comuni- dades, o espírito de reforma e de populismo permaneceu como parte integrante do islã magrebino, como testemunham os grandes movimentos dos almorávidas e dos almorades, assim como a multiplicação das confrarias sufis.

A segunda grande contribuição dos berberes – ao Islã mas, igualmente, à África – foi introduzir a religião muçulmana ao Sul do Saara. As caravanas de comerciantes berberes que atravessavam o grande deserto em direção às regiões mais férteis do Sahel e do Sudão não transportavam somente mercadorias: elas propagavam novas concepções religiosas e culturais que encontraram eco no seio da classe dos mercadores antes de seduzir as cortes dos soberanos africanos2. Uma

segunda onda de islamização do cinturão sudanês reproduzir -se -ia no século XI com a ascensão dos almorávidas, movimento religioso autenticamente berbere. A influência do islã berbere e das suas aspirações reformistas jamais desapareceu no Sudão: ela ressurgiria com particular vigor no momento das jihad do século XIX.

Esta abertura para o Saara e para a zona sudanesa conferia à África do Norte uma particular importância para a economia do mundo muçulmano. Quando o ouro sudanês começou a afluir rumo à costa mediterrânea em quan- tidades cada vez maiores, ele provocou uma ascensão econômica que permitiu a numerosas dinastias muçulmanas reinantes no Oeste abandonarem a moeda de prata em proveito da moeda em ouro. A exploração das minas de sal do Saara intensificou -se, em resposta à crescente demanda da África subsaariana por esta indispensável substância mineral. Segundo respeitados recentes trabalhos, as trocas com a África subsaariana provavelmente constituíram, durante vários séculos, o ramo mais frutuoso do comércio exterior do Império Muçulmano3.

A zona sudanesa ocidental é uma das regiões da África que, não tendo sido submetida pelos árabes nem por qualquer outro povo muçulmano, jamais fez parte do califado; no entanto, ela não deixou de sofrer influências muçulmanas sempre mais fortes em razão dos contatos comerciais e culturais, sendo final- mente integrada, até certo ponto, ao sistema econômico do Islã. A situação era sensivelmente a mesma na costa oriental da África, apresentando todavia importantes diferenças.

2 A difusão do islã é estudada com maior detalhamento no capítulo 3, a seguir. 3 E. ASHTOR, 1976, pp. 100 -102.

Desde a Antiguidade, a costa leste era frequentada pelos mercadores vindos do Sul da Arábia e da Pérsia para ali realizarem o seu comércio. Após a ascensão do Islã e a fundação do Império Islâmico, uma vasta rede comercial controlada por muçulmanos, em sua maioria árabes ou persas, estabeleceu -se no Oceano Índico; interligando as margens do Golfo Árabe -Pérsico4 e (posteriormente)

do Mar Vermelho à Índia, à Malásia, à Indonésia e à China do Sul, esta rede estendia -se igualmente até a costa oriental da África, aos Comores e a certas partes de Madagascar. A prosperidade das cidades costeiras pertencentes a esta rede estava, em larga medida, ligada à situação econômica geral de toda a área do Oceano Índico e, particularmente, dos países muçulmanos. Além disso, em virtude da contínua expansão econômica que caracterizou o período estudado, sobretudo quando os fatímidas começaram a desenvolver as suas relações comer- ciais com os países do Oceano Índico, os estabelecimentos da costa oriental africana foram chamados a desempenhar um papel ainda mais importante com as suas exportações de ouro, ferro, peles e de outros produtos. Esta situação não somente assegurou a prosperidade material, mas, igualmente e de modo indireto, o florescimento da religião e da cultura islâmicas: estavam assim lançadas as bases que, nos séculos seguintes, permitiriam a eclosão da cultura suaíli.

A rápida expansão do Islã certamente causou dano considerável à economia da Etiópia, barrando -lhe o acesso ao Mar Vermelho e monopolizando o comér- cio com as regiões circunvizinhas. Ela igualmente teve repercussões políticas: o país dividiu -se e a autoridade central do Estado foi enfraquecida por mais de dois séculos. A supremacia muçulmana nas regiões costeiras teve como consequ- ências suplementares o deslocamento, para o Sul, do centro de gravidade político da Etiópia, além de uma expansão mais marcante nesta direção. As regiões do Sul tornaram -se então um novo foco a partir do qual a Etiópia cristã renasceria no século XI. A partir do século X, uma nova onda de islamização ganhou o interior do país onde penetravam os mercadores muçulmanos das ilhas Dahlak e Zaylā’, ao passo que os primeiros Estados muçulmanos eram fundados ao Sul do seu atual território. As condições essenciais estavam assim reunidas para que nos séculos seguintes o Islã e a cristandade se encontrassem engajadas em uma longa luta pelo domínio da região etíope.

O impacto que a ascensão do Império Islâmico teve sobre a África ao longo dos cinco séculos estudados poderia assim ser resumido: a face mediterrânea do continente – desde o istmo de Suez até o estreito de Gibraltar – e a costa

atlântica adjacente encontraram -se totalmente integradas ao mundo islâmico. Estas regiões deixaram para sempre de ser terras cristãs e, inclusive, viriam a servir de base para novos avanços do Islã, na Espanha e na Sicília, por um lado, e no Saara e na zona sudanesa ocidental, por outra parte.

No nordeste da África, a expansão do Islã desencadeou o enfraquecimento dos Estados núbio e etíope, sem que estes países fossem contudo submetidos. Enquanto a Núbia passava progressivamente para o controle econômico e polí- tico do Egito muçulmano e os árabes nômades penetravam em seu território até conseguirem provocar a sua descristianização, a Etiópia conservava a sua independência política e cultural, embora fosse conduzida a adaptar a sua polí- tica externa a um ambiente circunvizinho de mais em mais dominado pelos muçulmanos.

O Saara e vastas regiões do Sudão estavam neste período abertos ao comércio e ligados deste modo à esfera econômica muçulmana, no seio da qual as suas principais exportações – o ouro e os escravos – desempenharam um crescente papel. A religião e a cultura islâmicas difundiram -se ao longo das rotas comer- ciais e integraram -se progressivamente às culturas africanas.

Na África oriental, a expansão do comércio muçulmano desempenhou um papel comparável, com a grande diferença que os mercadores muçulmanos limitaram as suas atividades aos estabelecimentos costeiros, deixando o inte- rior das terras fora das influências islâmicas. Entretanto, a crescente demanda dos países muçulmanos e da Índia pelo ouro do Zimbábue aparenta também ter provocado mudanças inclusive na região do Zambeze. Algumas partes de Madagascar e das Comores igualmente foram ligadas à grande rede comercial do Oceano Índico.

Assim sendo, durante os cinco primeiros séculos da era islâmica, vastas regi- ões do continente africano sofreram, direta ou indiretamente, as influências do novo Império Muçulmano. Para algumas regiões, foi a oportunidade para romperem o seu isolamento passado e abrirem -se a outras culturas através de intercâmbios e empréstimos. A conversão ao islã das classes dirigentes de certos Estados da África Ocidental e de localidades costeiras da África Oriental criou laços entre estes Estados e regiões com o mundo muçulmano. Na África do Oeste, onde existiam Estados anteriores à penetração do Islã, o desenvolvimento do comércio norte -africano aparenta ter constituído um elemento essencial para a sua transformação em vastos impérios5.

Os contatos estabelecidos entre o mundo muçulmano e a África tropical têm outro mérito: os relatos dos geógrafos e historiadores árabes constituem um conjunto de informações únicas e indispensáveis sobre estas regiões6. Sem eles,

nós saberíamos muito menos a respeito ou ignoraríamos quase totalmente o que foi a política, a economia e a cultura de numerosos povos africanos durante todo um período crucial da sua história. Trata -se de um aspecto da interação entre o mundo muçulmano e a África que não convém esquecer.

No documento HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA (páginas 36-41)