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As causas de tensão

No documento HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA (páginas 154-158)

Caso fosse necessário levar ao pé da letra o sentido do hadīth, segundo o qual “os anjos não entram em uma casa onde há um cão”, o contato Islã -povos africanos teria permanecido sem futuro, tamanha a intensidade, nas sociedades africanas, com que os cães constituem um elemento permanente da vida domés- tica. Notemos, contudo, que o Islã lutou firmemente contra as formas excessivas da presença canina, em particular contra a cinofagia.

Em definitivo, no plano social tudo dependia da permeabilidade das socie- dades africanas a eventuais mudanças propostas ou impostas pelo Islã, haja vista que nenhum obstáculo de princípio existia em relação à adoção da crença islâmica em um deus único.

As sociedades africanas negras, nas quais o Islã penetra, são rurais; elas têm laços funcionais com a terra e com todos os elementos do seu imediato entorno (o mineral, o vegetal, o ar e a água). Nestas culturas, agrárias e fundadas na oralidade, podemos a rigor descobrir algumas analogias com alguns dos aspec- tos socioculturais do mundo árabe pré -islâmico. Isso não quer dizer que as estruturas sociais do mundo islâmico assemelhem -se àquelas da África. Nas sociedades africanas, a família nuclear – homem, mulher, filhos – é desconhecida como elemento autônomo; a família extensa, reunindo os descendentes de um ancestral comum soldados entre si por laços de sangue e da terra, é o elemento de base, unido por uma grande solidariedade econômica. A história do flores- cimento destes grupos sociais básicos até os limites da segmentação, aquela das formas inerentes à sua associação em grupos mais abrangentes que reconhecem um ancestral comum – mais ou menos fictício – ou que exploram um território comum, não será aqui retraçada. O importante é que estas comunidades, qual fosse o seu tamanho, consideram que os seus laços – mesmo os fictícios – são religiosos e que dela participa a totalidade dos ancestrais, dos vivos e das futuras crianças, segundo uma corrente contínua de gerações, em ligação sagrada com o solo, o mato, a floresta e as águas que fornecem a alimentação, aos quais se devem oferecer os cultos. Estas estruturas sociorreligiosas são indissociáveis sem des- truir todo o seu equilíbrio de vida; elas se sentem solidárias graças a uma longa consciência histórica de um passado comum e em razão da lentidão das muta- ções que elas integram. Ao seu lado, outras sociedades mais complexas existem: aquelas onde as condições geoeconômicas favoráveis permitiram a acumulação de reservas que autorizaram a manutenção de categorias sociais especializadas em distintas tarefas; algumas são de ordem socioeconômica e garantem uma crescente divisão do trabalho; outras são sociorreligiosas: mantêm, graças às atividades dos mágicos, dos adivinhos, dos curandeiros e dos intercessores entre o visível e o invisível, uma coesão da sociedade que, em sua ausência, ameaça- ria a divisão do trabalho; outras mais representam uma organização política mais elaborada comparativamente às sociedades agrárias puras. Em todo caso, todavia, o homem africano sempre concebe a sua visão do mundo como um gigantesco enfrentamento de forças a conjurar ou explorar. E, segundo a justa expressão de Joseph Ki -Zerbo, “neste oceano de fluxos dinâmicos em conflito (o homem) fez -se peixe para nadar42”. Com base em duas tramas diferenciadas,

uma mais urbana e outra sempre rural, as sociedades africanas realizaram -se

muito diversamente, em função de estar na savana ou na floresta, ser sedentá- rio ou nômade, agricultor ou criador de animais, caçador -coletor ou membro de uma comunidade urbana. Muito amiúde, contudo, a unidade da percepção religiosa acerca das relações sociais prevalece face às diferenças das realizações materiais; muito frequentemente, o papel da mãe e da mulher na transmissão dos bens permanece considerável. Os modos de vida continuam muito distantes do clã e da família patrilinear dos árabes, com os quais o direito islâmico está em quase perfeita concordância.

Justamente neste terreno surgem tensões e conflitos, no momento em que se torna imperativa, sobretudo na África Ocidental, a pressão dos juristas muçul- manos que gostariam de levar os africanos a seguirem mais integralmente “um modelo de sociedade” supostamente islâmico, segundo estes juristas, quando ele talvez fosse, antes e sobretudo, próprio ao Oriente Médio. Entretanto, as for- mas tomadas por estas tensões foram muito diferentes em função das regiões e dos momentos, igualmente segundo tipos de relação de força de toda ordem, e primeiramente numéricos, entre muçulmanos e não -muçulmanos, entre muçul- manos vindos do Leste e do Norte e muçulmanos africanos. Trata -se, portanto, de uma história rica e complexa, quando tentamos medir a maneira pela qual o islã transformou, ou não, as sociedades da África Negra.

Quando as coisas acontecem em uma cidade, é provavelmente autorizado, no século IV, assim como atualmente em Ruanda43, abandonar qualquer referência

às antigas solidariedades rurais, mudar de nome, misturar -se na nova comuni- dade islâmica que satisfazia a todas as necessidades, bem como nela fundar, no momento oportuno, uma nova família sobre novas bases ideológicas. A mudança de nome permite uma passagem elegante e simples, do ponto de vista social, da comunidade original para a comunidade muçulmana44. Na África saheliana,

esta passagem aparenta ter sido tranquila, embora não denote justamente uma ruptura total: um nome muçulmano fortemente africanizado – Muhammad torna -se por vezes Mamadu, ‘Alī torna -se Aliyu45 – acrescenta -se às antigas

palavras africanas: estas últimas não se islamizam segundo códigos muito pre- cisos senão em longo prazo. Há aqui uma fusão lenta, quer se tratem de reis, mercadores ou rurais, ainda após o século VI/XII. Não acontece de modo similar em outras regiões do continente, onde as rupturas onomásticas foram maciças

43 J. KAGABO, 1982.

44 Na Somália, esta mudança foi total.

45 Ben Achour, 1985. Este fenômeno não é exclusivo dos africanos negros. Junto aos berberes, Muhammad torna -se Hammū, Moha, Mūh etc.; Fātima transforma -se em Tāmū, Tima etc.

e dramáticas46. Bem entendido, os próprios muçulmanos estão divididos no

tocante aos comportamentos a serem adotados face às tradições socioculturais africanas. Os juristas vindos do Norte, imbuídos da sua ciência e orgulhosos da sociedade que eles representam, tendem a ver nestes atos “não -conformes” das sociedades negras as provas de que elas pertencem a um mundo estrangeiro ao Islã e que deve ser combatido; os muçulmanos negros, nascidos nestas sociedades e tentando nelas viver, por vezes muito minoritários, tolerados e conviviais, são facilmente levados a admitirem que as práticas dos cultos africanos não consti- tuem um obstáculo real à adesão ao islã; eles podem ir muito longe nesta tole- rância e os seus correligionários vindos do Norte acusam -nos deliberadamente de laxismo, cumplicidade e até de traição ao islã. São todavia os segundos e não os primeiros que assegurariam, como veremos, os sucessos mais duradouros do islã do século VI/XII ao século X/XVI.

A intransigência jurídica, com efeito, tenciona as situações ao extremo quando se trata de modificar as regras matrilineares de sucessão para impor os hábitos patrilineares corânicos. Ainda nenhum estudo completo mostra as eta- pas deste conflito, certamente nascido desde o século V/XI e objeto de posterior tratamento: o autor declara não -muçulmanos aqueles que recusam a legislação muçulmana e procedem à transmissão matrilinear da herança47. A pressão neste

âmbito foi exercida, primeira e visivelmente, no nível dos detentores do poder: as genealogias revelam a hesitação entre os dois modos de transmissão48.

Foi provavelmente ao nível da concepção da propriedade dos bens que a irredutibilidade revelou -se mais forte de uma sociedade a outra. Al -Bakrī mostra muito bem, quando se refere às “decisões estranhas” de ‘Abdallāh ibn Yāsīn49, a

repugnância de um proprietário individual e individualista perante as formas “socializantes” de igualdade e redistribuição dos bens que o almorávida pretende impor. A fortiori, a comunidade africana das terras, do trabalho e das colheitas não era absolutamente compreensível para muçulmanos acostumados à aventura da riqueza individual, familiar e urbana. Uma vez mais, a consulta de al -Maghīlī coloca, em difíceis termos, o problema da propriedade dos bens e a sua resposta é, novamente, radical50.

46 Exemplos estritamente comparáveis no caso da conversão cristã, por exemplo, após 1930 no Ruanda- -Burundi.

47 J. M. CUOQ, 1975, p. 424.

48 J. M. CUOQ, 1975, p. 344, por exemplo.

49 Al -Bakrī, 1913, p. 319 e seguintes; consultar mais adiante o capítulo 13. 50 J. M. CUOQ, 1975, p. 410 e seguintes.

Aparentemente mais benignos, embora não seguidos de efeitos, são os pro- testos contra os “modos africanos”: a exagerada liberdade dos comportamentos femininos, a ausência do véu51, a nudez dos corpos dos adolescentes; os autores

árabes não podem senão oferecer testemunho52 ou manifestar condenação53 face

aos escândalos que ofenderam a sua visão.

Em todos estes níveis básicos das suas respectivas organizações e pouco con- ciliáveis, as sociedades árabe -muçulmanas e africanas, muçulmanas ou não, não encontraram conciliação entre os séculos VI/XII e X/XVI. Inclusive, elas por vezes sem dúvida tiveram tendência a ver nestes modos antagônicos de vida social um sinal de incompatibilidade entre o islã e a religião tradicional africana.

No documento HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA (páginas 154-158)