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Os ensinamentos do Corão

No documento HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA (páginas 71-77)

Tanto em Meca quanto em Medina, o Profeta recebeu um fluxo contínuo de revelações sob a forma de versetos (āya, plural: āyāt) reunidos em capítulos (sūra, plural: sūrāt, ou suratas). As 114 suratas, de extensão desigual, em conjunto formam o Corão.

Figura 2.1 Representação da Meca. Fabricada em Iznik, esta placa reproduz, em vista aérea, o plano da grande mesquita da Meca com os seus sete minaretes. No centro do pátio, percebe -se a Ka’ba – supostamente construída por Abraão – em um dos ângulos da qual está inserida a pedra preta que todo muçulmano deveria, tanto quanto possível, vir venerar ao menos uma vez em sua vida. Cada edícula – como cada porta – é desig- nada pelo seu nome em caracteres nashki. Na parte superior do plano, uma inscrição corânica, igualmente cursiva (surata III, versetos 90 -92), relembra o dever da peregrinação. [Foto: © Clichê dos museus nacionais, Paris.]

Figura 2.2 Representação de Medina. Mesmo tipo de placa que a precedente. Esta representa, em vista aérea, a mesquita de Medina, construída na localização da casa de Maomé, cuja sepultura encontra -se na sala de orações. Após ter realizado a peregrinação a Meca, muitos muçulmanos vêm a Medina venerar a lembrança do profeta. Estas placas, as quais ornavam os muros das mesquitas a partir do século XVII, provavelmente eram doações de peregrinos. [Foto: © Clichê dos museus nacionais, Paris.]

O Corão não é um “livro santo” escrito por Maomé. A palavra significa “recitação” e o que fez Maomé foi recitar a palavra de Deus a ele pronunciada pelo anjo Gabriel. “O Corão é puramente divino, mesmo estando intimamente ligado à personalidade profunda do profeta Maomé. O Verbo de Deus jorrava através do coração do Profeta4.” Ele não é, como geralmente se acredita, a Bíblia

dos muçulmanos; a posição que ocupa o Corão no Islã é muito diferente, pois que o Corão representa para os muçulmanos aquilo que o próprio Cristo é para os cristãos: o Verbo de Deus. No Islã, o equivalente mais próximo do Novo Testamento dos cristãos, como livro reportando os atos e as palavras de Jesus, é o hadīth. Seria portanto altamente blasfematório tentar aplicar uma crítica do texto ao Corão, como foi feito para a Bíblia, ao passo que é consentido adotar uma postura crítica em relação ao hadīth, procedimento ao qual os eruditos muçulmanos se dedicaram desde os primórdios.

Os ensinamentos do Corão são de natureza global e visam guiar o homem em suas relações com Deus, assim como com os outros membros da sociedade humana. Os preceitos e os princípios corânicos constituem o fundamento da fé islâmica.

O primeiro dos princípios é o monoteísmo absoluto, expresso através de uma fórmula que talvez constitua a mais breve e simples profissão de fé se comparada a todas as religiões do mundo: “Não há outro Deus senão Alá e Maomé é o pro- feta de Alá.” Pronunciar esta curta frase (shahāda) é tudo o que um convertido deve fazer para tornar -se muçulmano. A fé na qualidade de profeta de Maomé é parte integrante desta crença, haja vista que, sem a sua missão profética, a perfeição do islã não existiria.

A shahāda constitui, portanto, a primeira lembrança daquilo que se conven- cionou chamar “os cinco pilares do islã” (arkān al ‑islām). A segunda é o dever, para cada muçulmano, de realizar a prece ritual (salāt) cinco vezes ao dia. As orações orientam o espírito dos crédulos em direção a Deus ao longo de todo o dia. Recomenda -se efetuar as orações em comum, em filas ordenadas; todos os crédulos voltam -se em direção a Meca para orar. As abluções que precedem as orações representam uma parte indispensável do seu ritual. As orações contêm na prática, por conseguinte, um valor higiênico e incitam os homens à disciplina coletiva.

O terceiro pilar é o jejum (saum), consistente em se privar de todos os pra- zeres materiais (alimento, bebida, relações sexuais etc.) desde a aurora (e não a

partir do nascer do sol, como frequentemente se diz) até o por do sol, durante o nono mês do ano lunar, chamado ramadã. Eis de onde provém a expressão “observar as prescrições do ramadã”, significando observar o jejum muçulmano. Notemos que os doentes, as pessoas em viagem durante o mês do ramadã, as mulheres próximas a darem a luz, os trabalhadores que executam trabalhos árduos, bem como os soldados em campanha, todos estão dispensados do jejum, a condição de jejuar um número equivalente de dias em outra época do ano. O jejum é, portanto, um ato de renúncia, mortificação e, como tal, ele fortifica a vida espiritual. Ele igualmente ensina os ricos a suportarem os suplícios da fome e a mostrarem -se mais compadecidos frente aos pobres que sofrem tais privações ao longo de todo o ano.

O quarto pilar é uma obrigação social da maior importância. Trata -se da esmola obrigatória, denominada zakāt, consistente para uma pessoa a dar aos pobres e a uma determinada categoria de necessitados uma parte dos bens que permaneceram com ela durante todo um ano. Esta porção varia entre 2,5% e 10%. A zakāt, sublinhando a importância da caridade, era igualmente necessária nos primeiros tempos do Islã com o objetivo de permitir a sobrevivência da comunidade, em grande parte composta de imigrantes pobres, desprovidos de qualquer recurso. Ela era coletada pela comunidade islâmica (umma), em seguida repartida entre as categorias de indivíduos indicadas pelo Corão. Ela represen- tava o equivalente da atual cobertura social garantida pelo Estado.

O quinto pilar é a peregrinação anual à Meca (hadjdj). Esta instituição res- ponde a uma constante preocupação do islã, propiciar aos homens conhecerem- -se e encontrarem -se com a maior frequência possível. É no hadjdj que o caráter universal da mensagem do islã manifesta -se com a maior evidência, pois que a peregrinação à Meca reúne, durante o mês do dhū l -hidjdja, muçulmanos vindos de todos os horizontes do mundo para ali participarem das cerimônias comemorativas ao sacrifício de Abraão. A peregrinação é obrigatória para todos os muçulmanos, mas, o cumprimento deste dever não se impõe senão àquele que possui os meios financeiros de realizá -lo, se a viagem não lhe representa nenhum perigo e se a sua saúde é boa. Ele deve igualmente poder deixar aos membros da sua família os meios de sobrevivência durante a sua ausência. Por todas estas razões, o número daqueles que são capazes de realizar este dever é mínimo, comparativamente ao número total de muçulmanos. O hadjdj repre- senta, contudo, a maior concentração multinacional de seres humanos até os dias atuais em todo o planeta. Aqueles que o realizam recebem, durante estes poucos dias, a prova visível da sua ligação com a imensa fraternidade do Islã ao redor do mundo, sem distinção de raça ou língua. O peregrino vê -se profundamente

Figura 2.3 Página do Corão em escritura kufique, século IX (Abbasia, Iraque) (Colaboração de M. B. Mohammed). [Fonte: © Werner Forman Archives, Londres.]

preenchido dos valores islâmicos e faz -se merecedor, em suplemento, do respeito devido em seu retorno a uma pessoa que deixou a sua marca sobre o solo onde viveu o profeta Maomé e onde Deus revelou o Corão.

A quarta surata formula, no verseto 135, certo número de outros artigos da fé muçulmana: “Crede em Deus e em seu profeta, no Livro que Ele revelou ao seu profeta e no Livro que Ele revelou anteriormente. Todo aquele que não crê em Deus, em seus anjos, nos seus Livros, em seus apóstolos e no dia derradeiro encontra -se em um profundo desvio.”

O Dia do Juízo é uma das partes capitais da fé muçulmana; toda história da humanidade conhecerá o seu final com a ressurreição e o Dia do Juízo. Os mortos esperam esta hora em suas tumbas enquanto os profetas e os seus mártires vão diretamente ao paraíso. Cada um apresentar -se -á perante Deus no Dia do Juízo final para ser julgado pelos seus atos e enviado ao paraíso (djanna, literalmente jardim) ou ao inferno.

O Corão igualmente contém certo número de interdições e recomendações tocantes à vida cotidiana. É proibido comer porco e alguns outros animais, assim como beber vinho e outras bebidas alcoólicas. Na décima sétima surata, do seu verseto 23 ao 40, são oferecidos vários conselhos de conduta aplicáveis à vida

cotidiana; o desperdício ostentatório, o orgulho e o desdém são condenados e os fiéis são persuadidos a atribuírem a toda coisa a sua justa medida.

Embora a escravidão seja considerada como uma instituição reconhecida, os escravos devem ser tratados com bondade, autorizados a se casarem e esti- mulados a comprarem a sua liberdade. Os mestres são incitados a libertarem os escravos crédulos5.

O islã proclama a igualdade entre o homem e a mulher. O Profeta disse: “As mulheres são as irmãs germanas dos homens perante a lei.” Costumes total- mente estranhos à ortodoxia mascararam esta bela face da religião muçulmana. Contudo, de direito, a mulher muçulmana sempre gozou de um estatuto jurí- dico relativamente ao qual poderiam ter -lhe invejado, até bem pouco tempo, as mulheres de outros sistemas religiosos. A mulher muçulmana teve desde sempre reconhecido o direito de ester en justice sem se referir ao seu marido, bem como de gerir os seus bens independentemente deste último. Longe de ser submetida à obrigação de oferecer um dote ao seu marido, é ele quem, ao contrário, está obrigado a depositar certa soma e a oferecer -lhe alguns presentes, o todo se tornando propriedade pessoal da mulher.

O Corão limita a quatro o número de esposas legítimas de um homem; o que constitui um progresso comparativamente aos tempos pré -islâmicos, durante os quais nenhuma restrição era atribuída à poligamia. Ademais, o islã conferiu à poligamia tais condições que era possível considerar que ele abria, destarte, uma via rumo à supressão ou, ao menos, à atenuação deste fenômeno social. Trata -se do que manifestam, claramente, estes versos do Corão: “Esposai, como queirais, duas, três ou quatro mulheres. Porém, caso temais não serdes equitativo, pegai somente uma mulher ou vossas cativas de guerra.” (IV, 3.) E ainda: “Vós não podeis ser perfeitamente equitativo com cada uma das suas mulheres, mesmo que seja este vosso desejo.” (IV, 1296.)

No documento HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA (páginas 71-77)