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O islã, os povos africanos e as suas culturas

No documento HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA (páginas 142-146)

O islã se reivindica de uma profunda unidade que não exclui, teoricamente, as diversidades culturais. Ele afirma com vigor a unidade do gênero humano e reconhece em todos os homens uma natureza idêntica, criada por Deus. Eles pertencem todos à “raça” adâmica à qual Deus outorgou na pré -eternidade o “pacto primordial”. Neste nível de generalidade teórica, a profunda unidade do islã não seria capaz de colocar problemas aos africanos. Contrariamente, ele colocou graves problemas aos egípcios cristãos, aos etíopes, assim como em geral aos monoteístas cristãos e judeus. A surata dita “da mesa servida3” estabeleceu

uma continuidade histórica, após Abraão, entre Moisés, Jesus e Maomé, três

2 Esta questão tem importância por ter sido um dos problemas mais apaixonadamente debatidos no coló- quio árabe -africano organizado em Dakar, de 9 a 14 de abril de 1984, pelo Instituto Cultural Africano (ICA) e a Organização Árabe para a Educação, a Cultura e as Ciências (ALECSO, sigla em inglês) sobre o tema das “relações entre as línguas africanas e a língua árabe”. As conclusões gerais deste colóquio estabelecem que nenhuma língua africana sofreu prejuízo de qualquer espécie em suas relações com a língua árabe. Nós não compartilhamos absolutamente deste ponto de vista.

mensageiros de um único Deus. Os humanos, os quais receberam a mensa- gem dos dois primeiros profetas, não souberam permanecer fiéis a eles; o rigor imposto pelo terceiro no tocante à observância das ordens divinas explica -se, a um só tempo, pela tendência dos homens à infidelidade e pelo fato de a revelação maometana ser, historicamente, a última.

Sob a unidade, facilmente concebível e aceitável, salvo para os cristãos e judeus, surge um segundo nível de contato com o islã: aquele da observância dos sinais de adesão à comunidade muçulmana e, por conseguinte, de uma possível condenação de modos de vida outros que não aqueles exigidos pelo Corão. As obrigações são bem conhecidas, elas se resumem em cinco “pilares” fundamen- tais: a shahāda ou profissão de fé identificada na expressão “Não há outra divin- dade que Alá e Maomé é o seu profeta”; a salāt ou oração ritual, cinco vezes ao dia; o jejum do ramadān, um mês por ano; a zakāt ou esmola legal, assegurando a subsistência aos pobres e órfãos; e, finalmente, o hadjdj ou a peregrinação à Meca, uma vez na vida e com a condição de possuir os meios necessários. A unidade na fé e na prática religiosa, a fraterna ajuda mútua entre os crédulos, todos “irmãos”, a hospitalidade, a justiça que decorre deste senso da comunidade, tampouco colocam, teoricamente, graves problemas. O ideal social dos fiéis muçulmanos pretende -se adaptado às forças da natureza humana, praticando a ajuda mútua, a hospitalidade, a generosidade, a fidelidade face aos engajamentos assumidos perante, primeiramente, os membros da comunidade (umma), assim como, igual e posteriormente, perante todas as outras comunidades, e a modera- ção dos desejos. Mais além, este ideal oferece, através da Jihad 4 (a guerra santa,

por extensão) e o sacrifício da vida, a ocasião de superar a si próprio. Assim se expressa a profunda unidade que caracteriza o islã, conferindo -lhe a sua fisio- nomia própria. Este espírito de comunidade encontra, notoriamente, profundas tradições africanas de organização social. Os textos muçulmanos defrontam- -se com o implícito africano: no hadīth de Gabriel, al -Bukhārī reportava que o islã também consiste em “dar comida (aos famintos) e dar a saudação à paz (salām) àqueles que se conhece e aos desconhecidos5”; ou ainda: “Nenhum dentre

vós torna -se realmente crédulo se não desejar para o seu irmão (muçulmano) aquilo que deseja para si mesmo6.” Entretanto, esta unidade coexiste com uma

real personalização da responsabilidade moral; ninguém pode ver -se imputar o

4 Jihad significa efetivamente “esforço realizado para um objetivo determinado”. Consultar capítulo 2 do

presente volume.

5 Al -BUKHāRī, 1978, vol. 2, p. 37. 6 Al -NAWāWī, 1951, pp. 21, 33, 36, 42 e 43.

erro de outro; cada qual deve responder pelos seus próprios atos. Assim sendo, o sentido de comunidade, o sentimento de fazer parte de um todo, unem -se dialeticamente à preocupação com o seu próprio destino e com as suas próprias obrigações. O crédulo é consciente de estar pessoalmente ligado a Deus, que lhe pedirá justificativas.

É necessário, desde logo, observar que a adesão ao islã é um ato individual; para ser responsável, esta ação deve ser livre: os constrangimentos moral e físico são proibidos pelo Corão. Porém, esta adesão é irreversível: trata -se de uma conversão “social”, marcando a inserção em uma comunidade de novo tipo e a ruptura com outros tipos de comunidades socioculturais. Aqui se inaugura um debate fundamental para as relações do mundo muçulmano com as sociedades e culturas da África. As situações históricas certamente são variadas, no tempo e no espaço. Não seria possível, a priori, obrigar um africano de religião dife- rente a aderir ao islã; contudo, o seu estatuto religioso – sem Livro – tornava -o um dependente incondicional e sem nenhuma proteção perante a comunidade muçulmana.

Passamos, desta forma, para um terceiro nível de contatos, muito mais dra- mático: referente ao direito. Cerca de três séculos foram necessários para que fossem estabelecidas, no mundo muçulmano, regras jurídicas em conformidade com o Corão e os ensinamentos do Profeta – sunna; estas regras deveriam permitir reunir “o conjunto das máximas, dos comportamentos, das maneiras de comer, beber, vestir -se, quitar os deveres religiosos, tratar os crédulos e os infiéis7”. A lei – sharī’a – reúne as prescrições corânicas8, completadas pelas

interdições e precisões contidas no direito – fikh. Quatro escolas interpretaram o direito segundo as modalidades variáveis e um espírito mais ou menos literal, mais ou menos rigorístico. Um dos elementos interessantes do debate acerca das relações do islã com as sociedades africanas é que as escolas jurídicas, com as quais os africanos tiveram contato, não foram as mesmas no Oeste e no Leste do continente. O Oeste, do Magreb à África Ocidental, foi profunda e quase exclusivamente marcado pelo malikismo. Mais formalista, sobretudo após os seus triunfos do século V/XI e comparativamente a outras escolas jurídicas, o malikismo, unido ao sunismo, é levado a um forte grau de intransigência pelos juristas (fukahā’), cujo papel é capital, particularmente do século V/XI ao século X/XVI. No Leste, o chafismo, fortemente implantado no Egito e mais liberal,

7 R. BLACHèRE, 1966, p. 92.

8 As condições jurídicas da vida de um indivíduo muçulmano em sua comunidade são definidas pelas mu’āwalāt corânicas. Trata -se sobretudo das suratas II, IV e V e cerca de 500 versetos.

esteve amplamente ligado ao Chifre da África e à costa oriental. Muitas das nuances e diferenças, provavelmente, explicam -se por este estado de coisas.

É finalmente necessário acrescentar que o século V/XI conheceu um duplo movimento cuja contradição é apenas aparente. Por um lado, a radicalização, a partir do momento que os turcos dominam Bagdá, de um sunismo enfim triun- fante e disposto a uniformizar, pela lei, a autoridade do Estado e o ensino, assim como a observância muçulmana unitária; por outra parte, o ressurgimento de correntes místicas – sufistas – por muito tempo combatidas, as quais buscavam expressar os sentimentos religiosos mediante a ascese e a rejeição do mundo. O Magreb demonstrou, em um primeiro momento, uma acolhida calorosa a estes místicos9. No século VI/XII, nasceram conventos, confrarias, dentre as quais a

primeira foi a Kadirīyya, ligada a Bagdá; no Marrocos, a shādhiliyya foi popu- larizada por al -Djazūlī, no século IX/XV, desempenhando um papel político e religioso. Ambas as tendências do século V/XI tiveram profundas repercussões no tocante às relações do islã com as sociedades africanas. A primeira, rele- vada em consideração pelo malikismo, tornou mais intransigente a comunidade muçulmana face às tradições culturais africanas. A outra difundiu, com grande sucesso, o culto dos homens santos, portadores de uma benção (baraka) igual àquela que os hādjdjī trazem da peregrinação para as necessidades de cura e adivinhações, estando prontos, a este título, pra islamizar certos aspectos muito antigos da vida cotidiana dos africanos. Aos olhos da pessoa comum, sempre prontas a crerem em milagres, os santos e os marabutos aparentam ser mais acessíveis que o deus majestoso e longínquo do islã. Ainda mais importante, o culto dos santos locais por vezes elimina a obrigação de peregrinação à Meca e recobre frequentemente um culto precedente. Deste modo desenvolveu -se, primeiramente no Magreb, em seguida e sobretudo após o século XI/XVII, na África Ocidental, o personagem do marabuto10, figura social dominante do islã

ocidental.

Por conseguinte, o desenvolvimento da lei muçulmana, sob os encargos dos especialistas apoiados pelo Estado, a ascensão do movimento místico dizem

9 Segundo H. MASSÉ, 1966, p. 175: “Em nenhum outro país muçulmano, talvez, o culto dos santos foi levado tão longe; pode -se dizer, sem hesitar, que ele constitui a única religião dos rurais e sobretudo das mulheres, acompanhado de ritos animistas e naturistas.”

10 O termo sequer possui sentido no Magreb e tampouco na África negra. No primeiro caso, aplica -se simultaneamente ao santo personagem fundador da confraria e ao seu túmulo; na África subsaariana, ele designa qualquer personagem mais ou menos versado no conhecimento do Corão e de outros textos sagrados, servindo -se destes conhecimentos para atuar como intercessor entre o crédulo e Deus, extraindo da fonte divinatória tradicional e da prática dos talismãs. Aos olhos do público, ele é sábio no sentido religioso do termo, mágico e curandeiro.

muito mais intimamente respeito à vida das sociedades africanas que à fé ou à simples observância. Nestes campos doutrinários, o encontro não seria tão fácil quanto nos precedentes. O perigo consistia neste caso em confundir as normas da vida social do Oriente Médio e a fé muçulmana.

Uma quarta dimensão poderia surgir: referente ao mimetismo cultural no tocante ao modelo árabe. Portanto, aquela em respeito à renúncia das tradições culturais africanas e à adoção total dos valores do mundo árabe, fossem esta últimas consideradas como inviáveis e superiores ou impostas. Desta feita, a confusão poder -se -ia estabelecer entre arabização e islamização.

Podemos medi -la, antes mesmo de iniciar a análise daquilo que foi a implan- tação como sistema social do islã na África; trata -se de um encontro entre povos, culturas e sociedades de tradições diferentes, de um encontro cujos resultados dependem da capacidade de uns e outros em separarem, ou não, aquilo simples- mente cultural em relação ao globalmente religioso, em definitivo, da permeabi- lidade das sociedades e culturas africanas, em nada passivas, às novas influências vindas do Oriente11. Equivalendo igualmente a dizer que toda abordagem do

Islã, na qualidade de sistema social, passa pelos fenômenos da islamização e da conquista, do encontro de povos. A coexistência geográfica tornava inevitável o diálogo entre muçulmanos de diversas origens e entre muçulmanos e não- -muçulmanos, pela definição de um espaço islâmico dentro do qual alcan- çaríamos a seguinte problemática: haveria ou não uma unidade, no sentido monolítico do termo, ou seria uma unidade com diversidade?

No documento HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA (páginas 142-146)