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Elementos de uma civilização original

No documento HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA (páginas 187-193)

No atual estágio dos conhecimentos sobre os povos do Sudão, parte muito importante dos estudos e trabalhos é consagrada às trocas entre estas populações e os seus parceiros do Norte, berberes e magrebinos, em detrimento das trocas no seio das próprias comunidades negras; isso é ainda mais verdadeiro no refe- rente às relações dos grandes Estados sahelianos com os países da savana e da

36 Consultar a este respeito UNESCO, História Geral da África, vol. II, capítulos 11 e 21. 37 Acerca da introdução e da importância dos diferentes animais, conferir H. J. HUGOT, 1979.

floresta38. Neste caso, o material disponível para a documentação é deficitário e

a atual informação em nada favorece um satisfatório equilíbrio. Pode -se, quando muito, examinar a posição dos Estados negros na relação de força que assim foi criada graças aos contatos entre os povos berberes e magrebinos com os negros do Sudão, em prol das relações trans -saarianas. A impressão dominante que extraímos consiste em tratar -se de uma vasta ação de exploração dos países da África subsaariana por Estados setentrionais mais bem equipados, dotados de instrumentos e técnicas mais elaboradas e variadas, emprestadas de um mundo mediterrâneo fértil em invenções e de todo tipo, equivalentes à época.

Um fenômeno antigo e relativamente regular como a escravatura, ao menos para alguns setores, bastaria para demonstrá -lo. Igualmente, boa parte da rede de trocas aparece como uma criação dos mestres berberes magrebinos e saarianos, os quais estão na origem do surgimento dos principais eixos. Eles são encontrados tanto nos destinos do Norte quanto nos itinerários que são balizados por postos de parada. Lutas ásperas acontecem para o controle das rotas e as potências do momento se esforçam para reunirem as condições de segurança satisfatórias, com vistas ao bom desenrolar de um tráfico, muito amiúde, fortemente lucrativo. O problema que se coloca então consiste em conhecer o comportamento ado- tado pelos Estados do Sudão em face desta situação, considerando as numerosas condições favoráveis aos indivíduos do Norte e o desequilíbrio resultante em seu favor. A ação dos Estados negros pode ser observada a partir de três níveis: o crescimento da sua potência, o efetivo controle do setor sob a sua autoridade e a prática de uma política em conformidade com os interesses do seu povo.

As descrições dos reis de Gana e de Kāw -Kāw (Gao) por al -Bakrī, ofe- recem uma série de detalhes que evidenciam a qual ponto a instituição real é valorizada nos dois reinos, a fim de suscitar a veneração dos sujeitos. O rei de Gana distingue -se por um ritual de vestuário: ele é o único, com o presumido herdeiro, a poder usar vestimentas costuradas; seguem outros detalhes: boné dourado e turbante, colares e braceletes. O rei mantém audiência para julgar, no quadro de um impressionante cerimonial que comporta uma rigorosa etiqueta, minuciosamente descrita por al -Bakrī; este último evidencia uma prática que se mostra de extrema importância, em virtude destas implicações religiosas: os sujeitos do rei, quando ele se aproxima, prosternam -se e se lançam por terra, sobre as cabeças39. Entretanto, este costume, dificilmente conciliável com o islã,

é poupado aos muçulmanos, os quais se contentam em bater palmas. Finalmente,

38 Consultar mais adiante o capítulo 14. 39 J. M. CUOQ, 1975, pp. 99 -100.

são descritas as grandiosas cerimônias que marcam os funerais do rei, o hábito de enterrar os serviçais com o soberano, os sacrifícios e as libações que lhe são oferecidas, os bosques sagrados que abrigam as tumbas dos reis e o seu caráter inviolável. Tudo isso contribui para fazer da monarquia uma instituição sagrada e digna de reverência.

Quanto ao rei de Kāw -Kāw (Gao), al -Bakrī reporta que a sua refeição está marcada por um ritual particular: dança das mulheres ao som do tambor, suspen- são de qualquer negócio na cidade durante a refeição do rei e anúncio público, por clamores e gritos, do final da refeição real40.

A realeza de tipo sagrado pode, ao menos durante o período islâmico, apa- recer como um elemento específico da cultura dos grandes Estados negros do Sudão. A interpretação deste tipo de monarquia fez o objeto de tentativas de recuperação, apoiadas em teorias difusionistas. Mas, no contexto do Sudão medieval, confrontado com um mundo muçulmano relativamente homogêneo, esta instituição impõe -se pelo seu caráter original; igualmente, é significativo que os geógrafos árabes abstenham -se de descrever, por exemplo, a situação de um soberano islamizado e integrado como aquele de Takrūr. Pode -se igualmente considerar tal instituição como um instrumento eficaz nas mãos destas socieda- des, para garantir o governo dos seus Estados, sobretudo quando se tratam de reinos que exercem uma hegemonia sobre uma área muito extensa, como foi o caso de Gao e Gana.

Se os reis do Sudão tem autoridade, poder e potência no interior dos seus Estados, firmemente governados por intermédio de uma instituição apropriada, eles controlam, igual e parcialmente, as relações com o exterior. Podemos inter- pretar nestes termos as relações de Gana com os berberes que reinam em Awdāghust desde a sua fundação, no século III/IX, pelos lamtūna. Os soberanos de Gana estendem o seu reino em todas as direções desde o final do século II/ VIII. A existência de um centro de negócios berbere, na extremidade meridional do deserto, podia favorecer as trocas com o Norte e, sob esta ótica, a cidade de Awdāghust certamente possuía razão de ser. Faltaria ainda conceber o seu nos limites compatíveis com a soberania de Gana. Bastava -lhes serem os corretores e os intermediários de um tráfico cujo verdadeiro polo meridional seria Gana. Um crescimento das suas pretensões e um reforço do poder lamtūna em Awdāghust poderiam constituir uma ameaça para o Estado de Gana, em seu apogeu nos séculos IV/X e V/XI; assim explica -se porque a instalação de um governador

soninquê, a quem caberia doravante controlar o poder dos lamtūna. O enqua- dramento soninquê aparenta ter cumprido a sua missão com muita eficácia, pois que os negros manteriam o controle da situação em Awdāghust até a sua destruição, em 446/1055, pelos almorávidas, os quais suportavam dificilmente a sua aliança com Gana41.

O controle da situação política é indissociável do efetivo domínio dos sonin- quês sobre o conjunto do setor econômico na zona sob a sua autoridade. Uma das condições necessárias deste poder é preservar o segredo acerca das fontes da sua prosperidade. Os soberanos de Gana exerceram um estrito e eficaz controle neste importante âmbito, particularmente no tocante aos lugares de proveniência do ouro e às condições da sua aquisição. Não é impossível que isso seja muito antigo. Um relato como aquele da “troca muda” do ouro, fortemente difundido inclusive além da África, pode ter tido a função, entre outras, de “macular as pistas”42.

O soberano de Gana, esforçando -se para manter em mãos os meios das transações econômicas ao Sul do Saara, pratica uma inteligente política: ele cobra taxas sobre as operações, na entrada e na saída das mercadorias do seu território; os mercadores devem pagar duas vezes pelo sal: um dinar na entrada e dois dinares na saída. Gana desempenha assim o papel de plataforma giratória para a distribuição deste produto vital que é o sal para a África Subsaariana. O soberano de Gana, segundo al -Bakrī, reserva para si toda a produção de pepitas para evitar o desabamento das cotações do ouro43. Tendo perfeitamente compre-

endido os mecanismos econômicos no centro dos quais se encontra Gana, ele pretende manter o monopólio de um produto tão capital quanto o ouro. Des- tarte, o mundo negro organiza a sua economia de trocas para enfrentar o poder dos produtores de sal, em virtude deste último produto ser trocado por ouro.

Nestas condições, é pouco provável que o comércio e todo o sistema de tro- cas econômicas que ele implica tenham sido inspirados para os negros de Gana pelos líbio -berberes, tal como isso foi por vezes sugerido; estes últimos, segundo esta proposição, ao trazerem não somente o conceito, mas, em suplemento, as técnicas deste comércio que inclui o tráfico de escravos, teriam suscitado o nascimento do Estado de Gana. O controle exercido pelos soberanos sudaneses sobre a esfera das trocas que lhes pertenciam não permite avançar tal hipótese. O caso dos sēfuwa do Kānem é instrutivo a este respeito. Ao tomarem o lugar

41 Conferir al -Bakrī, em: J. M. CUOQ, 1975, pp. 91 -92. Consultar mais adiante o capítulo 13. 42 Sobre a troca muda, conferir P. F. de MORAES FARIAS, 1974, pp. 9 -24.

dos soberanos zaghāwa (dinastia dos duguwa) no momento da islamização do Kānem, eles compreenderam que a evolução religiosa do país poderia constituir uma ameaça para a sua economia, cujo principal fundamento era o tráfico de escravos. Com efeito, é proibido reduzir à escravatura um muçulmano livre. Como muito bem mostrou D. Lange em sua obra sobre os progressos do islã e as mudanças políticas no Kānem, do século V/XI ao século VI/XII, os sēfuwa prolongaram um tipo de domínio político -econômico que lembrava as práticas dos seus predecessores não -muçulmanos na época zaghāwa44.

Os reis do Sudão manifestaram uma grande habilidade política em suas relações com o mundo muçulmano e com a cultura da qual se reivindicava o conjunto dos parceiros do Norte, com os quais eles se relacionavam. Eles souberam utilizar em seu proveito as competências junto aos muçulmanos que frequentavam os seus Estados. Segundo al -Bakrī, o rei de Gana escolhia os seus intérpretes, o seu tesoureiro e os seus ministros em meio aos muçulma- nos45. Assim sendo, confiando setores da sua administração a letrados muçul-

manos, ele com isso espera certa eficiência. Em contrapartida, ele busca criar as condições favoráveis para o exercício da religião daqueles últimos. Gana, assim como Gao, possui ao lado da cidade do rei uma cidade onde habitam os muçulmanos, com doze mesquitas cada qual com o seu imame, o seu muezim, o seu leitor. Consultores jurídicos e eruditos vivem igualmente nesta cidade. Enfim, os muçulmanos não são forçados aos costumes incompatíveis com as suas convicções religiosas.

Quanto ao soberano de Gao, em princípio ele deve ser muçulmano; no mais, os atributos da autoridade real que lhe são atribuídos no momento da investi- dura comportam, além do brasão e do sabre, o Corão, “os quais seriam”, precisa al -Bakrī, “os presentes enviados pelo emir dos crédulos46”. Entretanto, o fato de

os dois soberanos governarem povos, livres praticantes de religiões do terreiro, coloca o problema das relações do Sudão com o mundo muçulmano no curso deste período inicial de islamização47.

Em suma, pode -se reter como característica dos Estados do Sudão saheliano, correspondentes à parte conhecida do “país dos negros”, a tentativa permanente de controlar de modo responsável o seu meio. Assim sendo, pode -se ver emergir uma cultura específica que se enraíza profundamente no universo religioso tra-

44 D. LANGE, 1978, p. 513; igualmente consultar mais adiante o capítulo 15. 45 J. M. CUOQ, 1975, p. 99.

46 Ibid., p. 109.

dicional. Este último serviu, muito amiúde, para contestar sem brilho, embora eficazmente, muitos dados que chegavam com a pretensão e o prestígio de uma sociedade aparentemente mais equipada.

Conclusão

O estudo dos movimentos populacionais requer em primeiro lugar, antes de tudo, um rigoroso balanço crítico que permita reexaminar os esquemas tão difundidos concernentes às migrações de distância muito longas dos povos negros. Os movimentos dos povos do Sudão antes do século V/XI nada têm em comum com os deslocamentos anárquicos em espaços imensos.

A primeira ação parte do período final do Neolítico, quando o Saara, outrora florescente, torna -se estéril e inóspito ao término de uma “longa agonia”. Os negros, os quais constituíam o vetor dominante do povoamento saariano, foram obrigados a recuarem para o Sul, para buscarem no Sahel condições favoráveis para a prática das suas culturas. Eles abandonaram o terreno a grupos de pastores nômades especializados, os quais se adaptaram às novas condições sem renunciar a impor a sua lei aos povos da região saheliana, por eles submetidos a frequentes pressões. Estes últimos encontraram in loco outros grupos de negros com os quais eles se organizaram para enfrentar as ameaças vindas do Norte. Deste impulso nasceriam progressivamente conjuntos sociopolíticos mais ou menos espalhados desde o Kānem, a Leste, até o Takrūr, no Oeste, ao longo do período precedente à chegada do Islã ao Sudão.

Chegando à zona saaro -sudanesa, os muçulmanos encontram -se perante uma série de Estados já constituídos ou em vias de formação. O poderoso reino soninquê de Gana domina, entre Senegal e Níger, o grande grupo manden, ao passo que, na parte oriental da curva do Níger, emerge o núcleo daquilo que se tornaria o reino Songhai. Este reino controla tanto o tráfico do rio quanto a via interligando o Níger à África do Norte, passando pelo Adrār dos ifoghas e pelo Hoggar. Do outro lado do lago Chade, os povos são estão em vias de consolidar a sua posição e adquirem os instrumentos da sua futura política de conquista. Cavalos e camelos ajudar -lhes -iam a empreender uma expansão sistemática rumo ao Norte, onde eles tomariam posto no conjunto kanuri em vias de nascimento.

A chegada do Islã no século II/VIII introduz um dado suplementar que, a partir do século seguinte, tornar -se -ia um estimulante; dado correspondente a um crescimento das trocas econômicas e culturais. Mas, sobretudo, o fator

religioso começa a desempenhar um papel importante na evolução política e social, observada desde o Magreb até o Sudão.

Este período, compreendido entre os séculos II/VIII e V/XI, é decisivo para os povos do Sudão; graças a uma sólida organização e à estrutura poderosamente centralizada da sua monarquia, eles foram capazes de tomar consciência do alcance das trocas com a África mediterrânea e saariana. Entretanto, a sua cons- tante preocupação foi conservar o controle das transações para evitar deixar aos intermediários saarianos o domínio das trocas e as fontes da sua prosperidade. Contudo, usufruindo das vantagens culturais e econômicas da presença dos seus parceiros setentrionais, eles adotaram uma postura suficientemente tolerante

vis ‑à ‑vis das mentalidades e exigências religiosas destes últimos, chegando até

a se converterem ao islã, mantendo -se todavia enraizados nas suas próprias tradições religiosas. Deste modo, os dirigentes sudaneses e sobretudo aqueles de Gana puderam enfrentar a concorrência com os seus vizinhos sanhādja, rea- grupados no movimento almorávida no século XI. Estas circunstâncias evitaram uma completa decadência, em que pese o assalto almorávida e um eclipse pas- sageiro. Destarte, os Estados negros lograram salvaguardar a sua personalidade e assegurar as bases de uma civilização duradoura cujos ulteriores desenvolvi- mentos expressam -se no Mali, no Songhai e nas cidades haussa.

No documento HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA (páginas 187-193)