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Os contatos com a Indonésia

No documento HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA (páginas 60-67)

Se os contatos entre a África, por um lado, e China e Índia, por outra parte, foram, como vimos, sobretudo indiretos, outra região situada na porção oriental do Oceano Índico incontestavelmente deixou suas marcas em algu- mas regiões, ao menos da África. O papel desempenhado pelos indonésios no povoamento de Madagascar é reconhecido há muito tempo. Nos dias atuais, uma das tarefas prioritárias dos especialistas em história malgaxe consiste em elucidar como os elementos de origem indonésia e africana se conjugaram para compor a cultura malgaxe. Como estes aspectos da história malgaxe e outros problemas correlatos são objetos de estudo em outros capítulos desta obra31, nós abordaremos aqui somente as questões que interessam diretamente

o continente africano.

Parece -nos hoje que se exagerou o peso das influências indonésias sobre o continente africano. Não há praticamente nenhuma prova de uma penetração direta dos indonésios na África Oriental, comparável àquela ocorrida em Mada- gascar. Até o presente, nenhum elemento arqueológico, linguístico ou antropo- lógico foi descoberto para tornar possível atestar uma presença prolongada dos indonésios. A teoria de Hubert Deschamps32, segundo a qual os protomalgaxes

teriam permanecido no litoral africano, onde se teriam misturado ou casado com autóctones, antes de estabelecerem -se na ilha de Madagascar, esta teoria não se fundamenta em nenhuma prova. Raymond Kent foi ainda mais longe, situando a migração da Indonésia na África Oriental antes da chegada a esta região dos grupos de língua bantu. Em seguida, contatos teriam ocorrido entre indonésios e bantus, os quais teriam penetrado no interior das terras, levando o

31 Conferir capítulo 25 a seguir e UNESCO, História Geral da África, vol. II, capítulo 28. 32 H. DESCHAMPS, 1960.

povo afro -malgaxe a ser produto desta mestiçagem. A expansão dos bantus em direção às regiões costeiras teria forçado este povo a imigrar para Madagascar33.

Estas teorias repousam na ideia segundo a qual os indonésios teriam sido incapazes de imigrar sem interrupção de margem a outra do Oceano Índico. Os nomes de certo número de etapas são mencionados em corolário – ilhas Nicobar, Sri Lanka, Índia, arquipélagos das Laquedivas e das Maldivas – de modo que a imigração indonésia é descrita como uma série de saltos relativamente curtos de ilha em ilha, alternada por períodos de permanência na Índia e na África Oriental. Tal hipótese não contém, em si, nada de impossível ou inconcebível; no entanto, estes períodos de permanência deveriam ser relativamente curtos, pois que os indonésios não deixaram vestígio algum aparente da sua presença nestes lugares.

Alguns autores, notadamente G. P. Murdock, conferiram grande importância ao que se convencionou chamar “complexo botânico malaio”, o qual compreende o arroz, a banana, o taro, o inhame, a fruta -pão e outras plantas que posterior- mente formaram a alimentação básica de muitos africanos. Murdock e outros estimam que estas plantas tenham sido introduzidas em Madagascar no 1o

milênio antes da era cristã por imigrantes vindos da Indonésia, os quais teriam margeado a costa sul do continente asiático antes de atingirem o litoral da África Oriental. Sem abordar o complexo problema da origem destas plantas, gosta- ríamos de observar que as plantas cultivadas podem perfeitamente difundir -se sem que os povos precursores em seu cultivo ou consumo tenham eles próprios imigrado, tal como testemunha, de forma impactante, o modo pelo qual algu- mas culturas americanas expandiram -se em toda a África Ocidental e Central, após o século XVI. Bem entendido, permanece possível que algumas plantas do Sudeste Asiático tenham ulteriormente sido introduzidas no continente africano a partir de Madagascar.

Assim sendo, não há dúvida que os indonésios eram hábeis e experientes navegadores que empreenderam, a partir da sua ilha de origem, numerosas expedições em todas as direções. Além de terem sido, talvez, os primeiros a comercializar através do oceano com a China, eles se mostraram particularmente ativos nas rotas marítimas em direção à Índia. Na segunda metade do 1o milê-

nio, grandes potências marítimas surgiram na Indonésia, como o Império de Śrīvijāya, em Sumatra (séculos VII -XIII) e o reino da dinastia Śailendra (século VIII), em Java, que estendeu o seu domínio a Śrīvijāya34.

33 R. K. KENT, 1970.

Interessaremo -nos aqui somente pelos únicos aspectos da sua história que se reportam à situação geral no Oceano Índico ou que concernem os seus eventuais contatos com a África. O reino de Śrīvijāya cujo centro localizava -se, origi- nalmente, no sudeste de Sumatra, surgiu como potência marítima na segunda metade do século VII. A sua expansão territorial e comercial prosseguiu no curso dos séculos seguintes e, no século X, o seu soberano é descrito, nos primeiros relatos de geógrafos árabes ou persas, como o marajá por excelência, o mais poderoso e importante monarca de toda a região, o “rei das ilhas dos mares orientais”. Os dirigentes de Śrīvijāya lograram controlar os principais portos da região, assegurando para si, pela mesma ocasião, o monopólio sobre o comércio das especiarias em um vasto raio. O controle do estreito de Malacca conferia- -lhes uma enorme vantagem, haja vista que todos os navios deviam passar por este estreito e fazer escala em seus portos. O reino manteve relações estáveis e amigáveis com os chola do Sul da Índia e com a China até o primeiro quarto do século XI.

Após a quase total destruição, em 265/878, da colônia de mercadores muçul- manos estabelecida na China (conferir p. 42) e o subsequente declínio das rela- ções comerciais diretas entre muçulmanos e chineses, os soberanos de Śrīvijāya habilmente mostrar -se -iam capazes de encontrar o seu espaço nesta lucrativa atividade. Os navios muçulmanos rumavam para o Leste e os navios chineses dirigiam -se para o Sul, encontrando -se no estreito de Malacca, em Kalah, porto situado sob a soberania do Império Indonésio. Simultaneamente, os navios de Śrīvijāya participavam do comércio do Oceano Índico. Os estreitos laços estabelecidos entre a Indonésia e a porção sul da Índia são confirmados pelas inscrições dos monastérios e das escolas búdicas de Negapatam. Dispomos, por outro lado, de textos árabes, pouco numerosos mas extremamente preciosos, sobre as expedições indonésias na parte ocidental do Oceano Índico. O primeiro é o relato, bem conhecido, do ataque de Kanbalū (Pemba) pelos Wāk -Wāk, em 334/945 -94635.

O fato dos atacantes terem levado um ano inteiro para atravessar o oceano a partir do seu país de origem, à sua época, já incitava o autor do relato a concluir que as ilhas dos Wāk -Wāk situavam -se opostas à China. G. Ferrand mostrou que os autores muçulmanos designavam sob o nome Wāk -Wāk duas regiões

35 Conferir Buzurg IBN SHAHRIYāR, 1883 -1886, pp. 174 -175; encontraremos em UNESCO, História

Geral da África, vol. II, pp. 768 -769, a tradução completa deste relato, cujo texto exato da segunda frase

é: “eles ali chegaram em mil embarcações e os combateram com o derradeiro vigor [os habitantes de Kanbalū], sem todavia chegar a termo...”.

ou duas etnias diferentes, uma situada em algum lugar na região sudoeste do Oceano Índico, compreendendo Madagascar e a costa africana até o Sul de Sufāla, e a outra, no Sudeste Asiático, na atual Indonésia36. Diversas fábulas e

lendas são levantadas a seu propósito, às quais sucessivos autores acrescentaram vários detalhes contraditórios, de modo que o quadro geral apresenta -se como extremamente confuso. Todavia, aparentemente ninguém ainda dedicou aten- ção ao fato dos Wāk -Wāk, por uma curiosa coincidência, terem sempre sido associados, nas obras geográficas árabes, a regiões nas quais povos de origem indonésia ou malaia coabitavam ou viviam em vizinhança com povos negros ou em meio a estes últimos. Assim, al -Bīrūnī37 escreve que os povos da ilha wāk-

-wāk são negros de pele, embora proximamente vivam outros povos de pele mais clara, parecidos com os turcos (termo genérico empregado pelos muçulmanos para designar as raças mongolóides). Al -Bīrūnī pensava aqui em certas regiões do Sudeste Asiático e o lugar que ele denomina wāk -wāk é ou a Nova Guiné (Irian), onde até hoje existe uma localidade chamada Fakfak, ou umas das ilhas Molucas, parcialmente habitadas por melanésios, a menos que se trate ora de uma ora de outra. Muitos autores muçulmanos não se encontravam ainda em condições – ou não pretendiam – de indicar a origem étnica precisa do povo denominado wāk -wāk, de modo que devemos, invariavelmente, analisar o con- texto no qual o termo aparece para tentar determinar o seu provável significado. Nesta circunstância, alguns detalhes da relação de Ibn Lākīs indicam clara- mente que o lugar de origem destes wāk -wāk situava -se no Sudeste Asiático. Ora, sabendo que nesta época a principal potência marítima da porção oriental do Oceano Índico era o Império de Śrīvijāya, não parece abusivo entrever nesta expedição de longo percurso uma tentativa do reino indonésio para estender o seu domínio comercial de modo a alcançar um acesso mais direto aos produtos africanos e ameaçar o monopólio dos muçulmanos. Finalmente, talvez essa não fosse a primeira tentativa deste gênero: é possível que estas expedições tenham começado na segunda metade do século IX, quando as atividades comerciais dos muçulmanos estavam seriamente comprometidas pela revolta dos zandj e pela expulsão dos mercadores estrangeiros para fora dos portos chineses. Resta saber até que ponto estas expedições estariam ligadas às novas ondas migrató- rias indonésias que atingiriam Madagascar entre os séculos X e XII (al -Idrīsī confirma que navios indonésios continuaram a visitar as costas africanas e mal- gaxes ao longo dos séculos seguintes). Não se deve excluir, por outro lado, que

36 G. FERRAND, 1929. Para um estudo mais recente sobre a questão, conferir G. R. TIBBETS, 1979, pp. 166 -177. 37 Al -BīRūNī, 1887, p. 164; para a tradução inglesa, consultar 1888, vol. I, pp. 210 -211.

estas migrações tardias tenham estado, de modo ou outro, ligadas às invasões ou incursões lançadas pelos chola do Sul da Índia contra Śrīvijāya, na segunda metade do século XI, ataques que enfraqueceriam consideravelmente o reino indonésio e teriam sido capazes de levar a sua população a fugir ou imigrar. É difícil alcançar maior certeza, considerando a ausência de documentos pertinen- tes sobre a história de Śrīvijāya.

Conclusão

No tocante ao período precedente, os contatos mútuos entre o continente africano e as outras partes do Oceano Índico evoluíram tanto no plano qualita- tivo quanto no plano quantitativo.

Observa -se, primeiramente, um fortalecimento regular da presença dos povos do Oriente Médio em toda esta área, particularmente na costa oriental da África, onde os árabes e persas souberam desenvolver atividades comerciais existentes desde os primeiros séculos da era cristã. Esta nova expansão produziu -se quando o califado tornava -se uma grande potência política, cultural e econômica, capaz de unificar um vasto território, possibilitando assim aos muçulmanos assegu- rarem o monopólio sobre o comércio com a África Oriental e conquistarem uma posição dominante nas relações entre os diferentes países desta região. Conquanto estes contatos tenham, sem dúvida, favorecido na África a ascensão de algumas cidades costeiras, transformadas em centros comerciais de importân- cia internacional, assim como o surgimento de uma classe de empreendedores autóctones, não se deve esquecer que, simultaneamente, um grande contingente de escravos africanos era exportado para outros continentes e contribuía para a prosperidade econômica de diversos países da Ásia, especialmente do Oriente Médio.

Em segundo lugar, nota -se muito claramente o declínio dos contatos diretos entre a África e a Índia. Antes do século VII, navios etíopes comercializavam com alguns portos da Índia, como atestam amplamente grande número de peças de moeda indianas (de Kush) descobertas na Etiópia, assim como abundantes influências indianas, materiais e intelectuais, identificadas na cultura etíope. Se contarmos do século VII ao século XI, estas influências vão deixar de se exercer, sobretudo porque as trocas entre a Índia e a Etiópia estariam, doravante, em mãos dos muçulmanos, os quais marcariam estas relações com a sua própria impressão cultural.

Enfim, malgrado a supremacia exercida pelos muçulmanos no Oceano Índico, os indonésios foram capazes de manter contatos com Madagascar e, inclusive, com algumas partes do litoral africano, embora não tenham aparentemente exercido sobre o continente senão uma desprezível influência. As afirmações de alguns autores concernentes a uma contribuição decisiva da Indonésia para a cultura africana devem ser consideradas como especulações não assentadas sobre nenhum dado sólido. Óbvia e diferentemente, deve -se considerar o caso de Madagascar, cujos laços com a Indonésia não poderiam ser questionados.

Resta -nos examinar o papel que os povos de origem africana desempenha- ram no Oceano Índico. Ao fazê -lo, devemos guardar em mente que somente uma ínfima parte do continente – a estreita faixa litorânea – encontrava -se nesta época em contato com o mundo exterior. O número de africanos em condições de exercerem ou receberem uma influência qualquer foi, tudo leva a crer, assaz limitado. A situação difere sensivelmente, portanto, daquela preva- lente na África Ocidental, onde os contatos transculturais tiveram lugar em um front muito mais amplo e profundo. Contudo, o papel exercido pelos africanos da costa oriental não deve absolutamente ser negligenciado; ao contrário, eles contribuíram para modificar profundamente o destino de um grande império. A revolta dos zandj, autêntico levante de protesto social, teve consequências consi- deráveis em grande número de esferas – política, social, econômica. Ela abalou a unidade do Império Muçulmano, provocando a cisão de algumas importantes províncias e, a termo, a queda do velho regime dos abássidas. A crise política desencadeada pela revolta acentuou a clivagem entre as classes sociais e os abastados, temendo pelos seus privilégios, começaram a requerer os exércitos profissionais dos turcos e de outros mercenários, únicos capazes a seus olhos de manter a ordem: abria -se assim uma nova era na história do Oriente Médio muçulmano. O levante igualmente representou uma lição para as classes diri- gentes: doravante, os muçulmanos orientais evitariam empregar maciçamente escravos em projetos de grande envergadura e, aparentemente, foi abandonada a exploração de escravos nos trabalhos agrícolas e de irrigação. Esta mudança, por sua vez, provocaria no século seguinte o surgimento do feudalismo como modo de produção dominante, nos países muçulmanos do Oriente, exploração feudal em substituição ao escravismo. Em razão da falta de dados estatísticos, é toda- via impossível saber se, nesta época, diminuiu o número de escravos africanos importados para esta região. Outra consequência da revolta dos zandj foi, ao que tudo indica, avivar os sentimentos raciais: os africanos de raça negra tornaram -se objetos de desprezo, a despeito dos ensinamentos do Islã, e numerosos temas,

refletindo uma postura negativa vis -à -vis dos negros, apareceram pela primeira vez na literatura muçulmana.

Outros aspectos do período da história africana estudada neste volume devem -se, parcialmente, à interação entre as diferentes regiões do Oceano Índico. Deste modo, explica -se por exemplo a importância crescente que as cidades da costa oriental africana ganharam no âmbito do comércio marítimo internacional. Embora o transporte marítimo estivesse em mãos de mercadores estrangeiros, os produtores e exportadores eram os povos africanos da costa. Certamente, a civilização suaíli não atingiria seu pleno florescer político, eco- nômico e cultural, senão no curso dos séculos seguintes, porém foi precisamente entre os séculos VII e XI que as bases deste processo foram lançadas.

C A P Í T U L O 2

O capítulo precedente permitiu -nos examinar os principais acontecimentos ocorridos no Velho Mundo entre os séculos I -VII e V -XI, sob o prisma das suas relações com a história da África. Identificamos que uma das forças mais dinâmicas em ação no curso deste período foi a sociedade islâmica em suas manifestações de toda ordem, religiosa, política, econômica, cultural.

O presente capítulo tem como objeto oferecer uma descrição do surgimento do Islã, da sua expansão política e da sua evolução doutrinária, contexto que nos permitirá melhor compreender os problemas históricos e ideológicos que serão tratados ou evocados ulteriormente, no presente volume assim como nos volumes posteriores da História Geral da África.

No documento HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA (páginas 60-67)