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Tentativas de integração dos povos africanos no crisol sudanês

No documento HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA (páginas 178-183)

Caso abordemos a questão das populações do Sudão a partir de dados peri- féricos, ou seja, exclusivamente fundamentados nas representações e interesses das sociedades mediterrâneas, do Magreb ao Oriente, correremos o risco de falsear as perspectivas de um estudo do meio especificamente oeste -africano e das suas populações. Os resultados de tal análise não podem ser senão parciais. É bem verdade que a nossa informação permanece fragmentada apesar dos esforços realizados, assim como que numerosas questões ainda demandam res- postas. Em primeiro lugar, tentaremos definir o terreno no qual as sociedades africanas organizam -se e se estruturam no curso do período em questão. É necessário recorrer aqui aos resultados dos trabalhos que requereram as mais recentes técnicas de pesquisa como a paleoecologia, a palinologia e a arqueolo- gia. Conjugando as suas contribuições com os dados mais acessíveis da tradição oral e das fontes árabes, temos a oportunidade de acompanhar o surgimento de algumas hipóteses sólidas. Os trabalhos realizados na Mauritânia para a pré- -história saariana e os períodos mais tardios têm um valor exemplar. As regiões do Adrār, do Tāgant e do Awkār são, deste ponto de vista, privilegiadas. As pesquisas efetuadas por H. J. Hugot e P. Munson21 podem ser consideradas como

o símbolo daquilo que é aparentemente requerido para fazer avançar a questão dos movimentos populacionais em outros setores da África subsaariana. Elas interessam diretamente o setor ocidental do “país dos negros” e abrem perspec-

20 Consultar G. CAMPS, 1969, pp. 11 -17; 1970, pp. 35 -45; H. Von FLEISHHACKER, 1969. 21 P. MUNSON, 1968, 1970, 1971, 1980; H. J. HUGOT e colaboradores, 1973; H. J. HUGOT, 1979.

tivas positivas para o conhecimento de grupos tão representativos quanto os fula e os soninquês22. O estudo dos movimentos populacionais desta zona remete-

-nos ao período neolítico do Saara e, sobretudo, ao maior evento geoclimático que constitui a aridez progressiva desta região, tornada desértica. O processo entra em sua fase ativa aproximadamente no quarto milênio antes da era cristã; isso engendra consideráveis mudanças sócio -históricas que tocam o conjunto do continente. Está atualmente estabelecido que o mapa do povoamento do Saara neolítico difere sensivelmente daquele da época que sucedeu a evolução climática e podemos identificar os sérios indícios de um povoamento negro, majoritariamente sedentário. O primeiro milênio da era cristã poder -se -ia carac- terizar pela permanência de comunidades de camponeses negros, constituintes dos núcleos solidamente implantados junto aos nômades líbicos -berberes e, posteriormente, berberes. A pressão destes últimos desencadeia um progressivo movimento de deslocamento para o Sul, ou seja, rumo à zona de implantação que, em grande parte, foi conservada pelos povos negros. Cabe examinar em que medida tais hipóteses permitem apreender as questões fortemente discutidas, relativas à origem dos fula e dos soninquês sahelianos.

Os fula vivem em um espaço muito extenso da savana oeste -africana e a sua presença em muitas regiões, entre o Senegal e Camarões, confere certa amplitude às questões relativas à sua proveniência, bem como às diferentes etapas dos seus deslocamentos23. O seu modo de vida os faz surgirem em certos

lugares como marginais, comparativamente aos outros grupos, o que suscita entre estes últimos a opinião segundo a qual os fula seriam instáveis do ponto de vista fundiário, dedicando -se permanentemente a “migrações”. Isso explica, em grande parte, porque eles teriam oferecido às especulações dos teóricos do difusionismo o terreno propício onde se desdobram uma gama variada de teses “hamíticas”. Buscou -se o berço do grupo fula nas mais diversas regiões, dentro e fora da África; alguns viram nos ciganos ou nos pelasgos os ancestrais dos fula; Delafosse os faz descenderem dos judeus -sírios. Alguns lhes atribuíram uma origem indiana, apoiando -se no suposto parentesco dravidiano das línguas fula e serer; outros encontraram semelhanças antropológicas e sociológicas entre os fula do Adamawa e os antigos iranianos; alguns os fazem descender dos árabes- -berberes, ao passo que outros mais lhes atribuem uma origem núbia e etíope, em todo caso leste -africano, unindo -os aos nūba do Kordofān24.

22 Conferir, sobre as condições geográficas desta região, C. TOUPET, 1977. 23 A literatura sobre os fula é considerável; conferir C. SEYDOU, 1977.

A maioria destas teses é defendida com argumentos linguísticos e antropo- lógicos de todo tipo. Nenhuma se impõe seriamente. Elas têm em comum um pressuposto “hamítico”, segundo o qual os grandes Estados do Sudão devem -se essencialmente a fatores externos, contribuições trazidas por povos pastores, dentre os quais os fula. Estas concepções não encontram nenhum apoio nos estudos atuais, os quais sugerem de modo convergente a seguinte orientação: o fenômeno peul pertence ao meio oeste -africano; ele é parte integrante da sua geografia humana, da sua evolução histórica e da sua cultura. Fora deste quadro, não há nenhuma possibilidade de resolver o problema da sua origem e dos seus movimentos. No plano linguístico, um melhor conhecimento das suas falas evidencia que a língua fula tem um substrato indiscutivelmente africano, oferecendo parentescos com o uólofe e o serer, mesmo se admitimos que ele- mentos pré -berberes marcaram este núcleo. No tocante à sua proveniência, as probabilidades pendem para a região meridional da Mauritânia, onde os fula encontravam -se no início da era cristã. Foram levantadas notáveis correspon- dências e influências da língua fula nos topônimos das regiões mauritanas do Brakna e do Tāgant. Esta série de hipóteses situa os peul na descendência dos pastores bovídeos atestados na Mauritânia no terceiro e segundo milênios antes da era cristã. Durante o período que nos interessa, eles se deslocaram ao mesmo tempo em que as populações negras, rumo ao vale do Senegal, participando da formação de certos Estados, como o Takrūr. A presença peul no oeste -africano manifesta -se sobretudo no Fouta Toro, no século V/XI, embora a menção explí- cita do seu grupo não seja absolutamente encontrada nas fontes árabes antes do escritor al -Makrīzī e da Crônica de Kano (séculos VIII/XIV -IX/XV).

É necessário aqui inserir algumas considerações sobre os etnônimos peul e tukuler (toucouleur): os peul autodenominam -se pullo (no singular) e fulbe (no plural). Todos os indivíduos que falam a sua língua – o pulaar ou ful- fulde – chamam -se halpularen. Este último termo é igualmente a denominação empregada pelos habitantes do Fouta Toro, os quais são designados nas outras fontes europeias como tukuler (toucouleur). Os etnógrafos e outros sábios da época colonial que encontraram os fula no Senegal começaram a distinguir os pastores, por eles nomeados fula (peul, fulani), da população sedentária falante da mesma língua, para a qual eles propuseram o nome tukuleur/toucouleur, considerando -a como uma etnia diferente. Embora haja entre estes dois grupos diferenças relativas aos costumes, estas diferenças encontram a sua origem na esfera socioeconômica e não são em lugar algum de ordem étnica, linguística ou cultural. Aparentemente, resulta de uma ironia do destino que, na região de onde

as migrações dos fula rumo ao Leste começaram, ou seja, no vale do Senegal (o Fouta Toro), os fula devam ser designados por um nome que lhes é estranho25.

Deixando à margem as especulações e hipóteses sobre a origem e as migra- ções pré -históricas dos fula, atualmente se reconhece, por pouco que não unani- memente, que na época histórica os fula vieram do Fouta senegalês, devendo -se considerar o grupo senegalês vizinho dos seus parentes próximos, os serer e os uólofes, como o núcleo a partir do qual outros grupos de língua peul (pular ou fulfulde) dispersaram -se e emigraram rumo ao Leste e para o Sul.

Entre os séculos V/XI e IX/XV, os fula se dirigem para o Masina, passando por Diombogo e Kaarta. Notar -se -á que a instalação dos peul efetua -se em contatos progressivos. Pequenos grupos e famílias instalam -se assim no Fouta- -Djalon, provenientes do Ferlo e do Fouta Toro. Trata -se, portanto, de uma integração lenta, através de trocas com as populações já estabelecidas aquando da sua chegada26. Os movimentos dos peul não são em nada comparáveis com

invasões; por conseguinte, eles não respondem ao esquema clássico das “teorias hamíticas” acerca da transformação de estruturas arcaicas dos povos negros, por elementos “hamitas brancos”. A questão da origem dos fula e dos seus desloca- mentos é, certamente, essencial para a história dos povos oeste -africanos, pois que ela se refere a todos os grupos do Sudão, do Ocidente ao Oriente. Porém, também importa que outros aspectos concernentes às relações dos fula com estes grupos – sobretudo uólofes, serer, soninquês e manden – sejam aprofundados, do mesmo modo no tocante às suas relações com o antigo Gana.

A fundação de Gana, à imagem da origem dos fula, foi interpretada através de esquemas difusionistas, fundamentados nos autores Ta’rīkh; Delafosse atribui a Gana fundadores sírio -palestinos, os quais teriam chegado junto aos soninquês de Awkār a partir da Cirenaica, com etapas no Aïr e no Sudão nigeriano. Estes estrangeiros seriam igualmente os ancestrais dos fula. O poderoso Estado de Gana teria sido criado por eles no século III da era cristã. Aproximadamente no final do século II/VIII, os negros soninquês, conduzidos por Kaya Maghan Cissé, o seu primeiro rei (tunka), teriam expulsado os brancos para o Tāgant, rumo ao Gorgol e o Fouta27.

Paradoxalmente, as lendas do reino de Wagadu aparentam levar na mesma direção. As versões reportadas por C. Monteil conferem a Dina, o fundador de

25 Os fula são chamados fula pelos manden, fulani (no singular ba ‑filanci) pelos haussa, felata pelos kanuri e árabes do Sudão e fulāni pelos árabes.

26 T. DIALLO, 1972.

Kumbi, capital do Wagadu, uma origem judia ( Job), no primeiro caso, ou uma origem iraniana (Salmān o Persa, companheiro do Profeta), para a segunda versão28. Estas concordâncias, contudo, não são mais que aparentes, haja vista

que uma análise dos relatos de Wagadu mostra que estes últimos não têm pre- tensão histórica alguma; o alcance destes relatos é outro, especialmente religioso e social. Neste sentido, eles não acompanham as elaborações sistemáticas que engloba a tese da origem sírio -palestina dos fundadores de Gana.

Atual e aparentemente, atestado está que o povoamento neolítico do Saara foi amplamente dominado por negros, cujos vestígios são identificáveis até o Adrār. Posteriormente ao ressecamento climático, o povoamento branco (os líbio -berberes) avançou rumo ao Sul, chocando -se todavia com a organização dos camponeses negros, como aqueles do Dhār Tshīt, ancestrais dos soninquês de Gana. Os sítios defensivos do Dhār Tshīt traduzem bem esta organização dos negros para resistirem às pressões dos nômades líbio -berberes. Nestas condições, é provável que as bases de um Estado organizado como aquele de Gana, descrito pelas fontes árabes, remontem à época do primeiro milênio da era cristã, assim como não é impossível que a fase de Chebka, entre -1000 e -900, constitua uma hipótese digna de crédito, como foi sugerido por A. Bathily, após uma interpre- tação dos trabalhos de P. Munson29.

As hipóteses sobre o remotíssimo povoamento de Gana e sobre o seu habitat inicial no Saara neolítico, em uma zona mais setentrional que aquela do atual país, não são arbitrárias: elas aparentam baseadas na permanente existência de elementos “residuais”, desde o período árabe até os nossos dias; ao menos é o que observamos no tocante ao papel atribuído pelos geógrafos árabes aos gangara -wangara, aos bafūr, e sobretudo no referente à presença atual dos negros harātīn, dispersos no Saara.

Mesmo estudando os textos árabes e as tradições orais, vemos que os Negros chegavam, na época histórica, muito mais ao Norte que atualmente. Eles domi- navam o Tāgant, o Awkār, o Hōdh (Hawd), o Tīris e o Adrār. Uma análise destes dados permite situar os soninquês no Tāgant e no Hōdh, ao passo que outras partes da atual Mauritânia foram habitadas por ancestrais dos serer e dos fula. Estes dois grupos viveram, outrora, em conjunto, não somente no Sul da Mauritânia, mas, igual e posteriormente, no Fouta Toro30. Enquanto os fula

28 C. MONTEIL, 1953, pp. 370 -373, 389 -396. 29 A. BATHILY, 1975, particularmente pp. 29 -33. 30 Conferir T. DIALLO, 1972.

permaneceram no vale do Senegal, os serer rumaram mais para o Sul, em direção ao seu atual território, no Sine -Saloum.

Frequentemente, insistiu -se em demasia na dicotomia entre os berberes nômades e a população sedentária negra. Conquanto a realidade dos conflitos entre estes dois grupos não possa ser negada, não se pode esquecer que, simul- taneamente, as necessidades de ordem econômica e política conduziram os brancos e os negros a uma simbiose e a uma real cooperação. Eis a razão pela qual não é mais permitido somente interpretar as relações das etnias sahelianas, brancas e negras, em termos de enfrentamentos raciais e religiosos31.

A dispersão dos soninquês, explicada pela pressão dos berberes e, particular- mente por aquela dos almorávidas, aparenta ter causas múltiplas, entre as quais o fator climático desempenhou um papel preponderante. O seu habitat original, o Wagadu da sua lenda, foi situado em uma região dotada de condições climá- ticas precárias, embora bem posicionada do ponto de vista comercial. A lenda de Wagadu ensina -nos que os indivíduos de Wagadu fugiram para o Sul após uma estiagem que durara sete anos. Este desastre climático – que lembra a seca dos anos dos anos 1970 – aparenta ser a primeira razão da dispersão dos sonin- quês; as suas migrações os conduziram por toda a parte no Sudão Ocidental, da Gâmbia até Songhai, porém, um grupo bem mais considerável permaneceu em seu primeiro território, no Awkār e no Hōdh, onde eles fundaram o seu pri- meiro Estado, o antigo Gana. Ainda não é possível estabelecer uma cronologia, sequer aproximativa, destes acontecimentos; entretanto, é mais provável que as migrações dos soninquês tenham ocorrido durante vários séculos.

No documento HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA (páginas 178-183)