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A função social da propriedade e a preservação da empresa

No documento Financiamento das empresas em crise (páginas 30-34)

3 PREMISSAS CONSTITUCIONAIS DO TRATAMENTO DAS

3.1 A função social da propriedade e a preservação da empresa

A empresa possui uma importância social na medida em que proporciona a subsistência das pessoas, produz bens e serviços e arrecada impostos. Além disso, como observa Fábio Konder Comparato,61 a empresa fixa o comportamento de outras instituições e mesmo de grupos sociais que viviam fora do seu alcance: escolas, universidades, hospitais, associações artísticas e clubes desportivos foram tomados por valores como o utilitarismo, a eficiência técnica, a inovação permanente e a economicidade dos meios. Alfredo Lamy Filho e José Luiz Bulhões Pedreira62 jádefendiam que a falência de uma grande empresa repercute não apenas sobre os sócios e credores, mas sobre os empregados e suas famílias, a comunidade em que vivem, os investidores, fornecedores e a própria economia do país, destacando a tendência de exclusão dessas empresas da falência.

Discorrendo no contexto do art. 160 da Constituição Federal de 1967, emendada em 1969, Fábio Konder Comparato63 lecionava que a utilização da propriedade voltada ao atendimento de sua função social não seria propriamente meio para atingir o objetivo superior de assegurar a existência digna, mas forma parcial pela qual se concretiza esse objetivo. Tal norma não se caracterizaria como simples regra de organização, mas como norma de conduta, cujo destinatário não é apenas o Estado, mas especialmente as

60 “Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por

fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...] III - função social da propriedade;”

61 A reforma da empresa. In: ______. Direito empresarial: estudos e pareceres. São Paulo: Saraiva, 1990, p.

3.

62 A lei das S.A. (pressupostos, elaboração, aplicação). Rio de Janeiro: Renovar, 1992, p. 187. 63 A reforma..., p. 6.

empresas, na condição de principais agentes econômicos. Isso porque se trataria norma dotada de “bilateralidade política” e não simples conselho político ou “expectativa constitucional”.64

A função social, quando analisada sob o prisma da utilização dos meios de produção, constitui um poder-dever de organizar, explorar e dispor, conforme os ditames da justiça econômica e social, objetivos esses realizados mediante atuação harmônica dos interesses eventualmente conflitantes.65

Newton De Lucca66 assevera que conceber uma função social

implica assumir a plenitude da chamada responsabilidade social, vale dizer, a consciência de que tonos nós temos, em maior ou menor grau – como cidadãos, em geral, ou como empresários, em particular –, o indeclinável dever ético de pôr em prática as políticas sociais tendentes a melhorar as condições e a qualidade de vida de todos os nossos semelhantes.

Para Fábio Konder Comparato,67 “função” significa um poder de dar ao objeto da propriedade uma destinação determinada, vinculando-o a certo objetivo, que no caso corresponde ao interesse coletivo. Trata-se de um poder-dever, cujo exercício pode ocorrer harmonicamente com o interesse individual do proprietário. Dessa forma, o jurista enxerga a função social da propriedade dos bens de produção como um poder-dever positivo, exercido no interesse da coletividade,68 em conformidade com outros valores legitimados pela ordem jurídica. Assim, a função social da empresa não é limitadora dos poderes do empresário, mas promove interesses juridicamente relevantes, conforme os valores constitucionalmente previstos, pelo que a propriedade empresária é utilizada em função de sua destinação econômica e social.69 Todavia, parte da doutrina70 pontifica que o texto constitucional é aberto, pois embora consagre a livre iniciativa, condicionando-a à

64 Cf. COMPARATO, Fábio Konder. A reforma..., p. 7.

65 Cf. FRANCO, Vera Helena de Mello. A função social da empresa. Revista do Advogado, São Paulo, ano

XXVIII, n. 98, set. 2008, p. 133.

66 Da Ética Geral à Ética Empresarial. São Paulo: Quartier Latin, 2009, p. 328-329.

67 Função social da propriedade dos bens de produção. In: ______. Direito empresarial: estudos e pareceres,

São Paulo: Saraiva, 1990, p. 32.

68 Função social..., p. 37. O jurista criticava a antiga lei falimentar brasileira apontando a pobreza na

distinção quanto à qualidade ou importância social das empresas insolváveis. Para Comparato, a insolvabilidade das empresas de interesse social deveria ser tratada com o objetivo de reerguimento econômico e financeiro, enquanto a insolvabilidade das empresas de interesse meramente particular seria tratada como questão meramente creditória (A reforma..., p. 15).

69 Cf. MENEZES, Mauricio Moreira Mendonça de. Função... 70 Cf. FRANCO, Vera Helena de Mello. A função..., p. 133-134.

realização dos princípios da justiça social, não forneceria parâmetros seguros para a compreensão dos limites de colisão entre a função social e a propriedade privada.

Alguns autores71 sustentam que, modernamente, a função social da empresa está fundada no conceito de eficiência econômica, devendo ela gerar lucros para se preservar no mercado, manter empregos e satisfazer seus credores, garantindo o bom funcionamento da economia. Mesmo assim, a eficiência econômica é mitigada pelo princípio da preservação da empresa, embora ambos se complementem e não se excluam.72 Desse modo, é possível notar que do interesse social na utilização dos meios de produção deriva o princípio da preservação da empresa.

Em verdade, preservar uma empresa em crise compreende objetivos que estão além da maximização do retorno aos seus credores. Há diversos interesses que gravitam ao redor dela e que devem ser considerados: a empresa serve, ao mesmo tempo, aos interesses do empresário e sócios em geral, como fonte de lucros sobre o dinheiro nela investido; aos credores, como garantia de venda de seus produtos e, por consequência, também ao lucro; e à sociedade, na medida em que gera empregos e tributos, além de produzir e distribuir bens e serviços, exercendo assim sua função social, que proporciona em sentido lato a própria tutela da dignidade da pessoa humana.73 Trata-se, portanto, do viés institucionalista adotado pelo legislador, sintetizado na ideia de preservação da empresa.74

Portanto, a empresa deve ser preservada sempre que se mostre economicamente viável, de acordo com elementos contidos no plano de recuperação apresentado e outros apresentados durante a recuperação judicial, devendo ser sopesados o valor da empresa em funcionamento (going concern value) e aquele obtido na eventual liquidação de seus bens, tarefa deveras complicada. Mesmo neste caso, a função social é realizada ao se favorecer a alienação ordenada dos ativos da empresa falida, incentivando seu aproveitamento produtivo por outro empresário.

71 Cf. ALMEIDA, Gustavo Milaré. Anotações sobre o princípio da função social da empresa na doutrina e na

jurisprudência brasileira. Revista de Direito Mercantil - Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo, n. 153/154, jan./jul. 2010, p. 246-247.

72 Cf. PERIN JUNIOR, Ecio. A dimensão..., p. 170.

73 Cf. PERIN JUNIOR, Ecio. A dimensão..., p. 168-169. Durante a elaboração da lei de falências norte-

americana, foi dito que “[t]he purpose of a business reorganization case, unlike a liquidation case, is to

restructure a business's finances so that it may continue to operate, provide its employees with jobs, pay its creditors and provide a return for its stockholders.” (Cf. MCCORMACK, Gerard. Corporate..., p.

400). Tradução nossa: “[a] finalidade de um processo de recuperação de empresas, diferentemente de um processo de liquidação, é reestruturar as financias da empresa de modo que ela continue a operar, oferecer postos de trabalho, pagar seus credores e garantir um retorno aos acionistas.”

74 Cf. SALOMÃOFILHO, Calixto. In: SOUZAJUNIOR,Francisco Satiro de; PITOMBO,Antônio Sérgio A.

de Moraes (coord.). Comentários à Lei de recuperação de empresas e falências: Lei 11.101/2005 – Artigo por artigo. 2. ed. São Paulo: RT, 2007, p. 50.

Nesse sentido, o art. 47 da LRE contempla os objetivos, mediatos e imediatos, da recuperação judicial, principal inovação trazida na reforma do sistema falimentar brasileiro. Imediatamente, procura a lei, por meio da recuperação judicial, “viabilizar a superação da crise econômico-financeira do devedor”, pressuposto para o atingimento de seus objetivos mediatos. Estes, por sua vez, são concebidos no médio prazo, e compreendem a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.75

O princípio da preservação da empresa aplica-se de maneira especial aos pequenos negócios, não só pela representatividade em termos absolutos dessas empresas no Brasil e pela quantidade de empregos que geram,76 mas também por questões de conveniência e de ordem concorrencial.77

É importante destacar que a função social propriedade, estritamente ligada ao princípio da preservação da empresa, não pode ser o único fundamento para a recuperação, mas deve apenas nortear o sistema, pois é imprescindível que a empresa seja capaz de gerar riquezas e sobreviver. Do contrário, sua manutenção em atividade violará a própria função social da propriedade empresária.78 Algumas tentativas no sentido de salvar determinadas empresas a qualquer preço, mesmo aquelas ineficientes e obsoletas, podem

75 Cf. TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de. Recuperação judicial, a principal inovação da Lei de

Recuperação de Empresas – LRE. Revista do Advogado, São Paulo, ano XXV, n. 83, set. 2005, p. 102- 103.

76 Em 2010, as microempresas (MEs) e empresas de pequeno porte (EPPs) representavam 99% das empresas

brasileiras, 51,6% dos empregos formais privados não agrícolas e quase 40% da massa de salários. Entre 2000 e 2010, em média, de cada R$ 100 pagos aos trabalhadores no setor privado não agrícola, aproximadamente R$ 41 foram gerados pelas empresas menores (cf. SEBRAE - Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Org.). Anuário do trabalho na micro e pequena empresa: 2010-

2011. Elaboração da pesquisa, dos textos, tabelas e gráficos: Departamento Intersindical de Estatística e

Estudos Socioeconômicos, 4. ed. Brasília: DIEESE, 2011, p. 21. Disponível em: <http://www.biblioteca.sebrae.com.br/bds/bds.nsf/25BA39988A7410D78325795D003E8172/$File/NT000 47276.pdf>. Acesso em: 25 jan. 2012).

77 Nos Estados Unidos, a preservação das empresas de menor porte tem como plano de fundo a preservação

do chamado American Way of Life: “[s]aving jobs in small business enterprises, which are disappearing

with alarming frequency, may be essential to the preservation of the American way of life. Competition and convenience disappear without them. We know this from common experience in the retail industry. When the small, local business disappears, consumers are left largely with the regional megastores. Less competition usually results in higher prices and poorer service.” (cf. HAINES,JR., James B.; HENDEL, Philip J. No Easy Answers: Small Business Bankruptcy After BAPCPA. 47 B.C.L. Rev., Dec. 2005, p. 92). Tradução nossa: “[s]alvar empregos em pequenas e médias empresas, que estão desaparecendo com frequência alarmante, pode ser essencial para a preservação do American way of life. Concorrência e comodidade desaparecem sem elas. Sabemos disso pela experiência comum na indústria de varejo. Quando a pequena empresa local desaparece, os consumidores são deixados em boa parte com as grandes lojas regionais. Menos concorrência geralmente resulta em preços mais altos e serviços piores.”

78 Cf. GUIMARÃES,Márcio. In: CORRÊA-LIMA, Osmar Brina; LIMA, Sérgio Mourão Corrêa (coords.). Comentários à nova lei de falência e recuperação de empresas: Lei nº 11.101, de 09 de fevereiro de

gerar custos sociais ainda maiores e desproporcionais em relação aos benefícios sociais alcançados.79

Visto que a LRE abraçou o princípio da preservação da empresa, explicaremos como ocorreu essa mudança de paradigma em relação ao revogado Decreto-lei n. 7.661/45, que regia os procedimentos da concordata e da antiga falência até os atuais mecanismos legais de solução da crise empresarial. Mas antes, cumpre debater os objetivos que a lei falimentar em sentido lato deve perseguir, pois eles são outra premissa básica ao desenvolvimento de um mercado de financiamento das empresas em crise.

No documento Financiamento das empresas em crise (páginas 30-34)