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O financiamento entre empresas do mesmo grupo e a insolvência

No documento Financiamento das empresas em crise (páginas 97-101)

6 O FINANCIAMENTO DAS EMPRESAS EM CRISE:

6.3 Os fornecedores de crédito

6.3.3 O financiamento entre empresas do mesmo grupo e a insolvência

349 Bankruptcy..., p. 471-472.

350 Cf. ROE, Mark J.; SKEEL, JR., David A. Assessing the Chrysler Bankruptcy. Michigan Law Review, v.

108, Mar. 2010, p. 733.

351 Não é a primeira vez que a Chrysler recebe auxilio estatal para superar problemas financeiros. No fim da

década de 1970, após pressões políticas de credores, trabalhadores e fornecedores, pautadas por diversos comícios e campanhas, o Congresso norte-americano aprovou a concessão de garantia governamental a empréstimos para que a empresa pudesse reestruturar suas dívidas. Em parte, o Congresso se apoiou no fato de que a crise havia se instalado num período de transição entre o antigo e o novo diploma falimentar daquele país, de 1978, o qual ainda não havia sido testado. Nem por isso a medida restou incólume a críticas (cf. WARREN, Elizabeth. Bankruptcy Policymaking..., p. 365-367).

Neste ponto, o primeiro problema que se coloca é saber em que medida ativos de um grupo de empresas localizados em determinado país podem servir de garantia em financiamentos concedidos a empresa do mesmo grupo localizada em outro país e que esteja em recuperação judicial. Essa alternativa pode impulsionar a obtenção de novos créditos, mas levanta uma série de questões, como a prioridade que deve ser dada ao credor.

Alguns grupos criam SPEs para melhor gerenciar o risco na aquisição e financiamento de ativos específicos. Em outros casos, as empresas de um mesmo grupo se financiam mutuamente, utilizando como garantias recebíveis de curto prazo cedidos de uma empresa à outra.

Para viabilizar o financiamento internacional intragrupo, é necessária uma estratégia integrada entre os múltiplos juízos atuantes no caso concreto. Entretanto, pode acontecer que os ordenamentos envolvidos deem graus de prioridade e tratamentos distintos ao financiamento de empresas em crise. Essa limitação pode ser mitigada com a outorga de garantias cruzadas entre as empresas, de modo que cada empresa do grupo garanta as obrigações das demais. Com tal estratégia, o credor pode focar sua análise na posição consolidada das empresas, ao invés de analisar as demonstrações de cada uma delas e suas subsidiárias.352

Além da questão transfronteiriça, vale notar que, caso o financiamento ou suas garantias sejam concedidos por uma empresa do mesmo grupo que não esteja em recuperação judicial, a empresa solvente pode ter interesse na estabilidade financeira de sua coligada, de outras empresas do grupo ou do grupo como um todo, para garantir sua própria estabilidade financeira e a continuação de seus negócios, especialmente se eles estiverem altamente integrados com as atividades das empresas em recuperação, o que é comum nos casos de verticalização da produção.353

Operações dessa natureza levantam outras questões, como o possível tratamento especial por terem ocorrido entre partes relacionadas e a revogação ou ineficácia perante os credores da empresa financiadora ou garantidora, caso seja decretada sua quebra. Muitos dos problemas surgidos no financiamento entre empresas do mesmo grupo poderiam ser solucionados no âmbito do plano de recuperação, com a participação e aprovação dos

352 Cf. SARRA, Janis. Financing..., p. 590.

353 Cf. UNCITRAL. Working Group V (Insolvency Law). UNCITRAL Legislative Guide on Insolvency Law: Part Three: Treatment of enterprise groups in insolvency. Thirty-eighth session,

A/CN.9/WG.V/WP.92, New York: 19-23 Apr. 2010, p. 32. Disponível em: <http://www.uncitral.org/uncitral/en/commission/working_groups/5Insolvency.html>. Acesso em: 20 dez. 2011.

demais credores. Entretanto, a necessidade de novos recursos é, via de regra, premente, e não pode aguardar pela aprovação do plano.354

Já o financiamento concedido ou as garantias outorgadas por outra empresa do mesmo grupo que também está em recuperação judicial, além de não se coadunar com o estado de crise das empresas, têm que passar, no Brasil, pelo crivo do administrador judicial e do comitê de credores, pois, além de serem empresas do mesmo grupo, há um potencial prejuízo às operações e aos demais credores, podendo ensejar inclusive o afastamento dos administradores da empresa.355 Contudo, pode haver hipóteses, embora remotas, nas quais essas operações seriam não apenas possíveis, mas desejáveis, especialmente quando os interesses do grupo são tomados em conjunto. Nesses casos, deve-se avaliar em que medida as operações beneficiam a continuidade dos negócios e, em última análise, favorecem os credores de ambas as empresas. Ainda, eventual sacrifício de uma das empresas em prol da outra deve ser sopesado tendo em conta o resultado global para todas elas, considerando-se uma justa distribuição entre eventuais prejuízos de curto prazo e ganhos no longo prazo.356

Num caso ou noutro, o interesse do financiador do mesmo grupo deve visar muito mais o resultado da recuperação para o grupo e para os demais interessados do que os ganhos de curto prazo, especialmente quando as atividades do grupo são altamente integradas.357 De todo modo, é importante considerar também a disponibilidade ou não de alternativas de financiamento, se os credores foram devidamente cientificados e qual o impacto da operação para eles, os valores emprestados, o grau de confiança nos

354 Cf. UNCITRAL. Working Group V (Insolvency Law). UNCITRAL..., p. 33. 355 Art. 64, inciso III, alíneas “a” e “c”, LRE.

356 Cf. UNCITRAL. Working Group V (Insolvency Law). UNCITRAL..., p. 34.

357 Cf. UNCITRAL. Working Group V (Insolvency Law). UNCITRAL..., p. 36. Janis Sarra traz um exemplo

de financiamento de empresas do mesmo grupo ocorrido no caso In re InterTAN Canada Ltd., processo no qual o Tribunal Superior de Ontário aprovou um DIP financing cujos termos exigiam que o devedor outorgasse garantias à sua matriz norte-americana em recuperação sob o Chapter 11. O Tribunal manifestou sua preocupação com a comunicação aos credores acerca do uso de ativos do devedor para que uma empresa do grupo obtivesse financiamento e notou que, se o devedor requer tamanho auxílio logo no início do processo, com pouca ou nenhuma comunicação, deve comprovar os motivos para tal pedido. Ausente a demonstração desses motivos, não haveria expectativas de que o pedido pudesse ser deferido. Contudo, o financiamento foi aprovado, com o fundamento de que o potencial de valorização das operações em funcionamento era preferível à liquidação da empresa, não obstante a transferência de ativos do devedor a outras empresas do grupo. Além da perspectiva de continuidade dos negócios, o juiz levou em conta a manutenção de mais de três mil empregos, os benefícios que a preservação das atividades traria a terceiros interessados, o fato de que alguns credores não seriam afetados pelos procedimentos da lei concursal e a criação de uma garantia aos credores quirografários que lhes concedeu algum grau de proteção (Financing..., p. 591-592).

administradores do devedor e a perspectiva de recuperação proporcionada pelo novo crédito.358

Para a UNCITRAL,359 quando várias empresas do mesmo grupo estiverem em recuperação judicial, as legislações concursais deveriam permitir o financiamento entre elas, bem como a outorga de garantias reais ou pessoais no financiamento concedido a outra empresa do grupo por terceiros. No entanto, essas operações deveriam ser autorizadas somente quando o administrador judicial da empresa financiadora ou garantidora entender que elas são necessárias para a continuidade do negócio ou para a preservação ou aumento do valor dos ativos da empresa financiadora e que quaisquer prejuízos dos credores desta empresa, advindos da respectiva operação, sejam compensados pelo benefício a ser obtido com o financiamento. O estudo da UNCITRAL conclui que a lei também pode exigir a autorização do juiz e o prévio consentimento dos credores para que a operação seja realizada, bem como que seja determinado o grau de prioridade do novo crédito.

A lei brasileira impõe alguns óbices aparentes para o financiamento entre empresas de um mesmo grupo, estejam elas em recuperação judicial ou não. Conforme já tratamos,360 na falência, a depender do entendimento seguido, os créditos dos sócios do falido podem ser indistintamente classificados como subordinados e não há direito de voto em eventuais assembleias de credores. Por outro lado, o art. 67 confere extraconcursalidade às obrigações contraídas pelo devedor durante a recuperação judicial, sem expressar qualquer distinção entre a natureza dessas obrigações ou a pessoa dos novos credores.361 Temos que a solução a essa aparente antinomia está novamente na distinção entre a natureza dos créditos dos sócios do falido, de maneira que somente devem ser tratados como subordinados, na falência, os assim previstos em lei ou contrato ou aqueles decorrentes do exercício, pelo sócio, de cargo na administração.362 Portanto, os créditos concedidos por uma empresa a outra da qual seja sócia devem ser classificados como extraconcursais caso haja convolação em falência, sem prejuízo de eventual verificação quanto à origem e legalidade desses créditos, a ser apurada pelo administrador judicial ou denunciada por qualquer dos credores, pelo comitê ou pelo próprio devedor.

358 Cf. SARRA, Janis. Financing..., p. 593.

359 UNCITRAL. Working Group V (Insolvency Law). UNCITRAL..., p. 37-38. 360 Ver 6.1.1 (nota).

361 Vale ressaltar o escólio de Fábio Ulhoa Coelho, para quem somente os créditos provenientes de negócios

jurídicos surgidos durante a processo gozam da extraconcursalidade prevista na LRE, pois eles colaboraram com a recuperação (Comentários..., p. 261).

De outra forma, se o financiador for sociedade coligada, controladora ou controlada da recuperanda, não terá direito de voto nas assembleias de credores havidas na eventual falência, conforme diz a LRE.363 Uma leitura mais cuidadosa do dispositivo necessariamente remete mais uma vez à distinção entre as relações jurídicas das quais derivam os financiamentos, as quais possuem naturezas distintas da mera participação, direta ou indireta, no capital social da recuperanda, sobre a qual incidiria a restrição em apreço. Por isso, em que pese entendimento em sentido contrário,364 defendemos que o financiador de empresas em crise que se enquadre em alguma dessas situações pode votar nas assembleias de credores realizadas na falência, desde que não tenha interferido na elaboração do plano de recuperação judicial. Ademais, não nos parece haver dúvidas de que alguns desses credores serão necessariamente tratados como extraconcursais, pois a classificação como subordinado somente se aplicaria, em tese, aos créditos de sócios,365 excluídos assim os casos de sociedades controladas ou coligadas, que não serão sócias da empresa falida. Valem também as considerações sobre o art. 83 feitas em 6.1.1 retro.

No documento Financiamento das empresas em crise (páginas 97-101)