• Nenhum resultado encontrado

O financiamento público das empresas em crise

No documento Financiamento das empresas em crise (páginas 92-97)

6 O FINANCIAMENTO DAS EMPRESAS EM CRISE:

6.3 Os fornecedores de crédito

6.3.2 O financiamento público das empresas em crise

Jorge Lobo,332 com arrimo em Gerardo Santini e Angel José Rojo Fernandez-Rio, aduz que, na antiga Alemanha Ocidental, Holanda e Inglaterra, até 1971, instituições públicas concediam linhas de crédito de médio e longo prazos para empresas em crise, visando sua recuperação. Outra forma de participação do Estado na recuperação de empresas com dificuldades, mencionada pelo jurista, diz respeito à concessão de garantias a bancos privados para que estes financiem tais empresas, com a formação de um consórcio entre esses bancos e o governo.

Inspirado nessas experiências, o Professor Jorge Lobo333 elaborou anteprojeto de Lei de Reorganização de Empresas, ainda durante a tramitação do Projeto de Lei n. 4.376/93 – que resultou na atual LRE –, no qual previu como meio de recuperação, entre

330 Cf. CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei das Sociedades Anônimas. 5. ed. São Paulo: Saraiva,

2007. 1 v., p. 247.

331 No caso dos fundos private equity, o investimento costuma ser atrelado à constituição de um fundo de

reserva, formado com a retenção de parte dos lucros para o futuro pagamento do resgate das ações. Diante disso, há entendimento no sentido de que, se a verificação de lucro for condição para o resgate, caso não exista lucro, a ação não deveria ser classificada como dívida, conforme defendido por Eliseu Martins em matéria publicada no jornal Valor Econômico em 18 de outubro de 2011 (PINHEIRO, Vinícius. Private equity vira credor de empresas. Valor Econômico, São Paulo, 18 out. 2011. Disponível em: <www.valor.com.br>. Acesso em: 31 jan. 2012).

332 Direito da Crise Econômica da Empresa. Revista de Direito Mercantil - Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo, v. 109, jan./mar. 1998, p. 71.

333 Direito da Crise..., p. 72-73. O Professor assevera que o socorro estatal a empresas com dificuldades não

é novidade no Brasil, citando como exemplos os aportes de recursos na Embraer que permitiram sua restruturação e privatização em 1994, além da experiências bancárias com o PROES e o PROER.

outros, “[n]ovos empréstimos e financiamentos e manutenção dos fornecimentos, mediante concessão de privilégios especiais”, além de

[b]enefícios fiscais e creditícios, oriundos da União Federal, Estados e Municípios, e empréstimos e financiamentos especiais a médio e longo prazos, oriundos de sociedades de economia mista ou empresas públicas, já existentes ou especialmente criadas por lei para esse fim, mediante garantia real de quotas ou ações que compõem o capital social e, se necessário, garantia fidejussória e real de outros bens dos sócios majoritários ou acionistas controladores ou de terceiros.

Embora o rol de meios de recuperação do art. 50 da LRE seja meramente exemplificativo, a expressa previsão da participação estatal entre eles justificaria uma intervenção mais eficiente e legítima do Poder Público no soerguimento de empresas em crise.

A lei brasileira, ao contrário, cria fortes entraves para que a recuperanda obtenha crédito estatal, ao não dispensá-la da apresentação de certidões negativas para contratação com o Poder Público ou para recebimento de benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, como fez em relação ao exercício das atividades da empresa em geral.334 No afã de salvaguardar os créditos fiscais, o legislador praticamente sepultou qualquer possibilidade de participação do Estado no financiamento das empresas em recuperação judicial, que, via de regra, não possuem as indigitadas certidões. E, para agravar esse cenário, não há, até o momento, lei que regule o parcelamento especial dos créditos tributários contra empresas em crise,335 o que permitiria a obtenção das certidões positivas com efeito de negativas, disciplinadas no art. 206 do Código Tributário Nacional. Disso se conclui que a participação estatal no financiamento de empresas combalidas, caso exista, será exceção à regra.336

334 Art. 52, inciso II, LRE. Cumpre notar também que o art. 31, inciso II, da Lei n. 8.666/93 determina que a

qualificação econômico-financeira dos participantes de licitações seja comprovada mediante apresentação de certidões negativas de falência e concordata (leia-se recuperação judicial).

335 Cumpre salientar que, em 27 de junho de 2012, o Conselho Nacional de Política Fazendária – CONFAZ

publicou o Convênio ICMS n. 59, ratificado em 16 de julho de 2012, por meio do qual os estados e o Distrito Federal ficam autorizados a conceder parcelamento de débitos de empresas em recuperação judicial, até o limite de oitenta e quatro meses. Não há previsão para concessão de deságios ou remissão de multas e juros, tornando o programa pouco eficiente para a recuperanda.

336 Acerca do tema, anote-se passagem de decisão monocrática proferida pelo Min. Ari Pargendler,

relacionada a pedido de liberação de créditos de exportação financiada pela União com recursos do PROEX: “[a] Lei nº 11.101, de 2005, não contempla entre os meios de recuperação judicial a utilização incondicionada de incentivos ou benefícios creditícios. Pelo contrário, o art. 52, II, dispensa a empresa sujeita à recuperação judicial de apresentar certidões negativas para o exercício de sua atividade, ‘exceto para contratação com o Poder Público ou para recebimento de benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios’. [...] Nem se diga, como fez a decisão impugnada, que o disposto no art. 52, II da Lei nº

Rachel Sztajn337 sustenta que a exigência de certidões negativas para a concessão de benefícios ou incentivos fiscais e creditícios oriundos do Poder Público atende ao princípio da moralidade da administração pública e se justifica pela alta relação custo- benefício entre o uso de recursos públicos e o bem-estar gerado por tais benefícios ou incentivos. Considerando o risco de quebra da empresa em recuperação judicial, não haveria, segundo a Professora, vantagens à comunidade proporcionais à livre destinação desses recursos para salvar tais entidades, o que abriria espaço a oportunismos e custos sociais indesejáveis.

Os obstáculos existentes à participação estatal no financiamento de empresas em recuperação judicial corroboram a assertiva proposta por Vera Helena de Mello Franco,338 segundo a qual o Estado, por meio de incentivos, subvenções e estímulos, deveria contribuir, ao lado dos particulares, para que a empresa realizasse sua função social. Em verdade, da forma como a LRE se configura, transfere-se o custo social da recuperação da empresa aos credores.

Vale lembrar, ainda, que o art. 26 da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar n. 101/2000) prevê que a destinação de recursos públicos ao setor privado visando, direta ou indiretamente, cobrir necessidades de pessoas físicas ou déficits de pessoas jurídicas, deverá atender a três requisitos, a saber: (a) autorização por lei específica, (b) observância das condições estabelecidas na lei de diretrizes orçamentárias; e (c) previsão no orçamento anual ou em seus créditos adicionais. O dispositivo abrange a concessão de empréstimos, financiamentos e refinanciamentos, subvenções e participação no capital social de empresas, aplicando-se a toda administração indireta, excetuados as instituições financeiras e o BACEN no exercício de suas atribuições precípuas.

A despeito disso, alguns argumentos podem ser ventilados em favor da participação do Estado no financiamento de empresas em crise. O primeiro deles é o suprimento da carência dessa espécie de financiamento, especialmente em épocas de contração econômica, colaborando para o salvamento de importantes entidades e empregos. Além disso, o Estado pode beneficiar os contribuintes ao auferir receita extra com a cobrança de

11.101, de 2005, está vinculado à ‘exigência, para o deferimento da recuperação judicial, das certidões negativas de débitos tributários (art. 57) que, em atenção à própria finalidade da recuperação judicial e ao fato notório de ser o inadimplemento das obrigações tributárias a primeira consequência da crise econômico-financeira enfrentada pela devedora, vem sendo dispensada pela Câmara Reservada à Falência e Recuperação’ (fl. 126). Uma coisa é facilitar a recuperação judicial; outra coisa é obrigar o credor a financiar o devedor.” (STJ. SLS 1.301/SP. Relator: Min. Presidente Ari Pargendler. j. 26 out. 2010. DJe 28 out. 2010).

337 In: SOUZAJUNIOR..., p. 259. 338 A função..., p. 135.

tarifas e taxas de juros, a depender do montante emprestado. Contudo, esta vantagem pressupõe a existência de um panorama de relativa segurança para investimentos dessa natureza.339

O auxílio por parte do Estado poderia acontecer de maneira indireta, mediante incentivos a credores dispostos a financiar empresas em crise, ou pela prestação de assistência direta ao devedor na obtenção de novos créditos junto a terceiros.340

Ressalte-se que a participação do Estado nesse mercado poderia ser contestada diante do custo gerado ao contribuinte, o qual estaria à mercê de empresas sabidamente em crise, a despeito do baixo risco que o financiamento eventualmente possa apresentar diante dos mecanismos legais e contratuais existentes.

Outra dificuldade reside na escolha das empresas que farão jus ao financiamento, decisão essa que pode ser tomada sob a influência de movimentos lobistas custeados pelas próprias empresas em crise, o que agrava ainda mais sua situação.341 Ademais, o ingresso de vultosos recursos estatais na economia poderia, para alguns,342 conduzir a um rápido aumento da inflação, afetando por conseguinte o próprio mercado de financiamento de empresas em crise.

Algumas vozes defendem que, quando o Estado entender pela relevância social da empresa em crise e lhe conceder novos créditos, as condições negociadas devem ser parelhas às praticadas pelo mercado e o tratamento legal deve ser uniforme para governo e financiadores privados.343

339 Cf. MARTIN, Jarrod B. et al. Freefalling..., p. 1219.

340 Na China, conforme noticia Yongqing Ren, há recentes experiências nesse sentido, em que o governo

forneceu grande auxílio à recuperação de cinco subsidiárias de uma empresa estrangeira, localizadas na cidade de Changshu, cujo processo de recuperação tinha como administrador judicial a firma de advocacia Jiangsu Zhuhui. O governo chinês contribuiu para a recuperação ajudando o devedor a obter novos financiamentos para pagar salários dos trabalhadores e evitar que os credores promovessem corridas pelos seus ativos. (The "Control Model" in Chinese Bankruptcy Reorganization Law and Practice. 85 Am. Bankr. L.J., 2011, p. 188).

341 Cf. MARTIN, Jarrod B. et al. Freefalling..., p. 1220-1221. 342 Cf. MARTIN, Jarrod B. et al. Freefalling..., p. 1225-1226.

343 Yongqing Ren esclarece: “[w]here a corporation has entered into the reorganization proceeding and the government considers that it should be reorganized because it is economically efficient or that keeping it alive has special value to the public, the government may participate in the reorganization as a new financier and become the new creditor or new shareholder of the reorganized debtor. In these circumstances, bankruptcy law should be applied equally to the government's participation. For instance, the new financing provided by the government should go through the same pricing procedure as that provided by a market party. Where rehabilitation is economically efficient, the government may participate as a market financier and may make a profit from its investment. Where rehabilitation is economically inefficient, government bears the cost of keeping the corporation alive and protecting the public interest.” (The "Control Model"..., p. 191). Tradução nossa: “[q]uando uma empresa entra em

processo de recuperação e o governo considera que ela deve ser recuperada por ser economicamente eficiente ou porque mantê-la viva tem um valor especial para o público, ele pode participar da reorganização como um novo financiador e se tornar um novo credor ou acionista do devedor recuperado.

De mais a mais, a devida cautela se faz necessária quando o Estado credor encontra-se em posição de preponderância, pois conta com enorme poder de pressão exercido por mecanismos de fixação de preço, de crédito oficial, celebração de novos contratos e benefícios fiscais.344

O socorro financeiro às empresas em crise pode atingir níveis supranacionais. Alan Schwartz345 informa que muitos países europeus recorrem à Direção Geral da Concorrência da Comissão Europeia para a aprovação de subsídios a empresas importantes que atuam em seu território e passam por dificuldades, o que geralmente é aprovado quando o órgão entende que a empresa é ou pode se tornar viável, ao contrário dos Estados Unidos, onde o mercado de crédito é quem decide, via de regra, pela extensão ou não de liquidez à empresa.

A crise financeira internacional, deflagrada no ano de 2008, trouxe consigo uma inédita intervenção no mercado financeiro pelo Federal Reserve System (FED) e pelo Tesouro dos Estados Unidos, a qual teve início com as operações de salvamento do Bear Stearns no início daquele ano. Estratégias distintas foram adotadas para cada situação, com variados graus de ajuda com recursos dos contribuintes. No caso do Bear Stearns, uma incorporação foi incentivada mediante a aprovação de uma linha de crédito de US$ 30 bilhões ao adquirente, o JP Morgan Chase.346 Já no caso da seguradora AIG, o FED concedeu um substancial empréstimo diretamente à empresa, no valor de US$ 85 bilhões, pelo qual o governo norte-americano se tornou um de seus acionistas.347 Diferentemente, ao Lehman Brothers o FED não concedeu qualquer quantia, acarretando a quebra daquela tradicional instituição financeira e o início da crise econômica e financeira que se seguiu no mundo inteiro.348

Nestas circunstâncias, a lei falimentar deveria ser aplicada à participação do governo nas mesmas condições. Por exemplo, o novo financiamento concedido pelo governo deveria passar pelo mesmo procedimento de precificação oferecido por um agente do mercado. Quando a recuperação for economicamente eficiente, o governo pode participar como um financiador de mercado e lucrar com seus investimentos. Quando a recuperação for economicamente ineficiente, o governo suporta o custo de manter a empresa em atividade e proteger o interesse público.”

344 Cf. COMPARATO, Fábio Konder; SALOMÃO FILHO, Calixto. O Poder de Controle na Sociedade Anônima. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 91.

345 A normative..., p. 1205-1206.

346 Cf. ANDREWS, Edmund L. Fed Acts to Rescue Financial Markets. The New York Times, Washington,

17 Mar. 2008. Disponível em: <http://www.nytimes.com/2008/03/17/business/17fed.html>. Acesso em: 12 dez. 2010.

347 Cf. ANDREWS, Edmund L. Fed rescues AIG with $85 billion loan for 80% stake. The New York Times, Washington, 17 Sept. 2008. Disponível em: <http://www.nytimes.com/2008/09/17/business/worldbusiness/17iht-17insure.16217125.html>. Acesso em: 12 dez. 2010.

Kenneth Ayotte e David A. Skeel, Jr.,349 dissertando sobre tais operações de resgate, acreditam que a falência seria preferível a um tratamento ad hoc para evitá-la, caracterizado pela concessão de empréstimos de salvamento às pressas, pois essa prática aumentaria a incerteza, os custos do moral hazard e desincentivaria os agentes privados a solucionar a crise antes que ela se torne irremediável. Para os autores, essas medidas criaram custos significativos, que vão muito além dos custos ao contribuinte, e não justificaram a política adotada. Ressaltam que a lei norte-americana confere uma série de vantagens às empresas em crise que ajudam a preservar seu valor, aloca direitos de controle aos sócios e exerce um papel mais efetivo ao lidar com o moral hazard do que o dinheiro dos contribuintes exerceu às vésperas da quebra.

O socorro público durante a crise de 2008 não se restringiu apenas a algumas instituições financeiras, mas abrigou também tradicionais empresas da indústria automobilística, como a Chrysler. O Tesouro dos Estados Unidos e o Governo do Canadá, que haviam emprestado US$ 4 bilhões antes do pedido de recuperação, concordaram em conceder mais US$ 5 bilhões para financiar a recuperação e outros US$ 6 bilhões para a empresa sair da recuperação (operação denominada exit financing, sobre a qual trataremos adiante). Na ocasião, a ajuda dos governos norte-americano e canadense foi substancial, mas ocorreu em condições não comerciais e com viés político. Embora tenha durado somente quarenta e dois dias, o processo de recuperação foi, segundo alguns,350 obscuro e não trouxe os principais mecanismos utilizados para legitimá-lo: uma avaliação judicial, uma negociação em condições de mercado (arm’s lenght) com os credores e um genuíno teste de mercado.351

No documento Financiamento das empresas em crise (páginas 92-97)