• Nenhum resultado encontrado

A Geografia como estudo da “variação de áreas” e o critério positivo de

Capítulo 2 – Gritam cá, que reconheço lá: a redescoberta empírico-indutiva do

4.3. As filiações e os princípios teórico-metodológicos legados por Waibel

4.3.1. A Geografia como estudo da “variação de áreas” e o critério positivo de

Antes de considerar as relações entre a obra de Orlando Valverde e a de Richard Hartshorne, importa esclarecer que, em sua produção antecessora do trabalho “A Geografia Agrária como ramo da Geografia Econômica” (1961), publicado na Revista Brasileira de Geografia, o geógrafo ibegeano jamais teceu referência às formulações teóricas do colega norte-americano (VALVERDE, 1961:172). Uma menção mais acurada e extensa acerca de sua definição do objeto de estudo da Geografia somente veio a lume em 1964, com a publicação da obra Geografia Agrária do Brasil (VALVERDE, 1964:21), na qual despontou a centralidade dos subsídios de Hartshorne para as reflexões metodológicas valverdianas relativas a esse campo de estudo.

Não obstante, já em 1948, inúmeros trechos do artigo “Excursão à região colonial antiga do Rio Grande do Sul” atestam sua familiaridade com os princípios metodológicos atinentes à Geografia formulados por esse autor. É de se supor que os aspectos contextuais já mencionados ajudem a explicar o fato. Diante das evidências disponíveis, é possível que Valverde tenha se aprofundado na proposta do autor norte- americano (surgida, inicialmente, em 1939) por dois caminhos complementares: num deles, de início, adquiriu proximidade com ela informalmente, quer pelos diálogos que conduziu com Jorge Zarur, quer por meio das orientações que assimilou de Waibel, ambos mantenedores de contato pessoal com aquele que ficou conhecido como o “Hettner americano”; no outro, quando em 1945 seguiu com outros geógrafos para os Estados Unidos, certo é que, além de ter estudado com Leo Waibel, teve contato direto com Richard Hartshorne (BUSS et alii, 1991:224).

A influência das idéias de Hartshorne não foi diminuta entre os geógrafos brasileiros surgidos nas cercanias geracionais de Orlando Valverde. Isso é corroborado por MONTEIRO (1980:14-15) quando, em seu estudo tornado clássico sobre a história da Geografia brasileira, considera que as formulações do geógrafo norte-americano,

desprezíveis naquele contexto21. Monteiro, rastreador das tendências geográficas que afluíram às comunidades brasileiras de pesquisadores entre 1934 e 1977, fez essa observação correlacionando-a com as mudanças ocorridas em 1948 na Divisão de Geografia do CNG, sobre as quais, aliás, tecemos alguns comentários anteriormente. Assim, cabe apenas complementar, ainda segundo Monteiro, que, na ocasião de comemoração do 11.o aniversário do órgão, Fábio de Macedo Soares Guimarães patenteou a proposta hartshorniana de justapor o sistemático ao regional, num discurso dedicado àquele evento22.

Tomando por base a relevância dessas inspirações concernentes à Geografia brasileira de um modo geral e, mais especificamente, uma vez demarcados os contornos de contato entre a formação geográfica valverdiana e as postulações de Hartshorne e Waibel, o cruzamento desses três itinerários merece ser considerado com mais vagar para que seja possível esclarecer suas repercussões na obra de Valverde. Tal enfoque, aliás, não aparenta ser equivocado, pois, no plano teórico, com efeito, todos eles atestam afinidades em função da valorização que deram ao resgate do pensamento de Alfred Hettner. Na verdade, cada qual assim procedeu de maneira específica, com maior ou menor intensidade e de acordo com intenções diversas que remontam ao caráter ou modalidade de seus trabalhos. As diferenças transparecerão oportunamente na seqüência, porém é importante frisar que não obstruíram uma comunhão de visões a respeito da natureza e do objeto de estudo propriamente geográficos.

Sem perder de vista o que já foi afirmado sobre as novas demandas geográficas surgidas no segundo pós-guerra, conforme aponta MORAES (1983:84) foi somente a partir da definição da Geografia como o estudo da “variação de áreas” (areal differentiation) que a terceira grande corrente do pensamento geográfico dentro da Geografia tradicional23 pôde ser estruturada, valorizando um pouco mais o raciocínio dedutivo e constituindo-se pelo pressuposto de que a singularidade da análise geográfica estaria assegurada por trabalhar com as inter-relações dos elementos, e não com seu isolamento, como nas demais ciências particulares24. Essa seria, ainda segundo MORAES (1983:87), a “última tentativa de agilizar a Geografia Tradicional, mantendo-lhe a essência de busca de um conhecimento unitário, e dando-lhe uma versão mais moderna”. Não saberíamos excluir desse parecer os motivos da insistência valverdiana em certos princípios basilares de sua concepção acerca da especificidade do conhecimento geográfico, tais como o de um saber perquiridor da totalidade, o de

assumir ser a Geografia uma ciência de síntese, e a manutenção da visão espacialista de região.

Mesmo de forma sucinta, vale debruçarmo-nos sobre essas orientações, a fim de aclarar os pontos convergentes e complementares entre as obras de Orlando Valverde, Richard Hartshorne e, como não poderia deixar de ser, Leo Waibel.

Desse modo, tomando como ponto de partida a obra de Hartshorne, Questões sobre a natureza da Geografia (1959), consubstanciadora de um aprimoramento das propostas que haviam sido dispostas naquela exposta em A natureza da Geografia (1939), poderíamos dizer sinteticamente que os principais pontos desenvolvidos na análise do geográfo norte-americano apontaram para algumas direções básicas que nortearam vários trechos argumentativos da obra de Valverde, a partir do estudo sobre a colonização italiana e alemã no Sul do Brasil.

Em primeiro lugar, Hartshorne sublinhou as contradições e as fraquezas das escolas que conferiam muita ênfase à ecologia, tendência que, a seu ver, terminava por sacrificar toda a análise geográfica, restringindo-a ao estudo das relações do vivente com o inanimado. Além disso, ele procurou sistematizar em seu trabalho a concepção de que o foco de interesse da Geografia estava no estudo da “variação de áreas”, ou seja, no mosaico de paisagens distintas da superfície da Terra. Nesse caso, na esteira de seu pensamento, o objetivo do estudo geográfico deveria assentar-se no estabelecimento de uma síntese ou integração de características relevantes na análise da região, com vistas a fornecer uma descrição mais próxima possível da totalidade do lugar, identificável em virtude da combinação particular de suas características. Desse modo, a Geografia seria, em seu entender, uma ciência integradora dedicada à descrição ordenada da superfície da Terra25, com vistas ao estabelecimento de uma Geografia Geral.

Diante do exposto, cabe assinalar duas observações. Em primeiro lugar, essas idéias se desenvolveram no pensamento do geógrafo norte-americano da Escola do Meio-Oeste pela retomada por ele de certa tradição geográfica alemã, que remonta a Hettner e que também serviu de substrato para a visão da disciplina assumida por Leo Waibel26. Além disso, muito embora essas afirmações pareçam indicar que, na concepção hartshorniana, à Geografia é reservado um papel totalizador de interpretação e síntese entre os diversos fenômenos concorrentes na análise dos lugares, é preciso que

se reconheça que tal orientação não é completamente corroborada por ele. Na verdade, conforme o autor tratou de esclarecer, tal projeto não deveria ser postulado como alvo teórico pela disciplina, pois isso não seria completamente realizável. Insistiu o autor na necessidade de se encontrar uma “base racional e consistente a fim de se considerar”, nos estudos de cunho geográfico, “algo menos do que o número total de aspectos variáveis compreendidos no complexo total de um lugar” (HARTSHORNE, 1969:50). A seu ver, tornava-se necessária, assim, uma ponderação acerca dos limites da disciplina, quando considerou que nem todos os aspectos concorrentes à formação do caráter variável de uma área são significativos para uma justa compreensão desta. Conseqüentemente, ele defendia a necessidade do estabelecimento de um “critério positivo de seleção” daquilo que pudesse dar maior relevância ao esforço de síntese da disciplina não somente no estudo das inter-relações fenomênicas presentes numa área como também na comparação entre diversas áreas, sendo que o mesmo critério deveria ser alcançado na prática por meio de uma série de tentativas segundo o método do ensaio e erro27.

De posse desses delineamentos, já é possível demonstrar a forma como a abordagem da variação de áreas e seus desdobramentos por Hartshorne aparece diversas vezes no trabalho de Orlando Valverde. Para tanto, basta observar sua aplicação no artigo “Excursão à região colonial antiga do Rio Grande do Sul” (1948), representativa das demais ocorrências desse recurso de método ao longo de sua produção. Nesse escrito, além de ter se debruçado especificamente sobre o tratamento dos tipos de paisagem, das faixas de paisagem ou, ainda, das zonas, de acordo com sua terminologia, Valverde paralelamente zelou em associar essa orientação metodológica ao movimento argumentativo de seu raciocínio geográfico. Isso ocorreu na descrição, comparação e explicação das paisagens, procedimentos bastante usuais em seu trabalho investigativo colocado em movimento quer pelo cotejo entre as mais diferentes características das distintas áreas excursionadas, quer pela comparação de aspectos internos das regiões que classificou.

A aplicação desse recurso pelo autor é observado em inúmeros trechos do estudo em questão, fato que inviabiliza apresentá-los todos aqui. De qualquer modo, apenas para ilustrar, convém destacar alguns exemplos representativos do emprego pelo autor dessa abordagem, em função da assimilação da preocupação básica de Waibel, dever a variação espacial da vida econômica como objeto de estudo do geógrafo. Nesse sentido,

o trecho a seguir demonstra que os pressupostos hartshornianos foram apropriados ou adaptados no discurso valverdiano:

“Além do elemento pròpriamente fisiográfico – pobreza dos solos – outros fatôres concorreram para essa verdadeira vocação industrial desta zona. Dentre êsses fatôres, um de grande relevância é a mão de obra especializada dos colonos alemães. [...]Também a proximidade e a facilidade de comunicações com Pôrto Alegre vieram favorecer a evolução industrial desta zona.[...]

Mas, na minha opinião, a pobreza dos solos também concorreu muito para que os habitantes da faixa de São Leopoldo a Sapiranga abandonassem a lavoura e se dedicassem à indústria. Porque em outros lugares em que os colonos também eram alemães e as facilidades de comunicações com Pôrto Alegre era semelhantes, tal como em Caí e Dois Irmãos, a fertilidade das terras atraiu os colonos para a agricultura, relegando a indústria para um plano secundário” (VALVERDE, 1948:6-8).

A tônica das ponderações no trecho acima ilustra a preocupação de Valverde em analisar a “vocação” das áreas excursionadas sob o prisma econômico de análise, isto é, expressa parecer compartilhado por Waibel, segundo o qual a Geografia Econômica, ao incorporar a teoria da diferenciação espacial da vida econômica, tinha como horizonte de estudo a descrição e a explicação das variações espaciais. Essa incumbência, para ambos, permitiria definir determinados princípios e regularidades à semelhança de qualquer outra ciência, o que permite aproximá-los de Hartshorne, que expressava preocupação semelhante. Por essa via, ao aderir à compreensão da Geografia como o estudo da variação de áreas, na esteira do contributo de Hartshorne, que não contrariava os ensinamentos de Waibel, Valverde assumiu, por sua vez, uma visão da disciplina que teve em Hettner seu mais importante defensor. Discípulo de Ritter, Hettner definiu a Geografia “como todo o seu histórico desenvolvimento em direção da Länderkunde (Geografia Regional)” ou, em outras palavras, enquanto a ciência dos diferentes espaços da superfície terrestre. Contudo, passo adiante do geógrafo norte-americano, ao seguir as orientações de Waibel, Valverde posicionou-se na linha de sua reformulação da noção de morfologia cultural, substituindo-a pela de formação econômica. Foi sob esse prisma que ambos, mestre e discípulo, atenderam à necessidade de estabelecimento de um critério positivo de seleção preconizada por Hartshorne, elegendo as variáveis econômicas, e não outro critério, em seus trabalhos, a fim de viabilizar aquilo que

inter-relações fenomênicas presentes tanto numa única área como na comparação entre várias. A compreensão desse critério, queremos crer, é o que permite adentrar o âmago argumentativo de ambos ao tratar dos problemas atinentes ao uso da terra, à colonização e ao povoamento.

Outro exemplo ilustrativo de recurso à comparação entre áreas pode ser entrevisto quando Valverde evidenciou sua aplicação consoante ao caráter cumulativo de seus conhecimentos sobre o território nacional. Tendo participado em 1947 da excursão científica ao Planalto Central com Leo Waibel e outros técnicos, em ocasião posterior, quando então elaborou o estudo sobre as áreas de colonização antiga do Rio Grande do Sul, ele remeteu o leitor para as diferenças fisiográficas entre ambas as regiões da seguinte forma:

“Se compararmos êstes campos limpos com os do Planalto Central, há uma particularidade que distingue perfeitamente uns dos outros. No Sul, a vegetação dos campos forma uma cobertura contínua de relva e tem geralmente uma altura de 30 a 50 centímetros. Os campos limpos do Planalto Central são constituídos por tufos de capim, separados entre si por trechos de solo desnudo. Os tufos têm aproximadamente a altura de 50 a 100 centímetros. O próprio aspecto da vegetação sugere que os campos limpos do Sul são mais ricos que os do Planalto Central. Certamente, para isso, a diferença entre o clima do Planalto Central e o do Sul do Brasil tem uma influência decisiva. Neste as chuvas são regularmente distribuídas durante o ano todo e o capim fica sempre verde. No Planalto Central, a estiagem pronunciada que ocorre durante o inverno, deixa as pastagens duras e requeimadas” (VALVERDE, 1948:30).

Não deixa de ser interessante atentar para esta exposição, pois ela permite esclarecer que o recurso à comparação com base no critério da variação de áreas não se restringiu somente à sua aplicação aos aspectos econômicos, tanto neste quanto em outros escritos do autor. A convivência com Waibel não implicou a superação da tradicional divisão dos estudos geográficos da época – parte dedicada aos aspectos físicos e outra aos aspectos humanos e econômicos –, estrutura na qual transparece a adoção do recurso de método defendido por Hartshorne. Porém, quando se trata de fazer a síntese entre os dois trechos apresentados, pela perspectiva histórica da disciplina é plausível afirmar que a adoção do pressuposto da variação de áreas, que remonta a Hettner e foi recolocado na cena dos debates geográficos por Hartshorne, em vez de representar um entrave ao desenvolvimento da Geografia em nosso meio, configurou-se,

antes, como um avanço em relação ao legado geográfico herdado por Valverde e sorvido na linhagem lablacheana28. Esse é um aspecto fundamental para uma compreensão mais circunstanciada da obra do autor. Isso quando se considera que representou, num momento datado da história da disciplina no país e mesmo dos pontos de vista político e institucional, uma necessidade diante das tarefas que se antepunham à primeira geração de geógrafos em âmbito nacional. Considerando que esse pressuposto foi utilizado nos estudos valverdianos, sobretudo para realçar as diferenças entre as áreas mais “modernas” e as “atrasadas” ou “estagnadas” do território, é adequado admitir que ele serviu para subsidiar o Estado com medidas capazes de impulsionar o desenvolvimento econômico e provê-lo de um conhecimento de base científica atinente ao quadro físico do território nacional para a identificação dos limites e possibilidades de exploração de seus recursos. Não saberíamos interpretar os dois trechos anteriormente apresentados fora desse eixo interpretativo, que oferece, ademais, a compreensão sobre a adequação do critério positivo de seleção com o qual Waibel e Valverde revestiram a proposta hartshorniana29.