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Capítulo 2 – Gritam cá, que reconheço lá: a redescoberta empírico-indutiva do

3.3. As delusões mudancistas

O enlace entre esses quadros avaliativos pincelados fornece margens para se compreender não somente a primeira viagem de Waibel ao interior de Goiás como também outras realizadas posteriormente e das quais Orlando Valverde, um dos membros de elite do CNG, viria a participar. Quando este e Fábio de Macedo Soares Guimarães retornaram dos Estados Unidos em 1947, os estudos de Waibel acerca da ocupação do território brasileiro tiveram continuidade, principalmente no que concerne

ao monitoramento do processo de colonização agrícola, uma das políticas de governo do Estado Novo de Getúlio Vargas que não fora abandonada mesmo após o primeiro ano do mandato de Eurico Gaspar Dutra (ALMEIDA, 2000:121). Além disso, foi nesse contexto que Valverde se tornou seu principal assistente e passou a desempenhar um destacado papel enquanto divulgador e tradutor de suas pesquisas no Brasil, num período no qual, ademais, o horizonte cultural disponível à formação geográfica não excluiu contribuições fundamentais de outros estudiosos brasileiros que haviam publicado obras respeitadas, como Caio Prado Júnior e Sérgio Milliet, entre outros19.

De retorno de sua primeira viagem já mencionada, em 1946, Waibel resolvera eleger temas de estudo de Geografia Geral, tais como uso da terra e da vegetação, colonização e povoamento. Embora esse plano de pesquisas já estivesse em andamento quando do regresso de Valverde, o pesquisador estrangeiro foi incumbido de participar na elaboração de um plano de mudança da capital federal, sob a coordenação do general Djalma Polli Coelho, cujo objetivo era o de estabelecer a melhor posição da sede do governo central. Assim, em 1947, ao regressar ao solo pátrio, o treinamento e aprendizado do geógrafo carioca junto a Waibel foram retomados na excursão que realizaram juntos e, para tal fim, ao Planalto Central, cujos trabalhos de campo exigiram, segundo o próprio Valverde, o tempo de execução mais longo de toda a sua vida, isto é, oitenta e um dias. Passando a assessorar, assim como outros técnicos, o desafio proposto a Waibel, Orlando Valverde engajou-se nos estudos sobre a identificação do futuro sítio do novo Distrito Federal, que foram coordenados no IBGE por várias equipes: uma com oito pessoas, sob a orientação do geógrafo alemão, e sete outras, compondo ao todo quarenta e dois integrantes, sob a responsabilidade do geógrafo francês Francis Ruellan (ADAS, 2001) 20.

No que tange às razões que contribuíram para a participação de Orlando Valverde na equipe de Waibel, além do contato prévio e da relação de amizade que ele havia travado com o geógrafo alemão nos Estados Unidos, ao que tudo indica circunstâncias de caráter pessoal também concorreram para o distanciamento que assumiu mais tarde em relação à liderança desfrutada por Ruellan junto a muitos de seus contemporâneos. O próprio Valverde ofereceu um breve comentário a respeito, quando indagado sobre quais teriam sido suas principais influências entre 1942-1950:

“O Ruellan, eu cheguei a ser verdadeiro discípulo dele porque eu já estava formado. Segundo lugar, ele tinha atitudes de utilizar os alunos e não orientá-los, só no começo ele teve, mas eu já estava formado e o Ruellan era um homem de direita ligado a...; ele foi responsável, ele era um homem muito temido pelos diplomatas franceses porque ele era um homem que exercia pressão em favor ao governo do Vichi e ele, inclusive, conseguiu cortar durante os anos da guerra todos os subsídios que a Embaixada Francesa dava a Pierre Monbeig. E o Monbeig pôde pesquisar durante nove anos lá em São Paulo graças à generosidade do pessoal da geografia, basicamente Aroldo de Azevedo. Ele foi cruel” (ADAS, 2001).

E, em outro trecho, ele complementou suas valorações pessoais a respeito de Ruellan:

“Aí existe uma geomorfologia velha; ele não tinha acompanhado, estando aqui no Brasil. Ele chegava ao extremo de tomar cadernetas de campo dos alunos para depois cobrar nas palestras, nas tertúlias geográficas21 e eu nunca admiti que ninguém tomasse um texto meu, e ainda mais que nós éramos pixotes de geografia. Waibel não quis acreditar que ele tomava as cadernetas de campo e, no IBGE, chegaram alguns até ... de roubar os meus diários de excursão, que eram um segundo estágio mais elaborado; roubaram mapas que eu fiz e que foram utilizados para defesa de teses nos Estados Unidos, com textos que eu não aprovaria de forma nenhuma, eu deixei em cima da minha prancheta e roubaram” (ADAS, 2001)22.

De uma parte, cabe notar que os fatos relatados por Valverde não contrariam o que antes se afirmou a respeito de seu emparelhamento ao lado daqueles que se alistaram23 para a feitura de estudos que pudessem reorientar as políticas de ocupação do território nesse lustro. Esse registro básico, mais as expectativas da afluência de novos imigrantes europeus no pós-guerra24 e a oposição que compartilhou com Waibel ao nazifascismo são capazes de explicar o deslocamento definitivo operado nesse momento pelo foco teórico-temático e pelos interesses valorativos valverdianos a favor da Geografia Humana e Econômica, cujos horizontes poderiam ser descortinados por Waibel em detrimento da assepsia ideológica representada pela “geomorfologia velha” praticada por Ruellan que, mesmo correndo-se o risco de superfaturar as palavras de Valverde, acobertava uma postura política avessa à sua.

Quando nada, se essa leitura se mostrar demasiado avantajada, o distanciamento assumido por Valverde à liderança de Ruellan também pode ser tributado a outras circunstâncias peculiares. Nesse sentido, sem fazer oposição às sentenças noticiadas

pelo geógrafo, destacamos não ser possível perder de vista que uma eventual proximidade com o professor e pesquisador francês nesse período não representava para o jovem ibegeano uma condição indispensável para sua inserção quer no “mercado de posições” e de “oportunidades regulado pelos créditos governamentais”, quer para a expansão do prestígio de sua formação científica que pudesse vir a ser realizada em universidades ou centros de pesquisa estrangeiros. Se, conforme afirma MONTEIRO (1980:12), “Ruellan foi um grande incrementador da geografia pelo entusiasmo que soube infundir nos seus alunos geralmente atraindo-os através de um interesse inicialmente voltado aos estudos históricos”, o que acaso explica certa adjacência pessoal (de qualquer modo tênue) entre ele e Valverde, antes da viagem desse último para os Estados Unidos em 1945, o fato de haver sido um “agenciador de empregos” jamais denotara significado para o geógrafo brasileiro, dadas as relações viçosas e temporãs por ele estabelecidas com Cristóvão Leite de Castro nos marcos finais dos anos 1930. De mais a mais, a valorização do teórico numa época perpassada pela necessidade de revisão das políticas estatais relativas ao povoamento configurou-se à época como naipe carteado na tradição geográfica alemã da qual Waibel era o portador e por intermédio do qual Valverde pôde prover-se, ainda, sem a necessidade de conviver com a “disciplina militar” que parece ter acompanhado a coordenação dos trabalhos sob a batuta de Ruellan25. Para além desses aspectos, há que se atentar para o fato de que, ao contrário de Waibel, Ruellan não contemplava em suas pesquisas temários correlatos à colonização, tais como o da pequena propriedade e o do uso da terra, consoantes ao ideário propugnado pela Marcha para o Oeste, que havia tão marcadamente perpassado anos antes a formação geográfica e política de Orlando Valverde.

Uma vez colocadas essas vicissitudes, que ao menos jogam alguma luz sobre o alinhamento de Valverde junto a Waibel, importa esclarecer que os estudos sobre as alternativas de localização para a futura implantação do novo Distrito Federal em área a ser escolhida do Planalto Central foram estruturados em diagnósticos integrados, uma vez que exigiram avaliações de cunho físico e econômico em duas escalas distintas. De um lado, para fins de implantação física da futura cidade, foram empreendidas avaliações que contabilizaram o levantamento das duas ordens de variáveis no quadro local; de outro, a fim de se compreenderem as futuras relações econômicas e demográficas da nova capital, foram tecidas abordagens regionais (ALMEIDA, 2000:88). Essa orientação norteou tanto a equipe sob orientação científica de Leo

Waibel quanto as demais coordenadas por Francis Ruellan. Na verdade, embora reunidas com o mesmo objetivo, ambas operaram em áreas separadas e de forma independente uma da outra, num momento no qual a universidade e o sistema de planejamento mantinham fortes relações. Todavia, esses esforços conjuntos não evitaram a eclosão de uma crise no núcleo governamental de planejamento, que teve no caso da localização da futura capital o seu ponto de partida26. É impossível abster-se de comentá-la do ponto de vista das idéias que a impregnaram, uma vez que a participação de Waibel foi ativa no embate entre elas, fato que, ao fim e ao cabo, favorece o entendimento do registro teórico-metodológico e da visão territorial waibeliana aplicada ao caso brasileiro, que influenciaram Orlando Valverde a partir desse momento de sua trajetória científica.

Com efeito, entre o final de 1947 e o início de 1948, duas posições divergentes acirraram o debate sobre essa questão. Num flanco dos posicionamentos, a localização da futura capital do país no Triângulo Mineiro era defendida pelos geógrafos do grupo de Waibel. Estes asseveravam a importância do fator acessibilidade à área desenvolvida do país, no caso São Paulo, como uma opção estratégica que permitiria conciliar aspectos de ordem econômica, tais como o menor dispêndio de recursos em infra- estrutura imediata e a atratividade, isto é, a cidade assim localizada não estaria em área muito distante das mais dinâmicas do país, o que, por conseguinte, representaria maiores possibilidades de que os investidores de São Paulo e do sudoeste de Minas Gerais vertessem recursos em prol de seu almejado desenvolvimento27. No entanto, em franca oposição a esse diagnóstico, militares, geodesistas e a bancada política dos estados do Nordeste elencaram o Espigão Mestre, em área próxima à cidade de Formosa, em Goiás, como a mais oportuna para os fins perseguidos. Agregados em uníssono em torno desse parecer, para esses setores os argumentos do primeiro grupo eram irrisórios perante a defesa que empunhavam da centralidade geométrica do território, posição deveras ancorada nas concepções geopolíticas de ocupação rápida da região central do Brasil. O general Polli Coelho, então chefe do Serviço Geográfico do Exército e presidente da Comissão de Estudos para a Localização da Nova Capital do Brasil, foi o principal incentivador das teses que giraram ao redor desse posicionamento. Seus esforços de convencimento foram sustentados, ainda, por grupos políticos de Goiás e dos estados do Nordeste, cujos interesses computaram desde a luta

por maiores áreas de influência política até o simples interesse especulativo das futuras terras a serem desapropriadas (ALMEIDA, 2000:89).

Ao fim e ao cabo, os resultados das discussões travadas em torno dessa polêmica desaguaram na escolha da área de Goiás, feita, aliás, nitidamente à revelia dos malogros outrora advindos na CANG e que ocasionalmente haviam contribuído para insuflar certo espírito revisionista em alguns geógrafos ante as políticas estatais de ocupação do território. Isso ocorreu logo após essa alternativa ter sido endossada em termos políticos por Mário Augusto Teixeira de Freitas, na ocasião recém-aposentado (1948), que havia endereçado carta ao general Polli Coelho registrando seu assentimento à alternativa propugnada por seu grupo.

Em 19 dezembro de 1948, no calor desses acontecimentos e após haver publicado dois trabalhos no país28, Waibel fez vulgarizar no O Jornal do Rio de Janeiro, um artigo intitulado “Determinismo geográfico e geopolítica (contribuição ao problema da mudança da capital)”29, no qual comentou o Relatório Técnico da Comissão de Estudo para a Localização da Nova Capital do Brasil. Nele, não desprovido de certa ironia, observou que o trabalho escrito sob sua orientação e de autoria do engenheiro Christóvão Leite de Castro30 havia classificado a área escolhida pelos geodesistas e militares, isto é, a “do ‘Retângulo de Cruls’ em 6º lugar por não ter querido se elevar até o plano geopolítico do problema, preferindo ficar no plano de puro determinismo geográfico” (WAIBEL, 1961:612-614). Quanto ao último conceito aludido, o geógrafo alemão esclareceu, na ocasião, que o compreendia conforme havia sido introduzido por Friedrich Ratzel, ou seja, a determinação dos elementos da Geografia Humana principalmente em função dos fatores naturais. Discípulo de Alfred Hettner, Waibel considerava que a dinâmica social não adquiria explicação pelos fatores físicos, uma vez que, a seu ver, estes não possuíam densidade suficiente para tornar inconteste tal correlação. Inversamente, referindo-se às razões aventadas para a escolha da localização da nova capital e que prevaleceram, suas palavras ponderaram que “a decisão cabe ao homem, ao seu estágio de desenvolvimento, ao poder da sua vontade (que é forte) e ao espírito. Esta é a filosofia geográfica que hoje em dia é geralmente aceita na França e na Alemanha” (WAIBEL, 1961:613). Movendo sua argumentação segundo esse pressuposto, alegou que os fatores físicos tinham assumido notório destaque para a indicação da localização da futura capital no trabalho desenvolvido pelo astrônomo

Cruls, desfechando críticas ao fato de este não haver contemplado os fatores humanos, procedimento levado na devida conta, ao contrário, na expedição geográfica por ele coordenada ao Planalto Central. Essa advertência, expressa no artigo em evidência, foi por ele dirigida ao general Polli Coelho, que havia afirmado que o relatório da equipe de Waibel confirmava na essencialidade os mesmos princípios do relatório da Comissão Cruls31. Registrados esses esclarecimentos, o arremate da explanação de Waibel se dirigiu para dirimir a acusação feita contra ele por seu opositor, segundo a qual não teria alçado o problema da localização da futura capital ao plano geopolítico. Rechaçando-a, Waibel lembrou os malefícios causados pela geopolítica na Alemanha, considerada por ele uma “pseudociência”, imputando ao presidente da Comissão mais um erro de sua perspectiva ao sugerir que seu labor pudesse ser rebaixado ao dos arautos dessa corrente de pensamento32.

Em verdade, antes de merecerem ser entrevistos como circunscritos unicamente ao problema da localização da futura capital do país, os elementos mencionados e disponibilizados por Waibel em sua argumentação sobre essa querela conservam inúmeros aspectos de suma valia para se compreenderem as filiações e princípios metodológicos que Orlando Valverde herdou do mestre alemão, a partir dessa experiência literalmente capital. Muitos dos pressupostos assumidos por Waibel, com os quais ele se posicionou diante da questão da localização do novo centro político do Brasil, encontram-se melhor refletidos no artigo de Valverde intitulado “Excursão à região colonial antiga do Rio Grande do Sul”, publicado em 1948. Alinhavado sob a orientação assídua e direta de Waibel, foi nesse trabalho científico do geógrafo ibegeano que despontaram, como principais móveis de investigação compartilhados, a Geografia como estudo da “variação de áreas”, a teoria de Von Thünen, a luta contra o determinismo e, por último, o método da interpretação histórica.

Decerto, debruçar-se sobre o modo como esses traços metodológicos foram utilizados em seu escrito auxilia a compreender o relevo que o legado do geógrafo alemão adquiriu na trajetória científica de Valverde. Contudo, procurando tomar uma perspectiva de análise que não os enquadre tão somente pelo papel que desempenharam vis-à-vis da Geografia do período ou ainda restrita à ordem internalista dos escritos do autor, para uma melhor compreensão dos mesmos é apropriado colocar à frente deles um elenco de idéias, interesses e concepções vigentes no contexto em que o autor

passou a aplicá-los no referido artigo. Tal procedimento será realizado nos próximos capítulos, reservando-se para depois a retomada daqueles outros não menos importantes, em articulação com o que passamos a apresentar33.

Capítulo 4

O REAPARELHAMENTO METODOLÓGICO DA OBRA

VALVERDIANA NO PÓS-GUERRA