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Capítulo 2 – Gritam cá, que reconheço lá: a redescoberta empírico-indutiva do

3.2. Arejar os desconfortos da colonização dirigida

Visando estabelecer o horizonte de indagações geográficas que o grupo técnico- científico do CNG mais próximo de Vargas comportava no momento da chegada de Waibel ao Brasil, a esta altura da exposição cabe lembrar que, anos antes do embarque dos estagiários brasileiros para os Estados Unidos e do ingresso do mestre alemão no panorama da Geografia brasileira, os integrantes desse campo político do qual provinha Valverde e que então formavam a “cúpula de geógrafos”11 ou mantinham as rédeas de direção do CNG haviam não somente assistido à formulação como também convivido com o desenrolar das políticas territoriais de integração econômica e de povoamento colocadas em prática pelo Estado Novo, na primeira metade dos anos 1940. Dentre as questões intimamente embutidas nessas políticas e constantemente citadas como sendo os pilares básicos para se promoverem as metas de ocupação do interior do país, não somente as de transportes como também as referentes à colonização tinham sido merecedoras de grande ênfase tanto nos discursos de Vargas quanto naqueles dos principais ideólogos do regime que despontara sob o crivo de sua autoridade. De um lado, esses haviam semeado inquietude ante o abandono das populações interioranas, apontando a privação à qual estavam submetidas comparada à qualidade de vida relativamente elevada desfrutada pelos habitantes das cidades do litoral; de outro, tomando como parâmetro o caso dos alemães instalados no Sul do Brasil, haviam pontuado a necessidade de evitar que elementos estrangeiros formassem colônias nas áreas não povoadas do país, a fim de se preservar a segurança nacional12. Compartilhando dessas advertências chamativas e também tendo em mira a ocupação

do interior, Getúlio Vargas as complementou, alertando para a necessidade de se direcionar a instalação de indústrias, na medida do possível, para as áreas próximas das zonas de produção de matérias-primas, orientação que, a seu ver, seria obstáculo para um temeroso esvaziamento do campo e uma superlotação dos grandes centros urbanos13.

Nos moldes expostos, o Estado Novo, mais próximo de medidas efetivas, sinalizou, durante a primeira metade dos anos 1940, que a definição de sua política de ocupação do interior deveria basear-se em grande parte na instalação de duas modalidades de unidades produtivas: as colônias agrícolas nacionais e os chamados núcleos coloniais agroindustriais. Ainda que não fossem muito distintos, no que tange ao tipo de produção e ao tamanho da área ocupada – menor no caso dos núcleos –, esses dois tipos de unidades priorizavam a distribuição de pequenos lotes de terra aos agricultores pobres e, preferencialmente, àqueles de nacionalidade brasileira (ESTERCI, 1972:90, Apud DINIZ, 1993:180), em virtude das razões assinaladas.

Uma vez no Brasil e trazendo na algibeira sua experiência em estudos de colonização dirigida, Waibel foi exposto à afluência desse manancial de orientações que já era bastante familiar aos principais colaboradores com os quais passou a conviver e a desempenhar influência significativa, diretamente e de maneira estável14 ou temporária no país. Isso ocorreu, apesar de ele não ter exercido o papel formal de professor universitário em nosso meio e de ter trabalhado na Divisão de Geografia do CNG com um grupo reduzido de pesquisadores, em virtude das dificuldades ligadas ao idioma (somente se comunicava em inglês e alemão, e não em francês, que era a segunda língua da maioria dos geógrafos da época). Em meados de 1946, quando Orlando Valverde ainda estava nos Estados Unidos, Waibel, cuja linhagem metodológica não era hegemônica no país, iniciou suas atividades trabalhando ao lado de Speridião Faissol, Nilo Bernardes, Jorge Zarur (que havia sido seu aluno em 1943) e Walter Alberto Egler – o único que na época falava fluentemente alemão –, realizando estudos sobre os processos de povoamento e de reconhecimento de áreas propícias para colonização futura, sobremaneira adequados às continuidades das mencionadas políticas de ocupação do território.

ETGES (2000:129-130) refere que a primeira viagem de Waibel pelo interior do Brasil foi para o estado de Goiás, percorrendo cidades como Anápolis e Goiânia.

Acompanhado de dois assistentes, Speridião Faissol e Osvaldo Lobo, ele partiu da cidade de São Paulo, a 10 de julho de 1946, e retornou para o Rio de Janeiro, em 30 de agosto do mesmo ano. Nesse que foi seu primeiro grande deslocamento em terras brasileiras, ele inaugurou a discussão sobre o papel das faixas pioneiras no processo de povoamento. Preocupado em estudar o caso brasileiro comparando-o com o norte- americano, asseverou que:

“enquanto no Midle-West dos Estados Unidos havia apenas uma frontier ao longo da qual os pioneiros se deslocavam para oeste, no Brasil, é preciso distinguir, de acordo com Hehl Neiva, duas ‘fronteiras’: a ‘fronteira demográfica’, que limita o sertão com a mata virgem, a oeste; e a ‘fronteira econômica’, que separa o sertão, a leste, da região economicamente mais adiantada”15.

Ainda de acordo com ETGES (2000:136), ao adotar como parâmetro o exemplo clássico do desenvolvimento de zonas pioneiras do Meio-Oeste dos Estados Unidos para efetuar a compreensão do caso brasileiro, Waibel não escamoteou que sua visão interpretativa sobre a fronteira consistiu na do empreendedor. A seu ver, esse modo não visava tão somente expandir o povoamento espacialmente – aspecto deveras figurante à época na maneira como muitos brasileiros viam a questão – mas também se associava à criação de novos e mais elevados padrões de vida. Esse referencial de análise acerca do problema assentava-se no exemplo do Meio-Oeste norte-americano, onde, no intervalo de poucas décadas, tanto a mata quanto a prairie haviam assistido a transformações intensas, dando origem a uma paisagem cultural moderna. Não seria exagero dizer que esse modelo balizou o cerne das abordagens e conclusões dos estudos que o pesquisador empreendeu no Brasil sobre povoamento, tendo sido, aliás, como cedo virá à tona, o foco irradiador de certas ponderações críticas que manteve perante certas diretrizes da Campanha Marcha para o Oeste do Estado Novo.

Uma vez demarcados esse itinerário e as formulações iniciais de Waibel em sua estada brasileira, convém dar espaço a algumas informações contextuais adicionais que se mostram capazes de complementar tanto o caráter de seu ingresso no panorama da Geografia brasileira, no período, quanto a natureza de algumas ressalvas por ele dirigidas ao processo de ocupação do interior, que naquele momento já demonstrava sinais indesejáveis. Na verdade, embora momentâneo, tal procedimento apresenta-se como necessidade imperiosa, pois que auxilia o foco de análise a respeito de um

importante condicionante de fundo que esteve no bojo da produção dos trabalhos sobre colonização realizados por Orlando Valverde, ao lado daquele que fora seu professor em Wisconsin e que, daí por diante, jamais deixaria de ser sua referência intelectual.

Desse modo, por ora, uma das razões que fundamenta essa exigência pode ser esclarecida tomando-se as linhas mestras da síntese reportada por DINIZ (1993:183- 186) a respeito de alguns resultados insatisfatórios aos quais aportaram as iniciativas do Estado Novo com relação aos projetos de colonização em Goiás, ou seja, justamente no mesmo estado para o qual Waibel se dirigiu para realizar seu primeiro trabalho de campo no Brasil.

Seguindo de perto os comentários desse autor, na primeira metade dos anos 1940 e como parte do programa Marcha para o Oeste, o Estado Novo havia concentrado esforços para implantar os projetos baseados nas chamadas colônias agrícolas nacionais. Em virtude de seu maior porte, quando comparadas com os núcleos coloniais agroindustriais, confiava-se que essas unidades viriam a desempenhar um papel essencial junto aos objetivos da Campanha Marcha para o Oeste e, sendo assim, algumas medidas concretas foram tomadas pelo regime tendo em mira sua implementação. Um dos exemplos mais significativos dessa tendência foi a CANG (Colônia Agrícola Nacional de Goiás), cuja instalação iniciou-se ainda em 194116. Alocada na Mata do São Patrício, a cerca de 140 km da cidade de Anápolis, o comando de sua execução e os trabalhos de demarcação dos lotes, desmatamento e abertura de estradas ficaram sob a responsabilidade do engenheiro agrônomo Bernardo Sayão, cuja permanência nesse cargo estendeu-se até 1950. Ao longo da consecução desse projeto, várias instruções iniciais que o orientavam foram desencaminhadas. Por um lado, se, para realizá-lo, o governo estadual havia doado à União 250.000 ha de terras, apenas 106.000 ha foram efetivamente disponibilizados para os fins de implantação da Colônia. De outro, se, para fins legais, a área dos lotes havia sido determinada entre 20 a 25 ha, foram fixadas cinco fazendas com mais de 484 ha dentro da área do projeto, em conseqüência de litígios recorrentes travados com grandes proprietários. Além desses atropelos em suas metas primeiras, a constituição da Colônia contou com a delonga na demarcação dos lotes, fato que acarretou a fixação de alguns deles com áreas entre 7 e 12 ha e o assentamento precoce e desordenado de famílias. Afora essas vicissitudes, os trabalhos para a instalação da CANG concentraram-se especialmente nas obras para a

montagem da infra-estrutura necessária para o assentamento, dentre as quais merece destaque a conclusão, em 1944, da rodovia que ligava a Colônia à cidade de Anápolis. Dois anos após o fecho da construção desse aparelhamento viário, o número de famílias assentadas na área do projeto saltou de 10 para 1.600, contabilizando 8.000 pessoas17.

Como se observa a partir das informações apresentadas, se o estabelecimento de grandes colônias agrícolas em regiões desocupadas do interior era tido como fator primordial para se constituir na “espinha dorsal” da Campanha Marcha para o Oeste, experiências concretas nesse sentido não foram completamente bem-sucedidas quer na alteração do estalão da concentração da propriedade fundiária, quer até mesmo nos diferenciais de densidade demográfica constatados entre essas áreas e as regiões mais desenvolvidas do país. A despeito do interesse das políticas de colonização do Estado Novo em fixar o homem no campo, o caso da CANG, no limite, apenas alcançou proveito imediato ao aliviar as tensões em certas áreas agitadas por conflitos de terra. Ao final da primeira metade dos anos 1940, essa experiência ademais refletiu a vulnerabilidade das políticas de colonização do Estado, uma vez que ficou demonstrado o comprometimento inconteste dos resultados almejados, em virtude de uma variedade de constrangimentos que envolveram desde o descaso dos funcionários responsáveis até as pressões dos grandes proprietários de terras. Além disso, embora tenha sido iniciado em 1941, o programa de instalação das colônias agrícolas nacionais alcançou o total apenas de seis unidades em condições de funcionamento (DINIZ, 1993:182).

Se não são suficientes para demonstrar um possível desconforto, esses embaraços ao menos sugerem alguns impasses com os quais se depararam alguns geógrafos visceralmente ligados ao CNG, nos antecedentes mais próximos do final da primeira metade dos anos 1940, quando então despontaram alguns resultados concretos na execução das metas de povoamento e colonização propaladas na Campanha Marcha para o Oeste. Na esteira desses fatos, cremos ser possível extrair a emergência de uma necessidade compartilhada pela comunidade ibegeana, de lapidar as iniciativas que até aquela data haviam sido postas em andamento. Cônscios da necessidade de maiores ponderações acerca do modus operandi das políticas de interiorização do Estado, os geógrafos brasileiros partiram para os Estados Unidos, como já mencionado, a fim de buscar novos conhecimentos de planejamento regional afeitos ao processo de ocupação do território, o que representou, uma medida efetivada sob a insígnia de um processo de

revisão das políticas de povoamento do Estado Novo, sem que isso derivasse num completo abandono de suas principais preocupações. De maneira correlata e subsidiando essa última afirmação, o desembarque de Waibel no Brasil, munido de conhecimentos atinentes à colonização dirigida, também pode ser assim interpretado. Em outras palavras, cabe considerar a relação entre esses fatos e as condições já presentes naquele momento para que borbotasse o que se poderia chamar de um espírito de “balanço” sobre a eficácia que essas políticas haviam logrado atingir na primeira metade dos anos 1940.

Voltando-se os olhos para aqueles idos, neles parece terem se condensado certas demandas de mobilização para o corpo técnico-científico do CNG, incitando-o a angariar instrumentos de pesquisa mais hábeis para levar adiante a obra de povoamento e integração do território iniciada segundo as aspirações propaladas na referida Campanha. Nessa perspectiva, tratava-se não somente de um “balanço” dos princípios que até então haviam norteado as ações palpáveis desse programa como também da arregimentação de um elenco de novas idéias que pudessem impulsionar e aparelhar a perseguição de seus objetivos em bases mais seguras, visando diluir aqueles constrangimentos iniciais. Assim, para os geógrafos ibegeanos que haviam iniciado suas carreiras nas guarnições do regime estadonovista e se engajado cerradamente na realização de suas prerrogativas, essas demandas não parecem ter sido de somenos importância, mesmo quando deflagrada a transição política dos anos 1945-1946. Ao contrário, pode-se admitir que esse novo contexto tenha reservado espaço para a oferta de contribuições de caráter científico dirigidas a subsidiar as políticas de povoamento do Estado18.