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Capítulo 2 – Gritam cá, que reconheço lá: a redescoberta empírico-indutiva do

4.1. Dois hemisférios geográficos e um atlas

Seguindo os atributos de época delimitados no capítulo anterior, quase ao termo dos anos 1940 vários geógrafos estrangeiros e brasileiros se debruçaram sobre os temários uso da terra e colonização como flancos de análise para subsidiar as tarefas que o próprio Estado brasileiro se impunha na organização do território. Apenas para citar alguns exemplos: Preston Everett James (Syracuse), que já havia trabalhado na década de 1930 com o problema da colonização no Sul do Brasil, publicou artigo em 1949 sobre o uso da terra relacionado ao povoamento1; somente um ano depois, outro geógrafo norte-americano, Clarence Field Jones (Chicago), orientou um trabalho de campo no Pantanal mato-grossense e, em 1950, publicou, na Revista Brasileira de Geografia, o artigo “A Fazenda Miranda em Mato Grosso”2; Nilo Bernardes, egresso da primeira geração de geógrafos brasileiros, publicou trabalho a respeito da colonização do município de Santa Rosa, no Rio Grande do Sul3.

Com efeito, nos anos finais da década de 1940, os dois geógrafos norte- americanos citados, à semelhança de Waibel, vieram treinar os técnicos do CNG para estudos dessa natureza e, assim, também ajudaram a disseminar novas matrizes epistemológicas, a se somarem à francesa, que já era tradicional nas pesquisas da comunidade geográfica brasileira. Ressoando esse movimento de mudanças, em 1950, em sua palestra de despedida no Rio de Janeiro, Waibel lembrou seus ouvintes da convicção à qual chegara no início de sua estada no país, qual seja a de que os estudos de Geografia Regional ou Sistemática seriam os mais indicados para o geógrafo que pretendesse permanecer por pouco tempo no Brasil. Na ocasião, salientou o fato de sua escolha ter recaído sobre a última opção, concentrando esforços para os problemas relativos à utilização da terra e à colonização. Entretanto, conforme observa ETGES (2000), não sem razão, o resultado de suas pesquisas no Brasil indica a prevalência dos

estudos de caráter regional, tal como atestam os trabalhos intitulados “Uma viagem de reconhecimento ao Sul de Goiás” (1947), “A vegetação e o uso da terra no Planalto Central” (1948) e, o mais importante dentre eles, “Princípios da colonização européia no Sul do Brasil” (1949).

O fato a ser ressaltado consiste em que, logo após o retorno de sua primeira viagem ao interior de Goiás, no final de agosto de 1946, por conseguinte antes do início dos trabalhos sobre a localização da nova capital para os quais foi escalado no CNG, Waibel já havia estabelecido como plano de estudos prioritário de suas pesquisas no Brasil os temas uso da terra, colonização e povoamento. Tal direcionamento teve importantes efeitos sobre a trajetória científica de Orlando Valverde a partir desse lustro. Como resultado mais imediato dessa resolução, aflorou entre ele e Waibel um primeiro projeto investigativo de vulto, cujo intento maior consistiu na organização de um “Atlas de Colonização do Brasil”, labor ao qual deram início sem tardar quando aquela incumbência foi devidamente transposta.

Percebe-se, assim, que as delusões mudancistas constituíram algo como um desvio para a rápida realização desses objetivos seminais lastreados pelos dois pesquisadores, cujo foco de interesse, não resta dúvida, era caudatário do período político anterior. No dizer de seu idealizador, a documentação cartográfica, incidindo sobre os fatos e fatores relacionados com esse domínio, tinha por finalidade auxiliar o governo e o público na formação de uma idéia clara sobre esse “magno problema nacional”, visto ainda como instrumento bastante hábil para se “conseguir um conhecimento de primeira mão sobre a colonização no Brasil, seus êxitos e seus malogros” (WAIBEL, 1988:203)4.

Cunhando o problema da colonização sob a chancela das palavras utilizadas pelo tenente-coronel Frederico Rondon, em artigo publicado dois anos antes no Boletim Geográfico5, Waibel passou a orientar assiduamente o olhar científico de Valverde para os problemas correlatos. Provento mais imediato do engajamento do geógrafo brasileiro nesse projeto, seu artigo “Excursão à região colonial antiga do Rio Grande do Sul”, publicado em 1948, constitui, sem sombra de dúvida, um primeiro resultado expressivo. Além disso, a partir desse momento, entre outros móveis de análise que seriam paulatinamente agregados a suas pesquisas, nos anos seguintes estabeleceu-se no interior delas um processo de aprofundamento dos conhecimentos que Valverde detinha

até então acerca das regiões meridionais do país. Esse enriquecimento dilatou-se sem equívocos até tempos mais tarde quando, em 1957, publicou a obra Planalto Meridional do Brasil, em cujas reflexões notabilizou-se novamente a herança recebida de Waibel.

Da parte de Waibel, a consecução desse intento investigativo comum resultou na publicação, em 1949, do já citado artigo de sua autoria, intitulado “Princípios da colonização européia no Sul do Brasil”. Tornado célebre desde sua aparição, este trazia, em muitos pontos, um teor que se aproxima do primeiro escrito valverdiano indicado, dele destoando, entre outras razões, por transpor suas minudências características em prol da propositura de princípios mais gerais sobre colonização e por abarcar considerações atinentes aos resultados da colonização não somente no Rio Grande do Sul como também em Santa Catarina e no Paraná. Nesse escrito, vale destacar, o geógrafo alemão registrou com realce sua gratidão ao auxílio prestado por Orlando Valverde durante as excursões realizadas nos bastidores de sua publicação6.

Para o que mais interessa realçar, as observações de campo que deram origem ao trabalho de Valverde sobre a extensão gauchesca do país (“Excursão à região colonial antiga do Rio Grande do Sul”), foram realizadas durante os meses de fevereiro e março de 1948, e sua elaboração efetiva sobreveio entre abril a outubro do mesmo ano. Gestado, portanto, na esteira daqueles trabalhos realizados com a consciência do interesse político da época pelos temários pequena propriedade e colonização, neste o peso concedido às observações de campo traduziu-se na expressão empregada “reconhecimento geográfico”, que refletia o espírito de pesquisa tão comum abraçado por outros geógrafos do período. Conforme o próprio Valverde salientou em suas linhas iniciais, “a excursão teve como objetivo iniciar os trabalhos de campo para a elaboração do fascículo referente ao estado do Rio Grande do Sul do ‘Atlas de Colonização do Brasil’”, que o CNG projetara publicar. Contando com a participação do geógrafo Nilo Bernardes, outro dos orientandos de Waibel, com relação às técnicas expeditas empregadas para a realização do estudo, Valverde se valeu dos mesmos procedimentos utilizados em seus trabalhos anteriores a sua convivência com o geógrafo alemão, isto é, concedeu ênfase ao emprego de fotografias aéreas, de inquéritos in loco e de fontes históricas como recursos complementares aos levantamentos de campo7. Seguiu nisso, aliás, balizas valorizadas por Waibel e que mereceram considerações expressivas nos trabalhos publicados por este no Brasil.

A partir do convívio e dos estudos que conduziu com o preconizador dessa empreitada e a fim de concretizá-la, Valverde passou não somente a manejar vários de seus balizamentos metodológicos essenciais como também travou contato estreito com suas valorações a respeito da colonização européia nas terras brasileiras. Esse horizonte de trabalho passou a cumprir papel capital no discurso geográfico valverdiano e apresentou uma sobrevida para além da década de 1940, o que justifica considerá-lo como o inaugurador de uma segunda fase das pesquisas do autor. Com justeza, o escrito em pauta pode ser tomado como um verdadeiro “divisor de águas” em sua trajetória científica, pois demarcou expressivamente uma transposição de sua fase formativa.

Na verdade, duas ordens de questões fundamentam essa apreciação. De um lado, do ponto de vista metodológico, quando comparado aos trabalhos publicados por Valverde até 1944, período anterior à viagem que realizou aos Estados Unidos e ao aprimoramento prático do aprendizado junto a Leo Waibel no Brasil, neste saltam aos olhos a presença pronunciada de vários e inéditos procedimentos. De outro, tal assertiva também se aplica ao trabalho em pauta pelo fato de ter inserido o pesquisador no registro específico dos estudos agrários. Isso ocorreu numa época na qual, conforme delineado no capítulo anterior, existiam fortes motivos contextuais para tanto, o que elucida que seu ingresso nessa área de estudo específica operou-se no compasso e na dependência das injunções e apelos exalados do temário colonização.

O primeiro escopo dessas questões merecerá atenção no presente capítulo. Ao próximo e aos seguintes será reservada a tarefa de elucidar os desdobramentos político- ideológicos do escrito valverdiano de 1948, diante dos condicionantes mais prementes da época na qual foi efetivamente elaborado.