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Capítulo 5 – Alternativas de organização agrária, povoamento e agricultura no

5.3. O Plano Salte e o Relatório da Missão Abbink

Transpostos os anos de ditadura do Estado Novo e com o término da Segunda Guerra Mundial, o governo Dutra compartilhou das expectativas fiadoras das supostas normalização das atividades econômicas e regularização dos fluxos comerciais e de

capitais16. Ainda no bojo delas, semelha ter nutrido uma aventada necessidade em reduzir a forte presença estatal no âmago do sistema econômico interno (SARETTA, 2002:102 e 116), alimentando assim de esperanças tanto aqueles que persistiam na oposição doutrinária ao planejamento quanto outros, não necessariamente inscritos nesse registro, que julgavam ser o Estado brasileiro despreparado para levar adiante o desenvolvimento econômico do país nesses parâmetros17. Afinal, se nos anos anteriores o conceito de planejamento começou a ser dissociado da experiência soviética, passando a figurar como pré-requisito para os países aspirantes ao rol das nações capitalistas mais desenvolvidas, nesse outro contexto, no qual a Guerra Fria passara a ser coadjuvante, tal inclinação sofreu revés, propiciando que viesse à tona certo vezo aparentemente renovador relativo às propostas de redução da participação do Estado na economia. Além disso, naqueles anos, essa forte presença estatal foi identificada no Brasil com a própria ditadura recém- terminada, atitude oportunista bastante comum entre certos interlocutores da cena política nacional, que souberam responsabilizá-la por regular demasiadamente a atividade produtora e também pelos elevados índices inflacionários da época18.

Entrementes, as tendências descritas apenas configuram uma silhueta bastante magra ante as interpretações de corpos analíticos distintos que marcaram os anos do governo Dutra e tomaram como alvo as principais questões concretas do desenvolvimento econômico brasileiro. Contrabalançando as vocalizações favoráveis à redução da participação do Estado na economia e a antipatia pelo planejamento, posições divergentes e não menos variadas emanaram dos núcleos de reflexão coletiva nos bastidores das numerosas agências de planejamento geral e setorial que haviam sido geradas no primeiro governo Vargas. Reunindo uma elite emergente de técnicos e militares que buscava sua inserção no universo das elites brasileiras, vários interlocutores procedentes desses escalões também se debruçaram sobre a problemática das vias do desenvolvimento do capitalismo nacional. Apesar das variâncias de posições dentro do setor público, nos anos do governo Dutra inúmeros sujeitos se esforçaram em participar na restrita esfera do poder decisório sobre os destinos nacionais, inscritos ainda numa época na qual perdurava a possibilidade histórica aberta pela Revolução de 1930, que inaugurara a crescente valorização do conhecimento técnico e da segurança militar (BIELSCHOWSKY, 2000:257).

De qualquer modo, a par das divergências entre os debatedores das controvérsias do desenvolvimento brasileiro, a prédica do “reaparelhamento econômico” surgiu como moeda corrente no período 1946-1951, traduzindo o valor que então era atribuído a todos que se embrenhassem na busca de soluções técnicas ou científicas dos problemas econômicos. Em particular, independentemente das filiações políticas da época, era bem aceita qualquer sugestão visando solucionar o problema da modernização da infra- estrutura (estradas, portos e ferrovias) no país, bem como aquelas que propusessem meios para dotá-lo de energia suficiente para trilhar rumos fundamentais para o seu crescimento aliado à diversificação do sistema econômico, principalmente da indústria.

Nesse particular e de modo geral, vários autores destacam freqüentemente que a natureza do governo Dutra pode ser identificada em seu cunho conservador, liberal e antiindustrializante. Apesar de existir um consenso pródigo entre eles, no tocante ao conteúdo conservador da base social e política do governo, igualmente, porém, ressaltam não ser apropriado sustentar avaliação congênere da orientação da política econômica encetada por este. Analisando o tratamento dado pelo governo à questão agrária e munido de uma revisão da literatura atinente ao período, TAPIA (1986) argumenta que sua direção econômica se distanciou de uma regressão liberal, ainda que a industrialização não tenha sido contemplada como prioridade de seu projeto econômico e tenha extinguido ou neutralizado os órgãos potencialmente capazes de cumprir uma função de planejamento, na contramão do movimento constatado no regime político anterior. Advoga o pesquisador que, muito embora não tenha sido industrializante, o governo Dutra tampouco optou por uma postura antiindustrializante. Ao demarcar essa ambigüidade, considera que

“no governo Dutra não houve um desarmamento da capacidade regulatória e intervencionista do Estado, e um retorno ao formato institucional do Estado Liberal do pré-trinta. O que se verificou foi a elaboração de um projeto de desenvolvimento com um conteúdo conservador, expresso no fato de que não foi contemplado de forma precisa um projeto de industrialização” (TAPIA, 1986:99).

O qualificativo de conservador, segundo a mesma fonte, também se aplica quanto às formas como o Estado, sob a vigência do governo Dutra, procurou intervir na problemática agrária. Na verdade, desde o início de sua gestão, setores administrativos importantes manifestaram inquietação com relação à situação da agricultura. Assim,

numa reunião promovida com seus secretários em dezembro de 1946, o então ministro da Agricultura, Daniel de Carvalho, notabilizou a preocupação desse ramo do Poder Executivo com o atraso da agricultura brasileira em relação à indústria. Nessa ocasião, ele ressaltou principalmente o sobressalto relativo à situação da produção de gêneros alimentícios, havendo concluído que a crise de abastecimento se devia menos à escassez de produção do que às deficiências dos meios de transportes.

Também sem deixar de traduzir esse alarma e propondo meios para resolvê-la, ao fim e ao cabo as intenções e as ações do governo se substanciaram em dois momentos e planos distintos que remontam ao programa “Alimentação” do que ficou conhecido como Plano Salte e aos resultados do Relatório da Missão Abbink. Na verdade, esses dois corpos de propostas podem ser vistos como uma exposição concisa sobre o modo como a gestão Dutra compreendeu a questão agrária e, desse modo, exigem algumas considerações adicionais.

O primeiro deles foi elaborado em 1948 com as britas do Dasp (Departamento Administrativo do Serviço Público) e com vigência prevista para cinco anos19. Seu lançamento, ainda que sob o clima liberalizante do governo Dutra, manifestou dentro da administração pública a força daquele órgão, que era afeito à ideologia desenvolvimentista do governo precedente, o que também seria expresso ao longo de outros episódios nos quais ele esteve envolvido e que tornaram notórias as dificuldades com as quais se deparou a gestão Dutra para equacionar conflitos intraburocráticos oriundos de certas continuidades do governo antecessor20. Imerso na prevalência de tensões dessa natureza dentro do aparato técnico e burocrático, o Salte representou um projeto econômico no qual os impasses valorados como os mais urgentes vividos pelo país se exprimiram e mereceram prioridade.

De modo que, na dianteira das prerrogativas do Plano, não sem deixar de apresentar certa complementaridade com a visão do Ministério da Agricultura já mencionada, listou-se o caso da aguda crise de abastecimento constatada no período, perspectiva que colaborou para que o problema agrário nele despontasse como uma questão de produção de alimentos. Exteriorizando a preocupação governamental com as crises de abastecimento freqüentes nos centros urbanos e problemas no comércio exterior, esse plano central do governo Dutra deu a conhecer seu intento com relação à questão agrária, dirigido sobremaneira para o incremento da produção de alimentos e

dos produtos de exportação. Conforme a mensagem que o acompanhou, o governo programava ajustar a produção de exportação visando melhorar o balanço de pagamentos, muito embora seus esforços também estivessem voltados para os problemas da agricultura de mercado interno. Desse modo, o setor da alimentação contava com o estabelecimento de um programa de investimentos para crédito e melhoria das condições de produção na agricultura, incluindo as de consumo interno e de exportação. Provido dessas balizas e no que tange especificamente à produção vegetal, o Salte apregoou incentivos para as culturas de trigo, feijão, mandioca, arroz, milho, cacau, mate e café. Em analogia, metas parelhas foram anunciadas com relação à produção animal, englobando especialmente a pesca, as carnes e derivados, a avicultura, a apicultura, o leite e os laticínios, a sericicultura e a lã. Outro conjunto de medidas preconizadas pelo Salte dizia respeito aos fertilizantes e corretivos, à defesa sanitária vegetal, à mecanização, às pesquisas, ao seguro agrário, aos armazéns e silos, à imigração, à colonização e à conservação do solo (TAPIA, 1986:100).

Assim como o Plano Salte, um outro conjunto de propostas também exprimiu a inclinação dominante na época quanto à questão do desenvolvimento, refletindo a tônica do período Dutra. Durante sua vigência, foi formada uma Comissão Técnica-Mista Brasileira-Americana de Estudos Econômicos, composta por técnicos dos dois países e chefiada por John Abbink e Otávio Gouveia de Bulhões. Esses mentores, havendo realizado um amplo diagnóstico da economia brasileira e transposto a apuração dos resultados a que chegaram, fizeram publicar o Relatório da Missão Abbink, documento com várias sugestões para o desenvolvimento dos diversos setores produtivos do país.

Na parte relativa à agricultura, seguindo de perto os comentários do chefe da delegação brasileira, o objetivo do referido Relatório consistiu em identificar os obstáculos conjunturais e estruturais do desenvolvimento brasileiro, visando dispor as partes de uma versão do Plano Marshall para a América Latina (TAPIA, 1986:99). Entre suas concepções basilares a respeito dos empecilhos ao desenvolvimento, constou a indicação da inexistência de um mercado nacional unificado e o deficiente sistema de transportes (DRAIBE, 1985:159). Afora esses eixos fundamentais, no conjunto de seus argumentos, o atraso da produção agropecuária mereceu associação aberta com as dificuldades identificadas no balanço de pagamentos e na inflação do período. Asseverou o Relatório que a principal implicação dessa situação era a pouca atenção

dispensada à agricultura de alimentos, proposição que colaborou para que Bulhões mencionasse o acentuado retardamento da agricultura de mercado interno como uma das variáveis responsáveis pela elevação dos preços agrícolas, levando ao aumento da inflação (TAPIA, 1986:103-104).

Ainda de acordo com o Relatório, o penoso estado da produção de gêneros alimentícios prendia-se ao fato de que a maioria dos produtores era composta por pequenos lavradores, meeiros, arrendatários e colonos. Estes, privados de capital e de conhecimentos e meios financeiros para promover a modernização de seus métodos de cultivo, subvertiam a produção em virtude do predomínio de técnicas agrícolas atrasadas. A favor delas o referido documento ainda fez constar as deficiências de armazenamento e de transportes e a ação dos intermediários, fatores adicionais que contribuíam para elevar o custo dos alimentos em relação à renda da população das pequenas e grandes cidades (TAPIA, 1986:104). Nessa moldura apreciativa, Bulhões escorou, ao fim e ao termo, a necessidade de um desenvolvimento equilibrado entre indústria e agricultura. Este consistiria, fundamentalmente, em um aperfeiçoamento da produção agrícola por meio da incorporação de técnicas modernas de produção e de uma melhoria nos sistemas de transportes e de comercialização.

Sem deixar de lado esses apontamentos, mas antes mantendo o esquadro de análise por eles aberto, merecem registro certas afinidades e dissensões que conservam quando deparados com as avaliações que Waibel e Valverde compartilharam em fins da década de 1940 a respeito da colonização européia na porção meridional do país, principalmente com relação à colonização rural. Caminhando na direção do aclaramento dessa assertiva, no próximo capítulo será resgatado o relevo concedido à época pelo governo aos destinos do país com pronunciada ênfase na importância da agricultura para escorá-la adequadamente. Com efeito, subsistem certas embraçaduras entre ele e os escritos dos geógrafos merecedoras de maior atenção.

Além desse eixo interpretativo, procedimento análogo será esquadrinhado entre os trabalhos dos autores e as discussões sobre a questão agrária até aqui apresentadas, concernentes ao campo intelectual e político do período, nos quais os temários pequena propriedade e colonização adquiriram expressão notória.

Na verdade, esses dois feixes comparativos, como outros já delineados nos capítulos precedentes, também auxiliam a compreender o movimento súbito e ascendente da obra valverdiana em direção ao estudo do tema uso da terra, a partir do artigo “Excursão à região colonial antiga do Rio Grande do Sul”. Somados à relevância que o referido enquadramento recebeu nos trabalhos de Waibel, eles por certo também tornam verossímil a idéia de que Valverde tenha seguido seu mestre, desembaraçado, isto é, consciente da franca adequação e prestígio que a adoção desse enfoque representava perante os reclamos oficiais do período – Salte e Missão Abbink –, às vistas de seus quadros técnico-burocráticos ocupados em esboçar os destinos do país sem romper com as matrizes de significado demarcadas no regime anterior e, igualmente, diante dos demais debatedores da cena política e cultural.