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O lugar da teoria de Von Thünen no labor geográfico de Orlando

Capítulo 2 – Gritam cá, que reconheço lá: a redescoberta empírico-indutiva do

4.3. As filiações e os princípios teórico-metodológicos legados por Waibel

4.3.2. O lugar da teoria de Von Thünen no labor geográfico de Orlando

Cabe precisar que a primeira utilização da teoria de Von Thünen nas pesquisas de Orlando Valverde ocorreu no trabalho “Excursão à região colonial antiga do Rio Grande do Sul” (1948), numa época na qual esse procedimento era ainda pouco disseminado na Geografia brasileira30. No momento tanto das observações de campo (fevereiro e março de 1948) quanto da elaboração (abril a outubro) desse escrito, o autor já dispunha do artigo de Waibel intitulado “A teoria de Von Thünen sôbre a influência da distância do mercado relativamente à utilização da terra: sua aplicação à Costa Rica”, publicado na Revista Brasileira de Geografia em janeiro do mesmo ano. Esse tema mereceu lugar privilegiado nas análises de Waibel, e não foi diferente com Valverde, a partir de fins da década de 1950. Sua assimilação na obra deste último deu-se também a partir de outro trabalho do mestre alemão, “A Lei de Thünen e a sua significação para a Geografia Agrária”, originalmente publicado em 1933, no livro Probleme der Landwirtschaftsgeographie (Problemas da Geografia Agrária).

No caso do estudo valverdiano em evidência, cabe registrar inicialmente que o autor realizou o que poderíamos chamar de uma adaptação da teoria. Isso é refletido quando se observa que realizou sua aplicação em escala microgeográfica, isto é, transpondo-a para o interior das propriedades agrícolas analisadas em seu trabalho, ao tratar da ocupação da terra pelos colonos alemães na zona de Dois Irmãos, na encosta inferior da Serra. Ele assim escreveu a respeito:

“A casa está sempre colocada na frente do lote. Os sistemas agrícolas usados dentro de cada propriedade se vão tornando cada vez mais extensivos à proporção que aumenta a distância da casa. A teoria de von THÜNEN sôbre o uso da terra em função da distância do mercado, tem aqui aplicação dentro de cada propriedade, numa escala por assim dizer ‘microgeográfica’” (VALVERDE, 1948:19)31.

Tomando esse trecho como ensejo para outras considerações, ao que parece o posicionamento e o esforço do autor para aplicar Von Thünen no estudo sobre a colonização estrangeira no Sul do Brasil se mostraram inicialmente tênues, marcados ainda pelo positivismo que se manifestou, em proporções diferentes, tanto no determinismo como no naturalismo geográfico. Na continuação da análise que acompanha o último trecho citado, lemos:

“A ocorrência dêste tipo mais extensivo de agricultura aqui poderia ser explicada, no caso presente, simplesmente pela topografia. Mas não resta dúvida de que a distância da casa tem também um papel capital. A distância que o lavrador tem de caminhar para ir ao fundo de sua propriedade é enorme. Se lá fôsse aplicado um tipo intensivo de lavoura, êle teria de fazer diàriamente êste enorme percurso várias vêzes: para ir e voltar do trabalho e para ir e voltar do almôço. Isto seria um grande desperdício de esforços e de tempo. Por outro lado, a topografia por si só não explica absolutamente a disposição das faixas de hortas e de rotação de culturas, em relação uma à outra” (VALVERDE, 1948:20).

Ao que tudo indica, o trecho transcrito oferece margem para duas ordens de considerações. Em termos de encaminhamento analítico adotado pelo autor, ele constituiu a parte final do procedimento descrição/comparação/explicação, aliás muito recorrente tanto neste quanto em seus trabalhos prévios. De outro lado, atesta que, mesmo adotando o modelo interpretativo em questão em sintonia com a orientação científica de Waibel, Valverde não deixou de valorizar a importância dos fatores naturais (no caso, a topografia) para buscar explicações oportunas aos fatos observados

na paisagem, mesmo que isso tenha sido realizado por intermédio da ponderação ou descarte de seu peso segundo os casos analisados. Quando comparado com os escritos anteriores, este último traço de seu encaminhamento analítico permite compreender que, em vez de desconsiderar totalmente a concorrência dos fatores físicos na interpretação dos fatos observados na paisagem, Valverde, ao contrário, passou a situá-los de duas maneiras: seja na posição secundária, como último recurso para lacunas que não foram elucidadas pela nova teoria, seja dotando-os de um estatuto equivalente às variáveis provenientes do modelo econômico incorporado e que, por esse motivo, sempre deveriam merecer a investigação do pesquisador de campo.

Feita essa observação, importa demonstrar como certos aspectos do estudo em questão foram explicados por Valverde em função do fato econômico-histórico da distância dos mercados. Isso é válido para os trechos nos quais abordou o povoamento e os sítios urbanos ou para a avaliação que empreendeu sobre o maior ou menor desenvolvimento das áreas agrícolas ocupadas pelos colonos europeus (no caso, alemães e italianos) nas áreas de colonização da porção meridional do Brasil.

Desse modo, após frisar um conjunto de variáveis não favorecedoras do desenvolvimento industrial que era averiguado durante o trabalho de campo em Caxias do Sul – cidade afastada dos grandes mercados, com fretes onerosos no transporte das matérias-primas pelo fato de estar situada na parte superior da escarpa da Serra, distante das fontes de matérias-primas, mal localizada relativamente às fontes de energia –, Valverde indagou: “Por que se obstinou então o homem em fazer de Caxias do Sul um centro industrial importante, apesar de tantas circunstâncias desfavoráveis?” (VALVERDE, 1948:36). Sua resposta a essa questão estava na disponibilidade de mão- de-obra abundante, barata e especializada dos colonos italianos, no “espírito empreendedor” de alguns deles e na construção da estrada de ferro, no início do século, e de estradas de rodagem, durante o governo de Getúlio Vargas, que teriam permitido um estreitamento no tempo de transporte de Caxias do Sul a Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro.

A nosso ver, a resposta encontrada pelo autor a essa questão demonstra claramente uma ampliação de sua visão interpretativa em relação a seus trabalhos até então publicados, isto é, em alguns casos é nítido seu rompimento com as matrizes geográficas prevalecentes em seus anos de formação (o determinismo e, sobretudo, sob

a influência dos mestres franceses, o possibilismo). Em que pese certas oscilações, observa-se, assim, que Valverde passou a atribuir maior peso às variáveis econômicas para explicar as paisagens analisadas, tendo levado sua análise para além do naturalismo, que concedia aos fatores “propriamente geográficos” um lugar de destaque, decerto não os descartando de todo, mas já como elementos complementares numa abordagem que passou a privilegiar a aplicação de um modelo interpretativo enfatizador do papel desempenhado pelos fatores econômicos na explicação da maior ou menor prosperidade econômica das áreas estudadas32.

Em seu esforço para compreender e reconhecer as regiões visitadas, o autor também enveredou para outras questões. Adquiriu saliência no trabalho comentado a busca das causas explicativas do povoamento. Nisso residiu o exemplo mais claro de sua intenção de oferecer uma forma compreensiva e ao mesmo tempo engajada de desvendar os fatores que influíram no processo de ocupação de porções meridionais do território nacional, tendo destacando os elementos responsáveis pelo sucesso ou fracasso das políticas de colonização levadas a termo pelo Estado. À semelhança de outros geógrafos de sua geração33, quando tratou de radiografar os condicionantes do “progresso” ou “atraso” das áreas de colonização italiana e alemã, Valverde manteve-se fiel à particularidade dos casos, analisando-os individualmente e sem aprisioná-los nas malhas de um modelo explicativo unívoco ou inflexível. Assim operou, concedendo peso ora aos fatores físicos ou naturais, ora aos fatores econômicos e históricos, nos quais de qualquer modo fez sobressair a influência do fator transportes. Essa última variável, a seu ver, estava correlacionada diretamente e de forma determinante com o desenvolvimento cultural dos colonos e, por conseguinte, segundo sua interpretação, com o processo histórico-econômico das áreas percorridas. Isso pode ser observado no seguinte trecho, no qual o autor, ao mesmo tempo, utilizou-se do recurso comparativo para demarcar a diferença de povoamento entre duas regiões:

“Quando se percorre a encosta da Serra entre Emboaba e Alto Feliz, tem-se a impressão de que há mais prosperidade que no trecho atravessado pela rodovia Getúlio Vargas. É verdade que aqui a encosta tem declives mais suaves, porque estando esta parte mais próxima do vale do rio principal, o Caí, alcançou um ciclo de erosão mais avançado. Não se vêem aquêles vales estreitos, profundamente encaixados, semelhantes a cañons, que oferecem obstáculo ao povoamento.

Além da topografia, os colonos desta parte gozaram de outra vantagem: sendo o vale do Caí a via tradicional de acesso ao Planalto, nêle houve sempre maiores facilidades do que nas outras partes da encosta para a exportação dos produtos e para o contacto cultural com os centros mais adiantados” (VALVERDE, 1948:26-27).

Ou ainda:

“O êxito que tiveram as colônias alemãs na baixada, é uma prova de que os fatôres econômicos são mais significativos para o progresso de uma colônia do que os pròpriamente geográficos. Entretanto, a falência da colonização nas encostas íngremes é uma prova de que os elementos geográficos não são desprezíveis” (VALVERDE, 1948:28).

Outra ordem de considerações de Valverde referiu-se ao estudo que fez sobre as cidades surgidas com as colonizações alemã e italiana, em que investigou os fatores que teriam concorrido para a escolha dos sítios urbanos. Essa preocupação já havia se manifestado em 1944, no estudo Dois ensaios de Geografia Urbana: Pirapora e Lapa. Convém, contudo, chamar a atenção para o fato de que, nesse trabalho, ao lado do tratamento da questão dos sítios urbanos, não se notou uma dedicação tão significativa como no de agora à posição das cidades. A hipótese que adotamos para elucidar minimamente tal fato é a de que Valverde, na ocasião desse estudo sobre as duas cidades mineiras, não havia incorporado a intenção de inseri-las num quadro de análise regional, privilegiando antes, como vimos, as questões do espaço interno, investigando principalmente a gênese, a formação, a estrutura e as funções de tais centros urbanos. Ao contrário disso, a abordagem sobre os sítios urbanos das áreas de colonização na porção meridional do Brasil, fazendo-se acompanhar do estudo sobre suas respectivas posições, permitiu ao autor imprimir em seu estudo o significado econômico desses sítios, selecionando um suporte adicional de variáveis para esclarecer a relevância que os fatores dessa natureza adquiriam quando se pretendia interpretar as paisagens culturais e, em termos de uma geografia preocupada com a utilidade do conhecimento que produzia para a modernização do país, demonstrar a racionalidade daqueles mesmos fatores e, por outro lado, sua vulnerabilidade diante das ações de um Estado até então pouco atuante, mas que almejava e, acreditava-se, poderia vir a ser mais.

Imerso ainda na concepção fundamental da ciência geográfica que dava o suporte básico a seus estudos, ou seja, a da Geografia enquanto conhecimento dirigido à

compreensão da totalidade dos fenômenos e à identificação das interdependências destes, Valverde analisou os casos particularizando-os, visando oferecer subsídios científicos capazes de lapidar a intervenção do Estado nos três âmbitos político- administrativos (municipais, estaduais e federal) para a modernização do território, tarefa de primeiro plano que exigia a organização deste último, a fim de torná-lo mais compatível com as exigências da implantação do capitalismo nessa fase da história do país. Torna-se assim possível compreender a ênfase dada pelo autor à posição das cidades, deixando transparecer timidamente, no caso de Vila Seca, os pressupostos de um modelo teórico (Von Thünen) proveniente da economia. Valverde assim se referiu ao sítio e à posição de Galópolis e de Vila Seca, duas cidades situadas na região colonial antiga do Rio Grande do Sul.

“A posição de Galópolis está relacionada à mão-de-obra dos colonos, embora afastada da matéria-prima.

Nada mais claro, entretanto, do que o critério que presidiu à escolha do sítio da cidade. É um exemplo didático. Ela está instalada num fundo de vale, justamente onde se inicia o ciclo de erosão mais antigo [...]. A erosão remontante, atuando sôbre as camadas aproximadamente horizontais do trapp, formou uma queda d’água vertical, a jusante da qual o rio se entalha num cañon. Essa cachoeira foi aproveitada para fornecer energia à fábrica. Por isso, tanto esta quanto o núcleo estão localizados junto ao salto e a montante dêste, onde o relêvo é menos enérgico” (VALVERDE, 1948:46).

“A posição da Vila Sêca é, por conseguinte, fácil de explicar: ela está na borda do campo, fazendo intercâmbio com produtos comprados na zona da mata, para vendê-los ao pessoal das fazendas de criação. O sítio escolhido foi o primeiro de relêvo suave a partir do limite da mata” (VALVERDE, 1948:51).

Preocupado em oferecer um conhecimento sistematizado sobre o maior ou menor dinamismo econômico das áreas visitadas e visando, em última instância, não só reconhecer o território, mas também as eventuais fragilidades do Estado em suas iniciativas desenvolvimentistas, Valverde observou a mudança das paisagens promovida pela abertura da rodovia Getúlio Vargas:

“Quando chegamos a Caí, ficamos surpresos de ver como hoje em dia quase não há comércio na cidade; as casas residenciais chegam até o centro urbano. Contaram-nos que a chegada dos trilhos a São Leopoldo foi um golpe de morte no comércio de Caí. São

Leopoldo fêz uma captura econômica, semelhante a uma captura de rio. Quase todo o hinterland de Caí passou a drenar para São Leopoldo. A navegação fluvial perdeu sua importância em relação à estrada de ferro. O prolongamento da ferrovia até Caxias do Sul, que foi concluído em 1910, tornou o próprio vale do Caí e o planalto, independentes do seu antigo pôrto. A recente construção da rodovia Getúlio Vargas veio consolidar ainda mais a vitória de São Leopoldo sôbre Caí.

Parece que os administradores compreenderam êste fato. Uma estrada de rodagem concretada está sendo construída entre Caí e São Leopoldo, em substituição à atual estrada de terra batida. Caí passará de uma vez por todas à categoria de ‘afluente’ de São Leopoldo, mas o seu comércio certamente ressurgirá” (VALVERDE, 1948:17)34. Outra relação estabelecida por Valverde referiu-se às transformações da paisagem processadas pela implantação das redes de transporte, ferroviárias ou rodoviárias. Nesse caso, ele atentou para as mudanças operadas tanto no revestimento vegetal e no uso da terra como também nas atividades econômicas. Chamam a atenção suas considerações gerais sobre as relações entre “progresso” cultural e econômico, facilidades de transportes e transformação do sistema agrícola quando discorreu:

“Assim como na Baixada e na Encosta da Serra, as zonas providas de comunicações puderam progredir mais na agricultura ou na indústria, também na região de Serra Acima a superioridade econômica da Borda do Planalto sôbre as outras áreas rurais, pode ser explicada pelas facilidades de transportes.

Nos lugares mais afastados que ficam ao norte e a leste da cidade de Caxias do Sul, as comunicações com os centros mais adiantados são escassas; as populações vivem isoladas culturalmente. Em conseqüência, o sistema agrícola aí usado, manteve o seu caráter primitivo. Êle apresenta notável semelhança com o sistema adotado pelos alemães da parte superior da Encosta da Serra. À medida que os contactos culturais vão sendo feitos nas cidades mais importantes e ao longo das principais estradas, êste sistema agrícola vai sendo gradualmente removido das suas redondezas. Entretanto, é chocante observar como a primitiva rotação de terras se tem mantido mesmo nas proximidades de Caxias do Sul, ao lado da cultura da uva” (VALVERDE, 1948:43)35. O sentido interpretativo das considerações até aqui realizadas não se mostra obliterado, quando se torna oportuno, passo adiante, esmiuçar o significado e o verdadeiro lugar ocupado pela teoria de Von Thünen no escrito de Valverde36. O

colonizações alemã e italiana na porção meridional do país não poderia ser outro que não o de a compreender como instrumento de análise bastante eficaz para permitir ao autor demonstrar a suscetibilidade do território à modernização, preconizando forte atuação do Estado. No último trecho citado, percebe-se que o autor ficou surpreso com a manutenção de um sistema agrícola “primitivo” nas redondezas de Caxias do Sul, apesar do estreitamento dos contatos culturais com outros centros proporcionado pelas estradas, e que ele manifesta subliminarmente sua frustração por não encontrar um modelo explicativo geral que pudesse fornecer as fórmulas para o desenvolvimento econômico das regiões excursionadas.

Numa visão de conjunto, a adequação do referencial teórico de Von Thünen à maior parte dos casos que encontrou em suas pesquisas de campo permitiu a Valverde remover o peso das influências naturais na explicação do povoamento e da organização produtiva do território, orientação até então bastante em voga, alçando, ao contrário, o fator econômico-histórico da distância dos mercados a causa primeira do maior ou menor desenvolvimento das áreas urbanas e agrícolas ocupadas pelos colonos. Essa nova postura interpretativa, quando colocada em prática nos estudos de campo, averiguando sua pertinência ou eficácia na análise particular de cada caso, possibilitou ao geógrafo, pari passu com sua busca pela edificação de um conhecimento geográfico das regiões brasileiras, ganhar motivações e respaldo científicos capazes de racionalizar a atuação do Estado, afastando por consegüinte os eventuais “fatalismos” que poderiam advir se a viabilidade econômica do caso fosse vista unicamente sob o viés das determinações naturais. Já com relação aos pressupostos da Geografia vidalina, a adoção de um modelo teórico mais abstrato aliou-se ao esforço por dotar a Geografia de um discurso capaz de identificar certas leis gerais sobre a dinâmica econômica do território para, a partir delas, promover a ação interventora no sentido de sua modernização37.

Os elementos até aqui reunidos permitem, passo adiante, compreender outros referenciais metodológicos abraçados por Orlando Valverde a partir do escrito comentado.