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A luta contra o determinismo e a ênfase na abordagem histórica

Capítulo 2 – Gritam cá, que reconheço lá: a redescoberta empírico-indutiva do

4.3. As filiações e os princípios teórico-metodológicos legados por Waibel

4.3.3. A luta contra o determinismo e a ênfase na abordagem histórica

A partir das considerações tecidas, torna-se possível compreender o significado de outros dois procedimentos metodológicos assumidos por Valverde a partir do estudo sobre as áreas meridionais de colonização. Tanto neste quanto em outros escritos, a luta contra o determinismo e a ênfase à abordagem histórica despontaram como eixos condutores básicos de seu labor.

A luta contra o determinismo pode ser explicada pela credibilidade concedida por Waibel e Valverde aos condicionantes histórico-econômicos da distância dos mercados como principais causas do maior ou menor desenvolvimento das áreas coloniais urbanas na porção meridional do território brasileiro. No tocante à ênfase dada à abordagem histórica, contrariando a corrente vidalina até então predominante nos círculos geográficos, o destaque dado aos processos econômicos, ainda que com base num modelo específico de interpretação (teoria de Von Thünen), possibilitou que a corrente histórica em Geografia, ao menos nos quadros do CNG do final da década de 1940, começasse a priorizar e a aspirar ao enfoque dos temas sistemáticos em escala nacional, onde se destacam os estudos sobre a colonização e os sistemas agrícolas.

A compreensão da oscilação, ainda que equilibrada por parte do geógrafo, entre as variáveis físicas e as econômicas como responsáveis pela feição das paisagens que analisou, exige atentar para a totalidade de seu escrito. É necessário visualizar essa questão considerando o esforço do autor, subjacente ao longo do trabalho, em refutar as teses deterministas, o que permite delimitar a posição nada cômoda enfrentada por ele, diante de uma disciplina em busca de aperfeiçoar seus pressupostos de análise, e que certamente definiu os matizes de sua análise do desenvolvimento das colônias italianas e alemãs no sul do país. Com efeito, aqui também se notabiliza a influência de Leo Waibel sobre Valverde, sobretudo entre 1948 e 1957.

Na parte final do trabalho, isto é, em suas conclusões, Valverde declarou:

“São, portanto, três os fatôres que condicionam o progresso de uma colônia, que podem ser assim classificados de acôrdo com a sua ordem de importância:

3. Relêvo.

São pois os elementos econômicos e históricos, mais do que os puramente geográficos, os que devem ser considerados no estudo da colonização.

Os princípios que deduzimos de nossos trabalhos de campo estão, por conseguinte, em inteiro desacôrdo com a tese determinista, e, a meu ver, constituem para esta mais um sério revés” (VALVERDE, 1948:53).

Tomando-se como parâmetros a Geografia brasileira e o contexto histórico- político do período, cabe nos determos um pouco no significado dessas afirmações e procurar desvendar, ao menos minimamente, o que elas representavam na época em que foram enunciadas. O que primeiro desperta a atenção é a dissonância relativamente à obra de outros geógrafos predecessores a Valverde, como, por exemplo, Delgado de Carvalho. Se concedermos crédito à análise feita por PEREIRA (1997:5), afirmando ser possível detectar uma ambigüidade em Delgado de Carvalho, expressa nos trechos de sua obra em que este evita explicitamente tomar posição na querela determinismo versus possibilismo38, não seria arriscado afirmar que Valverde, em suas citadas conclusões, começava a demarcar outra posição, contrastando com a Geografia ainda predominante em seus anos de formação.

Em sentido corroborativo, MACHADO (1995a:325-326) atenta para o fato de Delgado de Carvalho ter mesclado idéias e autores, freqüentemente sem as devidas referências, o que configuraria uma estratégia bastante hábil do autor em questão para assegurar a legitimação da disciplina, evitando discussões teóricas, tão somente selecionando as matrizes do pensamento (a antropogeografia de Ratzel e as formulações da Escola Geográfica Francesa) que considerava “adaptáveis” ao país. A par desses elementos, cabe salientar que Orlando Valverde, em sentido oposto, se distanciou dessa postura na medida em que se engajou na refutação mais pronunciada das teses deterministas.

Queremos crer que a explicação para tal posicionamento de Valverde advém, em parte, da base social e institucional na qual germinou seu pensamento geográfico. No estudo sobre a colonização da porção meridional do país, em sua oposição ao determinismo geográfico, ele procurava rechaçar os eventuais diagnósticos que pudessem sugerir a inviabilidade de medidas modernizantes do Estado diante dos

problemas constatados. Nesse particular, apesar de o escrito comentado datar de 1948, é possível detectar uma consonância entre os objetivos do autor e aqueles perseguidos pelos ideólogos do Estado Novo. Com efeito, conforme salienta DINIZ (1993:214-215):

“[...] é significativo notar que os ideólogos do Estado Novo, embora se utilizando do determinismo ambiental para pensar os problemas nacionais, não assumem essa perspectiva num sentido unicausal. Com efeito, atribuir a origem dos problemas brasileiros apenas aos fatores ambientais implicaria a impossibilidade de superar o ‘atraso’ do país em relação ao modelo dos povos mais ‘avançados’.

[...]Assim, ao negar a idéia de determinismo unicausal, enfatizando a capacidade humana de agir sobre o espaço, o regime podia relativizar a negatividade do meio e afirmar seu poder de criar uma nova organização territorial e uma nova sociedade.” Admitindo que essa era a postura predominante no seio da instituição na qual Valverde estruturou seu pensamento e, de outra monta, considerando a proximidade pessoal do autor com os profissionais que compartilhavam desse ideário no âmbito interno do CNG, é plausível admitir que seus esforços para refutar as teses deterministas cumpriram importante papel para reiterar sua aderência ao campo intelectual e político daqueles que lutavam para relativizar a negatividade do meio e tributavam ao Estado a capacidade de modernizar o território. Porém, do flanco metodológico, é necessário frisar que essa bandeira foi reforçada por intermédio de Waibel, conforme atestam suas considerações a respeito do problema da localização da futura capital. Quando, nessa querela, se levam na devida conta as reflexões deste acerca do estágio da Geografia na Alemanha e, em sentido corroborativo, as afinidades que manifestou com os geógrafos dos Estados Unidos preocupados com o planejamento e a economia, constata-se que a oposição valverdiana ao determinismo configurou-se como valoração ao mesmo tempo metodológica e política para atender a uma crença fundamental incrustada em seu labor, qual seja a de que a ciência poderia subsidiar o Estado em sua tarefa de organizar e remediar os males da sociedade.

Situado nos marcos de 1948, esse quadro de referência do embate contra as teses deterministas torna inconteste o fato de que a influência de Waibel foi propícia para imiscuir, no interior da obra de Valverde, novas orientações metodológicas que somente alguns anos mais tarde se alastrariam e se firmariam para o conjunto da comunidade geográfica brasileira. Conforme salienta MONTEIRO (2000:13), em meados dos anos

1950, quando ainda era vigorosa a influência lablacheana, novas tendências foram sinalizadas. Em 1952, no Congresso Internacional de Geografia de Washington, realizado pela UGI, o valor do econômico foi enfatizado com a indicação da suplantação do enfoque determinista, na esteira do qual ainda eram praticados os estudos sobre “gêneros de vida” nas paisagens biogeográficas. No conclave da UGI de 1956, ocorrido no Rio de Janeiro (UGI), testemunha o autor que, além da ênfase nos processos econômicos, também a própria ação tecnológica já era projetada sobre o “natural” 39.

Desse modo, a notoriedade da qual se reveste o posicionamento de Valverde na questão advém, nesse particular, de certa visão alvissareira, da qual ele foi um dos portadores nos fins dos anos 1940, a respeito da renovação da ciência geográfica, assumindo posições em sintonia com as principais discussões metodológicas dos congressos internacionais de Geografia organizados pela UGI na década seguinte. Sua aderência aos novos pressupostos que adquiriram notoriedade e legitimação nesses congressos se perpetuaram para além do escrito de 194840.

A partir do estudo sobre as áreas de colonização estrangeira no Sul do país, a assunção valverdiana de uma perspectiva antideterminista colaborou, por sua vez, para o arraigamento da abordagem histórica em seus escritos. Também nessa adoção metodológica, a influência de Waibel exerceu seu peso e foi decisiva.

Cabe esclarecer que a aplicação do método da interpretação histórica, também conhecido como historical approach pelos geógrafos de língua inglesa, já constituía um procedimento utilizado por Valverde antes do contato com Waibel e, igualmente, foi por ele apropriado antes da eventualidade de qualquer contato com a obra historiográfica caiopradiana. Não obstante, a partir das orientações de seu mestre alemão, é fato notório que o recurso à história dos lugares deixou de ter a mera função de complementar informações sobre os lugares e assuntos enfocados pelo autor em suas pesquisas de campo para passar a ter um papel analítico bastante específico no interior de seus trabalhos, tendo sido utilizada segundo a noção de formação econômica priorizada por Waibel em detrimento da de morfologia cultural. A abordagem histórica, portanto, atendeu ao objetivo de auxiliar o pesquisador na compreensão da gênese e dos condicionantes do desenvolvimento dos espaços geográficos brasileiros, constituindo- se, mais especificamente, enquanto bases para o estudo dos processos econômicos41.

Entre fins da década de 1940 e início da de 1950, a perspectiva histórica dos lugares, colocada em marcha por Valverde e que se amparava na reconstituição dos processos econômicos, ainda encontrou outras fontes motivadoras. Sua obra nesse período passou a receber as influências de certa aproximação entre a historiografia de Caio Prado Júnior e o entendimento da formação econômica das paisagens brasileiras preconizado por Waibel. Estimulado pelo segundo a ler as obras do primeiro e de outros intelectuais brasileiros42 preocupados em oferecer as grandes interpretações sobre a formação econômica e o sentido do país, Valverde assim procedeu, ancorado na convicção compartilhada com seu mestre de que a Geografia, sobretudo a Geografia Humana, se aproximava da Economia e da Sociologia.

Em que pese a valorização da abordagem histórica, segundo referenciais teórico- metodológicos diversos assumidos seja por Waibel (idealismo historicista), seja por Caio Prado Júnior (materialismo histórico-dialético), a produção valverdiana passou nesse período a angariar elementos para o desenvolvimento de uma Geografia despojada de sua carga naturalista. Nesse particular, num movimento de intersecção entre orientações essencialmente inconciliáveis, seguindo as de Waibel e os reclamos geográficos de seu tempo, Valverde passou a valorizar a necessidade de aproximar a Geografia da Economia e da Sociologia, distanciando-a, cada vez mais, do determinisno ambiental, redimensionando, ao lado disso, o significado do recurso à História para os estudos geográficos. Nesse sentido, sua atribuição de um grande valor à “evolução” histórica dos fatos não foi desprovida das contradições metodológicas já devidamente analisadas por OLIVEIRA (1978) mas que, em si mesma, no interior de seus escritos, representou uma opção ideológica bastante afeita ao campo político no qual transitava a estruturação de sua carreira pública de pesquisador. Somente mais tarde, ao final dos anos 1950 e início dos 1960, pode-se afirmar que o autor passou a trabalhar com os princípios da Economia Política, tendo-os como principal vetor de análise. No entanto, isso não representou o abandono de sua herança historicista.

Nesse novo contexto, ainda que tenha prevalecido esse encaminhamento híbrido, decerto a valorização dos processos econômicos em perspectiva histórica foi tributária da crescente politização do autor, que acompanhou, não resta dúvida, o ambiente político, social e cultural do país, onde, como é sabido, a partir da década de 1960 as questões do subdesenvolvimento passaram a figurar entre os principais temas da

Sem entrar, no momento, tanto nas minúcias atinentes a esse contexto quanto nas posições metodológicas e políticas assumidas por Valverde perante seus desdobramentos, cabe complementar ainda que o recurso à História como traço proeminente de sua metodologia foi aplicado indiscriminadamente seja em estudos regionais de planejamento, seja naqueles especificamente elaborados para o campo da Geografia Agrária ou que se relacionaram aos problemas de povoamento. De fato, a assimilação desse pressuposto se solidificou como procedimento básico ao longo de toda a produção valverdiana, transcendendo as quadras dos anos 1940 e 1950 nos quais passou a ser aplicado.

No trabalho Planalto Meridional do Brasil (1957), por exemplo, embora não seja o primeiro em que isso tenha acontecido, é possível vislumbrar a adoção da “interpretação histórica” por Valverde associada ao estudo dos ciclos econômicos, em que o autor adota, portanto, um enfoque a partir da história econômica, e não pura e simplesmente de qualquer prisma historiográfico44.

De igual maneira, a “interpretação histórica” também se fez presente enquanto recurso metodológico auxiliar no artigo “Fundamentos geográficos do planejamento do município de Corumbá”, publicado em 1972 na Revista Brasileira de Geografia. Embora nesse trabalho a intenção do geógrafo tenha sido a de fornecer subsídios para o planejamento rural das áreas que mantinham relação com a referida cidade, o autor demonstrou nitidamente a pertinência do historical approach, mesmo em se tratando de um estudo voltado para fins planificadores. Isso foi realizado seja para melhor interpretar aspectos da área estudada, seja para averiguar as “continuidades” do passado no presente, ajudando a compreender a organização do espaço e a propor sua reorganização sem negligenciar os condicionamentos das causas pretéritas.

Tanto no escrito em evidência quanto em vários outros, dedicando-se a trabalhos pontuais, com propósitos bem demarcados, e dispondo de tempo relativamente curto entre as excursões e a redação, ainda assim Valverde, a seu modo e dentro de sua especificidade enquanto geógrafo de campo, imprimiu ênfase aos aspectos históricos. Isso foi efetivado particularmente no que tange à riqueza da abordagem histórica sobre o processo de povoamento das áreas que pesquisou45.