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Entre povoar territórios desertos e recolonizar os devassados

Capítulo 5 – Alternativas de organização agrária, povoamento e agricultura no

5.1. Entre povoar territórios desertos e recolonizar os devassados

Abrindo o procedimento sugerido, é importante chamar a atenção para o fato de que a segunda metade da década de 1940 transcorreu num país recém-democratizado.

Após quase oito anos de regime discricionário, instalaram-se os trabalhos da Constituinte de 1946, elegera-se um presidente pelo sufrágio universal e promulgara-se uma Constituição liberal, fatos que sinalizaram a tentativa de criação e recriação das instituições políticas adequadas à vida democrática aos olhos de muitos de seus contemporâneos (SARETTA, 2002:100).

Para um autor como Caio Prado Júnior, por exemplo, sobremodo loquaz a respeito dos problemas nacionais mais candentes para influir na opinião pública de seu tempo, os ventos da democratização foram propícios para que elaborasse o texto intitulado “Problemas de povoamento e divisão da propriedade rural”3. Nesse trabalho, cuja aparição deu-se no ano da chegada de Waibel ao Brasil, o geógrafo e historiador chamou a atenção para a necessidade de “uma ação consciente e uma política orientada” de povoamento. À sua maneira, traduziu as preocupações de sua época a respeito do assunto e, perspicaz, abordou-o em associação com a problemática fundiária do país que, seguramente, ascendeu vivificada ao cenário político em decurso.

Com relação ao primeiro problema, o do povoamento, no momento para o qual convergiram as inquietações do espírito de “balanço” que semelha haver norteado os trabalhos dos geógrafos ibegeanos ante os resultados insatisfatórios da instalação das colônias e núcleos coloniais, aquele alerta do historiador na verdade buscava superar certo patamar de discussão sobre a questão que, lançada ao primeiro plano, ficou enclausurada por decisões negativas da parte do governo, isto é, restritivas à imigração4. Ao contrário disso, aproveitando-se da abertura política do país e muito provavelmente consciente dos discursos parlamentares proferidos durante os debates da Constituinte de 19465, Prado Júnior advogou uma inversão de perspectiva indispensável: propôs trazer para o primeiro plano a atenção a um programa positivo e geral acerca dos assuntos centrais e paralelos relativos ao povoamento. Munido desse reclamo, defendeu um programa que abrangesse não somente os diferentes capítulos de orientação sobre as correntes migratórias internas e externas como, também e principalmente, elementos concretos sobre a localização de povoadores. Nessa disposição explicitamente apresentada em seu texto, o intelectual paulista identificou um antídoto contra as fórmulas vagas da célebre Marcha para o Oeste, que, a seu ver, embora fossem sedutoras, muito haviam deixado a desejar com relação à propositura de normas eficazes e férteis de atuação6.

Recuperando um pouco do que ficou para trás, é possível perceber que Caio Prado Júnior, assim como a comunidade ibegeana e a opinião pública de sua época, contou para a redação de seu trabalho com a consciência desperta quanto aos descaminhos assumidos pela política de povoamento durante o Estado Novo. Se esta havia edificado seus objetivos iniciais sobre as determinações legais que regulamentavam a instalação das CANGs e até então buscara uma solução para a questão agrária por meio do estímulo à expansão da pequena propriedade – seguindo nisso, ademais, as formulações de Cassiano Ricardo, Oliveira Vianna e do próprio Getúlio Vargas (DINIZ, 1993:180) –, os exemplos colhidos até o final da primeira metade dos anos 1940 haviam demonstrado que tal desígnio não fora plenamente realizado. Além disso, as medidas tomadas para sua realização não haviam logrado colocar em xeque os privilégios das elites rurais que, em grande parte, se não as haviam inviabilizado completamente, por certo as tinham tolhido. Quando muito, os esforços do regime discricionário haviam consolidado a visão de autores, como Oliveira Vianna, para quem a divisão de terras num país com tantos espaços vazios era desprovida de sentido. Efetivamente e para além dos intentos que proclamaram, as políticas do Estado Novo apenas haviam reafirmado os interesses dos setores tradicionais junto ao Estado. Acobertando-os, por fim, o estímulo à ocupação dos fundos territoriais, desencadeada na Campanha Marcha para o Oeste, quando não sonegou ao menos desviou a atenção para o fato de que a especulação ensejava a improdutividade de muitas terras supostamente ocupadas pela agropecuária e, sob essa chancela, os discursos do governo espargiram o lema da distribuição de terras devolutas como um dos eixos fundamentais das políticas concretas de interiorização.

Segundo alguns estudiosos, como ESTERCI (1972:88), essa estratégia populista foi endereçada a angariar apoio ao regime junto à população de pequenos lavradores que, naquele tempo, praticamente ainda não contava com os benefícios da legislação trabalhista. Dessa maneira, para muitos contemporâneos conhecedores dos estratagemas subjacentes às políticas de povoamento do Estado Novo – como é o caso de Caio Prado Júnior –, sem contemplar uma reforma agrária distributiva, o governo havia conduzido a questão agrária por via conservadora sem nada modificar um brasão freqüente na história brasileira (VELHO, 1976:150; apud DINIZ, 1993:182).

De fato, nas cercanias da publicação do texto caiopradiano em referência, sob o ímpeto de alguns ante o deslindamento desse engodo, o latifúndio já havia despontado

como um dos primeiros temas a ser atacado tanto pelos estudiosos quanto por setores reformistas na cena política nacional da redemocratização. Sem dúvida, nessa época ele tornou-se a configuração execrável e a fonte de quase todos os males existentes no país e até então não controlados, impedindo avanços econômicos e sociais. Dessa forma, as tentativas de explicação dos rumos do desenvolvimento brasileiro não poderiam escapar da dicotomia, tão em voga naquele momento, traduzida nas interpretações dualistas da sociedade, que trataram de repudiar o latifúndio em favor das virtualidades da pequena propriedade familiar, aspecto que, desde os anos 1930, constava em inúmeros discursos e em torno do qual haviam se aglutinado visões políticas antagônicas7.

Nessas quadras, embora mais tarde viesse a abrandar sua posição, o intelectual paulista compartilhou visão semelhante em seu texto. Na verdade, no momento em que escreveu o citado trabalho, Caio Prado Júnior não declinou desse fulcro de análise. De resto, não obstante com implicações diversas, essa tendência interpretativa dicotômica também se fez presente no âmbito interno das produções geográficas do CNG. Amanhados na contracorrente da leitura do pensador paulista sobre a realidade e o campo brasileiros, desaguados nas imediações da publicação de seu texto, dois trabalhos surgidos nesse órgão técnico estatal podem ser considerados um indício significativo da prevalência desse arcabouço discursivo. Em 1945 e 1946, respectivamente, apareceram no plano interno da instituição os textos Arrendamento de terras na agricultura (CNG, 1945) e A questão dos latifúndios (CNG, 1946), cujo foco de discussão consistiu nos aspectos positivos do latifúndio. Apresentados sem autores, esses trabalhos apareceram na “Seção Resenhas e Opiniões” do Boletim Geográfico, na qual eram tratados assuntos de interesse do momento, com base em artigos de revistas e jornais.

Irradiando contendas para além-muro do CNG, o primeiro desses trabalhos se utilizou das proposições de autores de linha marxista, como Kautsky, Lenin e Marx, e defendeu que a manutenção do arrendamento como uma forma de exploração da terra era desnecessária, já que provocaria a permanência do pequeno produtor, implicando uma agricultura sem trabalho assalariado e, assim, sem desenvolvimento. Ao final da primeira metade dos anos 1940, para chegar a tal conclusão, o CNG avaliou estatisticamente qual era o papel representado pelo sistema de arrendamento na agricultura brasileira, tomando como referência a cultura do algodão, e determinou uma diferença pequena entre o

número de proprietários (52.423) e o número de arrendatários (44.680). Para além dessas injunções de método, que não vem ao caso detalhar, segundo o texto,

“[...] o combate que acaso se mova ao trabalho assalariado sob a alegação de que compele o operário rural à miséria, não tem fundamento objetivo no Brasil e nem em qualquer país capitalista [...] As condições aqui são diversas. O de que precisamos, na verdade, é de impulsionar a grande propriedade, facilitando-lhe a adoção de técnica moderna” (CNG, 1945:1087).

O segundo texto da instituição, por sua vez, surgido como um adendo a essas palavras favoráveis à grande propriedade, no embalo do temor ao comunismo que passara ao primeiro plano após a derrocada do nazismo, debatia a afirmativa de que, no Brasil, haveria tendência a “muita terra em poucas mãos”, advinda em última instância de uma crítica às ideologias políticas da Revolução de 1930. O texto afirmava que o problema básico brasileiro estava no povoamento e que isso era conseqüência do latifúndio. Aparentando uma missiva para acalmar os ânimos dos setores agrários mais conservadores, em suas linhas sublinhava não ser aconselhável a divisão de terras no país, pois o pequeno proprietário não teria capital para produzir nem mesmo para transportar e vender seus produtos. O panorama econômico do Brasil na década de 1940 foi traçado nesse texto de acordo com quatro pontos principais: a pequena propriedade rural, a ínfima densidade populacional, os capitais diminutos e a renda individual insignificante. No cômputo desse diagnóstico, sem esgotar ou passar em revista as controvérsias político-ideológicas sobre o assunto e, ao que parece, endossando os interesses mantidos incólumes nas políticas de interiorização do povoamento do Estado Novo, esse estudo do órgão concluiu, em tom de aparente neutralidade e resgatando antigos chavões do imaginário geográfico brasileiro, que “diante desta realidade, os nossos olhos se voltam para as imensas riquezas inexploradas, para os recursos que jazem inertes à espera do homem e do capital, a fim de se converterem em fatores de prosperidade econômica” (CNG, 1946:1295).

É muito provável que o diapasão dessas métricas ideológicas e as condições contextuais colocadas in limine tenham desempenhado papel importante para a confecção do viés ponderativo de Caio Prado Júnior, em seu escrito de 1946, sobre o verdadeiro alcance que as políticas de povoamento haviam logrado atingir até aqueles anos. Seus argumentos a respeito indicam tanto o mal-estar quanto o apreço que muitos

intelectuais de estirpes diferenciadas sentiam pelo tema da ocupação do território brasileiro naquelas quadras, antevendo-o não como um assunto isolado, mas umbilicalmente entrelaçado com os destinos da organização agrária brasileira.

Em realidade, em vez da “fórmula vaga” da Marcha para o Oeste, Caio Prado Júnior propunha definir a questão do povoamento a partir de dois aspectos principais: a “dispersão” da população diante da extensão do território e sua “mobilidade”, problema responsável pela instabilidade contínua do homem brasileiro8. Tomando como parâmetro esses dois pilares interpretativos – “dispersão” e “mobilidade” –, o pensador paulista forjou uma idéia de “interior” com o significado de povoamento e movimentos migratórios, contemplando nisso, aliás, uma preocupação figurante em sua época a respeito do crescimento do êxodo rural. Não foi por outra razão que associou a questão do povoamento às virtualidades da pequena produção familiar, extraindo a partir daí a proposta de “recolonização” das regiões já constituídas, juízo que despertaria simpatias e objeções nos anos seguintes, conforme será demonstrado em tempo.

Explicando melhor o encadeamento de raciocínio que esteve na origem dessa formulação, Caio Prado Júnior fez despontar, em seu texto de 1946, a idéia de que o pequeno proprietário representava um elemento demograficamente estável diante das vicissitudes instáveis e precárias da ocupação histórica das terras brasileiras. De acordo com esse autor, ao contrário das outras classes extremas da população rural (o fazendeiro e o assalariado), este não tratava sua propriedade meramente como um negócio (ETGES, 2000:126-127), mas nela buscava constituir mais solidamente tanto suas raízes quanto sua reprodução social valorizando “sua habitação, o seu lar, a sua fonte de subsistência” (PRADO JÚNIOR, 1977:216). Pautado nesse registro interpretativo, Caio Prado Júnior avançou sua argumentação no sentido de realçar a importância da “zona colonial” do Rio Grande do Sul, onde, para todos os efeitos, a agricultura familiar aparecia como “um fator de estabilidade rural; muito superior neste sentido, em todo caso, que a fazenda” (PRADO JÚNIOR, 1977:220). Partindo desse entendimento, compartilhado por vários autores da época, ele apontou a realidade dessa região como um exemplo a ser perseguido e estudado em pormenores9. De acordo com esse viés avaliativo, quando preocupado em pensar a reforma agrária, o autor manteve bastante vivas as expectativas de sua época a respeito das experiências de colonização tidas como bem-sucedidas no Sul e no Sudeste brasileiros. Foi assim que a elas se

referiu como modelo de um novo programa para “refundir a nossa estrutura agrária” (PRADO JÚNIOR, 1977:230), isto é, um programa que não mais deveria conformar-se ao objetivo de “povoar territórios desertos” (PRADO JÚNIOR, 1977:230), mas, inversamente, conservando o sentido da palavra de ordem da Marcha para o Oeste, lançar-se a “recolonizar” os territórios já devassados.

Conforme sintetiza SANTOS (2001:44), num excelente texto dedicado a comentar esse escrito caiopradiano de 1946, seu autor nele postulou que “ao invés de uma ação de penetração mais profunda rumo ao interior (onde, como ele dizia, certamente ficam as ‘reservas futuras a serem oportuna e progressivamente aproveitáveis’), trata-se de levar adiante a colonização em ‘zonas velhas’ onde já existem sistemas instalados (transportes, aparelhamento urbano, indústria, comércio, etc.) e onde ela poderá se afirmar mediante processos de retalhamento das grandes propriedades e fazendas, constituindo, afinal de contas, um programa de ‘transferência da propriedade’ como início para uma reorganização ‘em tais bases’ da economia agrária”. Segundo o mesmo Santos, cuja maior proximidade com a obra do autor é inconteste, foi nesses moldes que este defendeu um programa de reforma gradual do capitalismo mediante a valorização do trabalho, programa no qual, aliás, sem rejeitar desassossegos conservacionistas, desfechou oposição à tendência brasileira da “secular e tão onerosa caça ao humo”. Propugnou, ao contrário disso e acima de tudo, a necessidade de se lastrear o campo do país com “uma população densa e estável, capaz de aproveitar todos os recursos da terra e viver uma vida digna da espécie humana” (PRADO JÚNIOR, 1977:231).