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O Estado e a ocupação dos fundos territoriais: uma aporia valverdiana?

Capítulo 6 – As idéias de Waibel e Valverde para além-muros do CNG

6.1. O Estado e a ocupação dos fundos territoriais: uma aporia valverdiana?

Deslizadas as cortinas sobre as propostas públicas, parlamentares e oficiais concernentes à questão agrária no âmago do período Dutra, há bastante espaço para se entrever que os sons emitidos nessa quadra a respeito dos assuntos perfilados forjaram uma epígrafe ou antecâmara contextual ao discurso encontrado nos textos de Valverde e Waibel sobre a colonização européia no Sul do Brasil. Na verdade, o viés dos argumentos e as nuanças ideológicas por eles entreabertas favorecem uma interpretação mais acurada a respeito das condições de elaboração de seus textos naqueles anos finais da década de 1940. Além disso, é justamente pelo fato de estes estarem visivelmente implicados nas propostas de povoamento do território como um todo, que o teor das querelas apresentadas no capítulo anterior proporciona também uma compreensão mais circunstanciada das idéias de ambos os autores sobre o assunto e, como se procurará demonstrar, no caso específico de Valverde, ajuda a contemporizar certas ambigüidades que manifestou.

Apenas dando início ao enfoque sugerido, cabe demarcar que o artigo “Excursão à região colonial antiga ao Rio Grande do Sul” (1948) encerra, ao menos aparentemente, uma conclusão politicamente asséptica sobre o que o autor advogava em geral em relação às diretrizes a serem tomadas na questão do povoamento do território brasileiro como um todo. Vale disponibilizar as últimas palavras de Orlando Valverde nesse artigo, referindo-se aos “fatores que condicionam o progresso de uma colônia” (em ordem de importância, comunicações, história e relevo), quando assevera em tom conclusivo, que:

“Êstes princípios dão também um golpe de morte nas idéias que ainda hoje circulam, de que o Brasil deve ser povoado em núcleos espalhados por todo o interior; êste nosso

interior a distâncias incríveis dos mercados e da civilização e geralmente servido por péssimas estradas...

Estas idéias têm tido aceitação por parte daqueles que não conhecem o interior do nosso país, ou, se o conhecem, não souberam organizar suas idéias partindo da observação direta” (VALVERDE, 1948:53).

Quando interpretado detidamente, o fragmento transcrito revela embaraços nada desprezíveis decorrentes de certa ambigüidade. Analisando-se o entroncamento de sua natureza técnica com o contexto de idéias no qual foi emoldurado, o texto revela-se vacilante quanto à identificação clara do posicionamento ideológico do autor sobre as políticas e propostas de povoamento, o que, em grande parte, fundamenta os vários distanciamentos tênues que parece ter tomado com relação à orientação de Waibel.

Com efeito, é possível afirmar que Valverde manifestou, no trecho acima, uma interlocução ainda que tímida com a Campanha Marcha para o Oeste. Como se observa, se não o fez criticando-a diretamente e chamuscando vigorosamente seus pilares de sustentação – o que, por sua vez, não permite afirmar que se opusesse ferrenhamente à continuidade desse programa no momento político em que escrevia –, ao menos parece haver fixado alguns limites às declarações de caráter público ou interpessoal que, segundo o tom de suas palavras, cobravam agilidade na execução dos objetivos da Campanha que, como visto, haviam sido até então parcamente alcançados. Na verdade, ainda que visto tão somente como mera ressalva, o juízo de valor emitido pelo autor nessa rara fração de seu texto aberta às opiniões pessoais, não oferece fagulha de discordância quando remetida mais especificamente aos anúncios que o próprio Getúlio Vargas fez, por exemplo, em 19411. Naquele ano, o dirigente da nação esclareceu que o “rumo ao oeste” consistia no “verdadeiro sentido de brasilidade”, tendo arrolado, sob essa veste evocativa, a defesa e a integração econômica do território como artefatos inseparáveis de seus propósitos. Ao salientar o contraste entre suas “ilhas de prosperidade econômica e industrial” e os “espaços vazios”, ajustou o foco sobre a questão da “falta de toda uma série de medidas elementares” que sua administração almejava suprir para dirimir esse impasse. Essas “medidas elementares” incluíam saneamento, educação e, com alto e nítido eco nas palavras de Valverde, tal como havia sido nas ações de Bernardo Sayão, no caso da CANG2, transportes. Percebe-se, assim, que o geógrafo, como Vargas oito anos antes, não deixou de frisar em seu trecho o

elementos, como condição básica do povoamento e da abertura do caminho para sua integração quer ao “mercado” interno, quer à “civilização”, expressão também utilizada outrora pelo líder político, associada à idéia da disseminação dos “modernos processos de cultura” 3.

O exposto permite afirmar que o trecho acima, peça-chave da conclusão do trabalho de que faz parte, revela-se fiel às representações valverdianas acerca do território no início da carreira profissional do autor. Sem muita suspeita, esse viés interpretativo bem poderia prestar-se a puxar uma diligência de argumentos para asseverar, nesse moldes, um entendimento razoável sobre o lugar político ocupado pelo texto valverdiano. Nele, como se observa, não há contestação aos principais pilares da Campanha Marcha para o Oeste, que já foram frisados em outra altura do presente trabalho. Desse modo, resumindo, apesar de ter publicado seu escrito durante a gestão do general Eurico Gaspar Dutra (1946-1951), poupando suas linhas de valorações que pudessem acentuar seu parentesco com o campo político antecessor, por certo esse fragmento recende aromas do governo precedente e revela a ambigüidade mencionada.

Cabe aqui, porém, para evitar o risco de uma compreensão incompleta ou parcial do posicionamento valverdiano relativo à ocupação de outras parcelas do território nacional, atentar para o tom acanhado do trecho citado e mesmo para sua aparição repentina somente ao final do trabalho de que faz parte, considerando, ademais, que nada indicara nele anteriormente sobre o assunto. Esse cuidado é necessário quanto mais nos aproximamos da particularidade dessa fase de sua trajetória, ao que parece trespassada pela confluência talvez um tanto conflituosa das representações ideológicas assumidas pelo autor no início de sua formação e das ressalvas valorativas waibelianas com as quais travou contato na lida com o mesmo conjunto de questões. Com efeito, a consciência que Valverde e seu mestre alemão tinham dos resultados indesejáveis aos quais haviam aportado as políticas de interiorização do Estado Novo abre uma clareira interpretativa complementar àquela já sugerida, cujas relações merecem distinção quando se deseja elucidar apropriadamente certa hesitação no texto valverdiano comparativamente aos de Waibel4.

Nesse horizonte, tomando-se a coerência exposta há pouco entre o trecho de Valverde e o discurso de Vargas de 1941, é possível extrair certa tensão das palavras acanhadas do geógrafo quando se considera que alguns princípios básicos da Campanha

Marcha para o Oeste já haviam sido indiretamente criticados nas vocalizações da equipe coordenada por Waibel, na ocasião da polêmica sobre a localização da nova capital do país. Convém notar que, como um dos membros destacados, o geógrafo ibegeano já havia compartilhado parecer igual ao contido na conclusão de seu trabalho de 1948. Ou seja, é possível admitir que ele tenha nutrido, nas duas oportunidades, uma visão positiva do interior a ser povoado, desde que seus rincões fossem aqueles mais próximos das áreas desenvolvidas do país e aparelhados de antemão com infra-estrutura viária capaz de impedir seu isolamento econômico. Essas avaliações, claro está, adquiriram seu mais importante fundamento na utilização da teoria de Von Thünen por Waibel, cujos princípios começavam apenas a chamuscar a reflexão de seu orientando eminente. No caso deste último, embora, na polêmica sobre a localização da nova capital política, a correlação indicada no trecho citado não tenha deixado de ser tênue, já que não é encontrada diretamente em seus próprios registros – de fato, como visto no capítulo 3, Valverde não foi “escalado” para ser o porta-voz das sentenças políticas ou técnicas proferidas por aquele grupo –, ela não é totalmente aleatória. Se naquela circunstância, o referido programa governamental não mereceu crítica franca do grupo de pesquisadores que trabalharam ao lado do geógrafo alemão, ao menos seus intentos, calcados na idéia de “imperialismo” interno, já haviam sido indiretamente relativizados pela adoção de um modelo teórico que, não obstante tenha sido mantido velado, ao menos nessa querela, apresentou-se bastante operacional. Contudo, a despeito da relativização aventada, ela não contrariou de fato a proposta de Vargas preconizada na Campanha Marcha para o Oeste. As ressalvas que lhe foram feitas pela equipe de Waibel embasaram-se num instrumental metodológico apto o bastante para justificar seus princípios de avanço do povoamento, embora, ao que parece, fazendo ponderações em sentido contrário apenas quando se tratou de alertar que a colonização dirigida deveria orientar-se em função de argumentos econômicos, e não, como contemplava o programa, geopolíticos.

É sob os vestígios do rumo geral dessas orientações que se torna possível distinguir com maior clareza o segundo sentido do trecho valverdiano em questão, o qual gera a ambigüidade pressuposta. Na verdade, eles desenlaçam outros fatos circundantes que viabilizam não tomar como definitivo o alinhamento incondicional, conjeturado de início, de seu conteúdo com o discurso de Vargas. Para aclarar esse ponto, cabe fazer uma pequena incursão às idéias do orientador científico de Valverde a

respeito da Campanha Marcha para o Oeste sobre os caminhos a serem percorridos pela colonização dirigida.

Apesar de Waibel não ter assinalado oposição ao referido programa em seu artigo “Princípios da colonização européia no Sul do Brasil”, em outro, posterior, ele o questionou valendo-se dos seguintes argumentos:

“[...] é sem dúvida necessário que o Brasil, na idade do avião, tome as medidas necessárias para explorar o seu oeste desconhecido e pouco desenvolvido e o coloque sob uma administração organizada. Mas isto, a meu ver, é mais uma necessidade de ordem militar do que econômica. Econômicamente não se justifica, isto é, não trará recompensas, estender a colonização cada vez mais continente a dentro, antes que o povoamento do leste tenha progredido e que se tenham desenvolvido aí, à maneira do centro-oeste dos Estados Unidos, mercados locais e centros industriais. Se se empreende o povoamento do oeste remoto sem a garantia de uma colocação lucrativa dos produtos agrícolas, então se reincidirá no velho êrro da colonização no Brasil, isto é, de colocar os colonos em plena mata e depois deixá-los entregues ao seu destino. Com isto se cria um novo sertão e uma nova leva de caboclos. Não se pode chamar a isto de uma marcha para o oeste. [...] O futuro do Brasil não está no oeste, e sim no leste. E o grande lema, na minha opinião, não deveria ser ‘marcha para o oeste’, e sim ‘tomar pé firme no leste’. Esta expressão é menos teatral, mas creio que corresponde melhor à realidade brasileira. [...] O geógrafo e escritor brasileiro CAIO PRADO JÚNIOR, em 1943 manifestou-se acerbamente contra a impensada divulgação da expressão de ‘marcha para o oeste’. Parece lógico que antes de ir adiante, devassando sertões meio inacessíveis, se deva tratar do que ficou para trás. Há muito que fazer aí. A ‘marcha para o oeste’, preconizada assim como uma política de estímulo à penetração do interior, é evidentemente reincidir no nosso êrro de séculos: a dispersão e instabilidade do povoamento” (WAIBEL, 1955:29-30).

No trecho em evidência, fruto de trabalho elaborado quando Waibel ainda trabalhava no Brasil, que permaneceu incompleto em virtude de seu falecimento em 1951, quando retornou para a Alemanha, e cuja publicação somente vingou em outubro- novembro de 1955, ou seja, somente após o fim do segundo governo Vargas (1951- 1954), o autor mencionou as idéias de Caio Prado Júnior expressas no artigo “Problemas de povoamento e a pequena propriedade”, publicado em 1944, no Boletim do Ministério do Trabalho Indústria e Comércio. De um lado, considerando-se o teor do texto caiopradiano e o meio de sua divulgação – no mesmo ano, o referido artigo foi

publicado também no Boletim Geográfico do IBGE5 –, a informação descolada desse breve avanço temporal permite entrever que realmente existiu certo espaço, nas publicações do órgão acolhedor dos trabalhos de Valverde e Waibel, para autores mais críticos e não necessariamente alinhados com o regime do Estado Novo. De outro, esse dado torna razoável admitir que, ao menos informalmente e na época da elaboração de seu escrito sobre a extensão gauchesca do território nacional, Valverde esteve inteirado acerca seja das fontes gestacionais, seja da coincidência entre as ressalvas que Waibel e Caio Prado Júnior endereçaram publicamente à Campanha Marcha para o Oeste6.

Cientes disso, talvez encontremos na referida permuta científica a razão para o retraimento de Valverde quando, num único lance, ao final e em parcas linhas de seu trabalho, fez referência ao programa, colocado à época sob o crivo de críticas. Em outras palavras, se, por um lado, os aportes teóricos de Waibel, dentre os quais se destaca a utilização de Von Thünen, autorizaram-no a indicar o “tomar pé firme no Leste” como medida essencial para ladrilhar caminhos mais racionais na ocupação do interior, de outro, tudo leva a crer que, justamente em função de sua posição institucional, caso tenha concordado com esse diagnóstico, ele tenha preferido manter o referido desfecho de seu escrito desprovido de literalidade para não prejudicar seus créditos junto ao governo. Certo está que essa ponderação do autor, ponta aguçada do segundo sentido inerente à ambigüidade em questão, não foi de todo equivocada, uma vez que ele, ao contrário de seu orientador científico, não dispunha do trunfo da crítica aberta proporcionada pelo fato de pertencer transitoriamente ao aparato técnico do Estado e tinha consciência das possibilidades de contrariedades pessoais futuras derivadas de um tal posicionamento7.

Uma vez admitidos esses intercâmbios e condições, duas inferências se apresentam. De um lado, é notório que a tomada em consideração de quaisquer dos sentidos exalados do trecho valverdiano não resulta em necessário distanciamento do trabalho do autor em relação à perenidade do pano de fundo que marcou outros similares no mesmo período. No geral, conforme mencionado, nessa época os estudos aprumados na investigação dos temas colonização e imigração ainda reverberavam a tônica dos debates anteriores acerca dos propósitos da Campanha Marcha para o Oeste. As contendas que a cercearam ao menos constaram muito vivas na reflexão dos autores que se esforçavam para estudar alguns dos temas afeitos a essa problemática e, como se

nota, independentemente dos termos valorativos deliberadamente ou não escamoteados em seu trabalho, Valverde foi um deles, em função da própria natureza de seu estudo, que abordou temas pertinentes ao povoamento, como pequena propriedade, colonização estrangeira e uso da terra. De outro lado, também é possível admitir que se o geógrafo, não obstante o aventado caráter inconfesso de suas convicções pessoais, a salvo no escrito de 1948, e o lugar por ele ocupado institucionalmente, acatou sem reservas as considerações de Waibel e de opositores da esquerda sobre o referido programa, ele nada registrou de fato com veemência que pudesse aproximá-lo das restrições subscritas por aqueles a respeito8.

Queremos crer que a aporia demarcada elimina a necessidade de circunspecção com vistas a remover as dificuldades que ela antepõe a uma compreensão mais ajustada do lugar político ocupado pelo texto valverdiano de 1948 na época de sua escrita. Ainda que os termos por ela arremessados sejam antevistos sob a clivagem apresentada – que, aliás, não vem ao caso resolver absolutamente, dado que lhe é inerente –, para aquele que se debruça sobre a obra do geógrafo brasileiro o impasse interpretativo que ela representa aumenta o desafio de se fazer uma opção de análise daquilo que, conforme demonstrado, o autor julgou oportuno e de bom tom manter oculto. Para que esse objetivo seja mantido em mira, torna-se imprescindível ladear as dificuldades sugeridas, arregimentando-se os diversos posicionamentos político-ideológicos e intelectuais em relação a assuntos essenciais ou correlatos do povoamento no decorrer do governo Dutra que, fora de dúvida, permearam a confecção das pesquisas geográficas. É disso que trataremos na seqüência, resgatando os elementos disponibilizados no capítulo anterior de acordo com o significado que assumiram para Valverde.

6.2. As idéias-força de Caio Prado Júnior, Waibel e Valverde sobre colonização